Políticas públicas e o TCU: indicadores e evidências

As políticas públicas são o principal instrumento para promover acesso a direitos fundamentais, especialmente sociais — contudo, a um custo bastante elevado que só se justifica se for comprovada a conformidade entre o que é investido e os resultados obtidos, sejam qualitativos ou quantitativos. Por isso, o processo decisório de implementar, manter, modificar, ampliar ou encerrar o ciclo de uma política pública não pode ser deixado à mera discricionariedade do gestor.  

Um dos maiores desafios da atividade estatal é a adequada mensuração de eficácia das suas ações. Geralmente o que há são meras percepções de maior, menor ou nenhuma efetividade no cumprimento dos objetivos e compromissos sociais dos entes e órgãos do Estado. Faltam indicadores, critérios técnicos ou evidências que possam conferir e aferir que determinada política pública esteja realmente alcançando seus fins.

Segundo Gallopin[1], podem ser considerados “indicadores desejáveis” as variáveis capazes de resumir e/ou simplificar informações relevantes; gerar visibilidade e interesse aos fenômenos; quantificar, mensurar e transmitir informações importantes. Sem indicadores, as pesquisas quanto à efetividade são meras opiniões ou “achismos”. A implementação de qualquer programa sério ou agenda exige acompanhamento e avaliação, e estes só se tornam viáveis com a presença de ferramentas norteadoras e evidências.

As demandas sociais são crescentes e complexas. O gestor público que era apenas um executor de políticas, ações e programas é desafiado a ser também propositor de novas e inovadoras políticas públicas.[2] Nem todos estão preparados, pois ao mesmo tempo que se exige “gestão estratégica”, há demandas que impõem “reação imediata” do Estado.

Como alerta Saraiva: “as organizações estatais reagiram tardiamente ou não se modificaram em face das novas circunstâncias. O resultado foi uma deterioração de sua capacidade de resposta às necessidades e aos anseios da população e um correlato declínio de sua credibilidade”[3].

Em resposta a esta inequívoca constatação, o Poder Público vem avançando, no sentido de produzir evidências, além de estabelecer e publicizar parâmetros que norteiem a atuação de todos os atores no campo das políticas públicas.

O Executivo federal, via Decreto 9.203/2017, que dispôs sobre a política de governança da Administração Pública federal[4], firmou importantes diretrizes da governança pública, entre as quais se pode destacar: a) aferição de custos e benefícios na avaliação das propostas de criação, expansão ou aperfeiçoamento de políticas públicas; b) implementação de processo decisório orientado por evidências. A partir desses desafios normativos foram organizados dois importantes guias para avaliação de políticas públicas: Guia prático de Análise Ex Ante e o Guia prático de Análise Ex Post, ambos de 2018, e vinculados à Casa Civil da Presidência da República, tendo o suporte do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Como se percebe, aponta-se para a necessidade de os gestores públicos superarem o modelo decisório tradicional, que levava em consideração apenas a dimensão política, excessivamente subjetivista, centrada na vontade do líder e que supervalorizava a discricionariedade administrativa.

O processo decisório orientado por evidências aponta para o predomínio (ou mesmo a exclusividade) de dados científicos, fruto de estudos e pesquisas produzidos sob métodos e procedimentos que geram maior grau de confiabilidade e segurança em qualquer fase do ciclo das políticas públicas: formulação, implementação, acompanhamento, avaliação ou mesmo a extinção.

Sem dúvida, foi o TCU (Tribunal de Contas da União) quem mais avançou na elaboração de instrumentos para promover uma “avaliação profissional” das políticas públicas.

Na análise do Relatório de Políticas e Programas de Governo (RePP), de 2018, relatado pelo ministro Benjamin Zymler, Acórdão nº 2608/2018–TCU–Plenário, uma série de recomendações são encaminhadas ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo para que as medidas de governança fossem implementadas e fiscalizadas. Quanto ao controle externo, recomendou que se buscasse nas fiscalizações “[…] o uso de evidências nos processos decisórios das políticas públicas […]”, solicitando que fossem estabelecidos “[…]parâmetros objetivos para classificar os achados de auditoria nos processos de fiscalização de políticas públicas e programas de governo”[5].

Foi neste contexto que surgiu o mais elaborado documento relativo ao tema, o Referencial de Controle de Políticas Públicas (RCPP) [6], que concebeu critérios comuns, geradores de evidências, aptas a avaliar o nível de maturidade de políticas públicas no Brasil, “orientando e sistematizando ações de controle”, que ampliam a eficiência do modelo tanto em relação ao desempenho como aos resultados, com a possibilidade de aperfeiçoar as fases de formulação, implementação e avaliação[7].  Como explicado, trata-se de:

[u]m instrumento de apoio às ações de controle que envolvem políticas públicas, na medida em que consolida um conjunto de conhecimentos, boas práticas, critérios de auditoria, questões e itens de verificação que podem ser utilizados em situações concretas[8].

