Pin e Toma: Alcance limitado do Tema 117/RG

No último dia 30 de junho, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento virtual do Recurso Extraordinário (RE) n° 1.357.308/RS, para definir, por maioria de votos, a constitucionalidade da limitação da compensação de prejuízos fiscais em 30% na hipótese de extinção da pessoa jurídica.

O voto vencedor apresentado pelo ministro Nunes Marques contém dois argumentos principais: 1) que as razões de decidir do Tema 117/RG são aplicáveis aos casos de extinção de pessoas jurídicas, sendo a compensação de prejuízos um benefício fiscal; e 2) o STF possui jurisprudência firme de que não lhe cabe atuar como legislador positivo para conceder ou estender benefício fiscal.

Em voto vencido, o ministro Edson Fachin divergiu das conclusões alçadas pelo ministro Relator a partir dos seguintes fundamentos: 1) a discussão específica da compensação de prejuízos em casos de extinção não foi abrangida pelo Tema 117/RG; 2) a vedação à compensação integral dos prejuízos promove uma tributação do patrimônio, o que seria alheio ao poder de tributar da União; e 3) a imposição da limitação resulta em ofensa à regra do não-confisco, por se tributar aquilo que não corresponde a renda líquida do contribuinte. 

Esta foi a primeira vez que uma das turmas do STF utilizou o Tema 117/RG como fundamento para rejeitar a pretensão do contribuinte de obter a autorização judicial para compensar seus prejuízos sem a limitação de 30%, em caso de extinção de pessoa jurídica. Em outras oportunidades a discussão não foi admitida ao argumento de que o tema demandaria a análise da legislação infraconstitucional [1] e que o Tribunal não poderia atuar como legislador positivo [2]

Note-se que, no julgamento do RE n° 1.344.795/SC, pela 1ª Turma, o ministro Alexandre de Moraes consignou expressamente que o Tema 117/RG não se aplica aos casos em que a pessoa jurídica restara extinta, pois tal particularidade não teria sido abrangida no precedente repetitivo.

Como se vê, o ponto central da controvérsia reside na aplicação, ou não, do Tema 117/RG aos casos de extinção de pessoas jurídicas.  Se aceita a sua aplicação, remanesce outra dúvida: a) se o entendimento do leading case deverá ser aplicado conforme o artigo 927, inciso III, do CPC [3], que obriga todos os juízes e tribunais a seguirem tal posicionamento vinculante; ou b) se são as razões de decidir do Tema 117/RG que se coadunam à situação de extinção da pessoa jurídica, não sendo propriamente um precedente vinculante, o que permitiria aos juízes e tribunais decidirem livremente conforme as suas convicções.

De outro lado, caso se compreenda que o Tema 117/RG não abrangeu os casos de extinção, então caberá analisar se tal vedação à compensação viola o conceito constitucional de renda e outros princípios constitucionais, como o da capacidade contributiva, da igualdade, da proibição do confisco, da universalidade e da generalidade da renda.  E isto poderia ser feito pelo próprio STF, seja em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade.

O Tema 117/RG e o seu alcance

Em 27.06.2019, o STF apreciou o RE n° 591.340/SP, objeto do Tema 117 de Repercussão Geral, para analisar a constitucionalidade dos artigos 42 e 58 da Lei nº 8.981/95 [4], bem como dos artigos 15 e 16 da Lei nº 9.065/95 [5], que limitaram a compensação de prejuízos fiscais em 30% do lucro líquido ajustado, para cada ano-base.  

Após amplo debate pelos ministros, decidiu-se, por maioria de votos, pela constitucionalidade dos dispositivos supracitados, com a fixação da seguinte tese: “É constitucional a limitação do direito de compensação de prejuízos fiscais do IRPJ e da base de cálculo negativa da CSLL”.

O mandado de segurança que deu origem ao RE n° 591.340/SP não envolvia a extinção de pessoa jurídica, razão pela qual o ministro Marco Aurélio, relator do leading case, fez a seguinte ponderação no início do seu voto:

“De início, destaco a necessidade de delimitar-se o que submetido a julgamento. O recurso cuida, tão somente, da constitucionalidade das restrições previstas nas citadas Leis, presente a continuidade da atividade empresarial, não abrangendo a interpretação dos diplomas legais nas situações em que se observa a extinção de pessoa jurídica.”

É certo que o ministro Marco Aurélio, que considerava inconstitucional a limitação, foi vencido no referido julgamento.  Contudo, na parte específica sobre a inaplicabilidade à situação de pessoa jurídica extinta, o voto vencedor, proferido pelo ministro Alexandre de Moraes, concordou com a delimitação proposta pelo relator, verbis:

“Tal restrição dirige-se à pessoa jurídica em pleno exercício de seu objeto social; ou seja, que não encerrou suas atividades, por extinção, fusão, cisão parcial ou total, ou por incorporação.

(…)

Quanto à situação da pessoa jurídica extinta, conforme salientado pelo ilustre relator, trata-se de matéria não prequestionada. Acompanho o eminente ministro Marco Aurélio quanto a esta específica inovação recursal.”

Como se observa, nos parece que o Tema 117/RG não se amolda de forma automática e vinculante a qualquer caso que envolva discussão sobre limitação da compensação de prejuízos fiscais em 30%, conforme o disposto no artigo 927, inciso III, do CPC, uma vez que o STF delimitou o alcance do leading case, afastando-o expressamente das situações em que há o encerramento das atividades das pessoas jurídicas.  