O RCPP tem sido utilizado em vários processos analisados pelos órgãos de auditoria do TCU e chancelado pelos Ministros daquela Corte em seus Acórdãos. Em outras decisões a ausência do aproveitamento de seus parâmetros tem gerado críticas dos mesmos Ministros, com a recomendação expressa de que sejam observados.

Por exemplo, no Acórdão n° 2376/2022-TCU-Plenário, que analisou os dados de auditoria direcionada a avaliar a política de cotas para ingresso nas instituições federais de ensino, entre 2013 e 2022, foi citado como critério que norteou a fiscalização justamente o RCPP.

Basicamente, o que determinam os ministros é que sejam supridos os déficits metodológicos e a falta de evidências no acompanhamento e na avaliação do programa de cotas. E recomenda-se a produção de diversas pesquisas que subsidiem a obrigatória revisão decenal da ação afirmativa, podendo ser destacadas as seguintes medidas: estudo sobre o impacto de programas de assistência para atingimento dos objetivos da Lei de Cotas; estudos para revisão do critério de renda atual, para “subsidiar o aperfeiçoamento da política de cotas”; estudos que identifiquem “as causas do não preenchimento de vagas, de eventual evasão de alunos cotistas e de outros fatores que resultem na baixa representatividade de negros, pardos, índios e deficientes” [9].

Ou seja, não se admitirá mais como elementos fundamentadores das justificativas para a manutenção, ampliação ou aperfeiçoamento da política de cotas: suposições, impressões pessoais, achismos, percepções ou intuições. São exigidos fatos, dados, números, estatísticas, análises técnicas, relatórios científicos, enfim, evidências.   

Se esse é o guia, a bússola, que norteará o caminho de ação que as auditorias das Cortes de Contas seguirão na análise de políticas públicas, cabe aos gestores se anteciparem, juntamente com seus órgãos de controle interno, e buscarem a conformidade nas políticas públicas em curso ou a compatibilização daquelas que se pretende implementar ou ampliar.

Hipócrates, filósofo grego considerado o “pai da medicina”, nos ensinou há 25 séculos: “há verdadeiramente duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe”. “A ciência consiste em saber; em crer que se sabe reside a ignorância.”

 


[1] GALLOPIN, Gilberto. Indicators and their use: information for decision-making. In: SCOPE 58. Sustainability indicators:   report of the project on indicators of sustainable development. MOLDAN, Bedrich; BILLHARZ, Suzanne. Paris: WILEY, 1997.

[2] Tânia Fischer lembra que até 1930 “O administrador público era considerado um mero executor de políticas, dentro de princípios de eficiência, considerados não apenas o fim do sistema, mas também a medida de eficácia do mesmo. A partir dos anos 30 e da Primeira Guerra Mundial, o crescimento do aparato estatal influiu na mudança do conceito de administrador, já então percebido como formulador de políticas públicas”. FISCHER, Tânia. Administração pública como área de conhecimento e ensino: a trajetória brasileira. Revista de Administração Pública, v. 14 , n. 4, p. 278, out./dez.1984.

[3] SARAIVA, Henrique. Introdução à teoria da política pública. In: Políticas públicas; coletânea / Organizadores: Enrique Saravia e Elisabete Ferrarezi. – Brasília: ENAP, 2006, p. 26.

[4] BRASIL. Presidência da República. Decreto n° 9.203, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9203.htm.> Acessado em: 20 de mar. de 2023.

[6] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Referencial de controle de políticas públicas. Brasília: TCU, 2020.

[9] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2376/2022. Plenário. Relator: Ministro Walton Alencar. Sessão de 26/10/2022. Disponível em: < https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/redireciona/acordao-completo/%22ACORDAO-COMPLETO-2548863%22>. Acesso em: 10 mar. 2023.

Ilton Giussepp Stival Mendes da Rocha Lopes da Silva é presidente do Igepps (Instituto de Gestão Previdenciária e Proteção Social do do Pará) desde 2020. Foi auditor-geral do Estado do Pará (AGE) no período de 2019 a 2020. Advogado licenciado. Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduado em Direito Processual e Material do Trabalho. Especialista em Compliance Público e chief financial officer (CFO) com formação pelo Insper. Membro da Associação Brasileira de Relacionamento de Governo e Membro da Rede Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro.

Jeferson Antonio Fernandes Bacelar é doutor em Direitos Fundamentais e Novos Direitos na Unesa (Estácio de Sá). Membro da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Professor pitular da Unama (Universidade da Amazônia), na graduação e na pós-graduação lato e stricto sensu. Diretor de Ensino e Pesquisa na Escola Judicial do Poder Judiciário do Pará.

Consultor Júridico

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