Uma vez esclarecido o contexto acima, demonstra-se que o ministro Nunes Marques, no julgamento concluído no último dia 30, quando muito aplicou as “razões de decidir” do voto condutor do RE n° 591.340/SP à situação da extinção da pessoa jurídica, sem vincular processualmente sua decisão ao Tema 117/RG [6], pelo que se mostra oportuno analisar se aquelas razões realmente poderiam ser empregadas nas situações em que a pessoa jurídica deixa de existir.

RE n° 1.357.308/RS, 2ª Turma do STF

O primeiro ponto que impede o aproveitamento das “razões de decidir” do Tema 117/RG para proibir os contribuintes de compensarem integralmente os prejuízos nos casos de extinção da pessoa jurídica reside nos próprios votos proferidos no leading case.  Tanto o voto vencedor quanto o vencido concordam que a limitação da compensação em casos de extinção não foi objeto daquela análise, razão pela qual os fundamentos lá adotados não consideraram esta hipótese.

A esse respeito, confira-se o “esclarecimento” constante no corpo do acórdão do Tema 117/RG:

“O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (PRESIDENTE) – Antes de tomar o voto da Ministra Rosa Weber, só queria esclarecer, depois de ouvir o Relator, que não está em jogo a compensação de prejuízos fiscais de empresa extinta, porque isso foi aduzido na tribuna…

O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN – De fato, não foi submetido ao contraditório. Eu fiz referência ao uma tese subsidiária e não a um debate presente.

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (PRESIDENTE) – Essa tese não está em jogo, porque aí fica mais fácil entender que não vai poder compensar prejuízo de uma pessoa que já se extinguiu. Então ela tem que compensar tudo de uma vez só. Mas não é isso que está em jogo.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Se tivesse que enfrentar esse tema, com maior razão, determinaria a consideração dos prejuízos.”

A elucidação acima, além de evidenciar novamente que a questão da compensação de prejuízos fiscais de empresa extinta não foi objeto do Tema 117/RG, deixa claro que nesta situação a análise da violação aos princípios constitucionais poderia levar a outro deslinde.  Isto se comprova, ademais, mediante leitura do voto do ministro Luiz Fux, que apesar de julgar constitucional a trava de 30% em situações “normais”, sopesa que existem casos em que a limitação poderia violar o conceito constitucional de renda, verbis:

“In casu, a legislação atacada preserva o conceito constitucional de renda, ao permitir a dedução dos prejuízos da base de cálculo negativa. Eventual violação surgiria  isso que é importante  se o exercício desse direito fosse condicionado de modo a tornar sua fruição tecnicamente impossível ou desproporcional ou custosa, o que seria impossível no caso de extinção da pessoa jurídica.”

Com efeito, não é possível comparar a violação ao conceito constitucional de renda quando o direito é mantido, ainda que prolongado no tempo para auxiliar a preservação de caixa da União, com a hipótese em que o direito é integralmente suprimido, como ocorre quando há o encerramento da atividade empresarial.  Não há dúvidas que na última hipótese o potencial para se tributar patrimônio, ao invés de verdadeiro “ganho” ou “acréscimo”, é muito maior e irreversível.

Poderia se argumentar, ainda, que as razões de decidir do Tema 117/RG passaram pela constatação de que a compensação de prejuízos fiscais seria um “benefício fiscal” concedido aos contribuintes, não podendo o Poder Judiciário atuar como legislador positivo para estender tal benefício em casos de extinção, em atenção ao artigo 111, do CTN [7].  Contudo, a doutrina tem rechaçado a aplicação do referido artigo aos casos de compensação de prejuízos, pois não se trata de suspensão ou exclusão do crédito tributário ou de isenção, mas tão somente um componente da formação da base de cálculo dos tributos [8].

Ainda, caso efetivamente fosse uma renúncia ou benefício de natureza tributária, deveria estar listado na recém-publicada Portaria RFB n° 319/2023, que trata da transparência ativa das informações relativas a incentivo, benefício ou imunidade de natureza tributária, cujo beneficiário seja pessoa jurídica.  

Porém, a ausência deste suposto benefício fiscal na listagem feita pela Receita Federal é mais um dos indicativos de que a utilização de prejuízos não se reveste dessa natureza, mas é um verdadeiro mecanismo de aferição da renda tributável, que não pode ser suprimido por completo, como ocorre nos casos de extinção de pessoas jurídicas, sob pena de violação aos princípios da capacidade contributiva, da igualdade, da proibição do confisco, da universalidade e da generalidade da renda

Conclusão

Após a análise do inteiro teor do acórdão proferido no julgamento do RE n° 591.340/SP (Tema 117/RG), a conclusão inescapável reside na impossibilidade de utilizar referido leading case, ou mesmo suas “razões de decidir”, em casos envolvendo a extinção de pessoa jurídica.

Qualquer tentativa de se aplicar o Tema 117/RG como precedente vinculante aos casos de extinção não deveria prosperar, considerando que: a) o STF circunscreveu o alcance do leading case, afastando-o expressamente dos casos envolvendo a extinção de pessoa jurídica; e b) as “razões de decidir” do Tema 117/RG não são válidas nos casos de extinção, uma vez que diferir o aproveitamento no tempo é algo totalmente distinto de obstar o direito de utilização do prejuízo fiscal por completo.

Espera-se, portanto, que o fundamento adotado no RE n° 1.357.308/RS não seja replicado de forma indiscriminada pelos tribunais inferiores, porquanto não foram analisados no Tema 117/RG os princípios da capacidade contributiva, da igualdade, da proibição do confisco, da universalidade e da generalidade da renda sob o viés da supressão integral do direito de compensar prejuízos fiscais, como ocorre quando a empresa encerra suas atividades.

Sergio Pin Junior é sócio do escritório Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados (Bratax), especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e juiz do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT-SP).

Edward Shindy Toma é advogado do escritório Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados (Bratax) e especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Consultor Júridico

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