A adoção de programas e políticas de compliance pelas empresas é tendência que se fortaleceu no Brasil após a entrada em vigor da Lei 12.846/2013, mais conhecida como Lei Brasileira Anticorrupção, cujo teor engloba tanto a responsabilização objetiva (administrativa e civil) pela prática de atos contra a administração pública, quanto a possibilidade de um abrandamento das sanções diante da existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades nas empresas.
É possível observar claramente a popularização do tema desde então, com uma crescente preocupação e aderência a esse tipo de conduta pelas empresas brasileiras, sobretudo aquelas de médio e grande porte. Todavia, quando se trata de atividades relacionadas ao comércio exterior, a noção de compliance ganha contornos especiais, com requisitos, facetas e preocupações que vão muito além dos critérios e ferramentas utilizados internamente pelas empresas que atuam exclusivamente no mercado interno.
Isso se deve ao fato de que, além das normas internas, os operadores do comércio exterior estão sujeitos a outras normas e regras específicas, algumas originárias de acordos internacionais e outras de jurisdições estrangeiras em que as operações se iniciam, transitam ou se destinam. Por isso, torna-se cada vez mais relevante tratar do que chamamos de trade compliance.
Em verdade, esse é tema que, indiretamente, já abordamos muitas vezes nesta coluna, a exemplo do brilhante artigo publicado na semana passada pelo colega Fernando Pieri, em que trata do Programa OEA enquanto exemplo de como a Aduana vem buscando destacar e valorizar as empresas comprometidas com a observância das normas e afirma que “a relação de desconfiança recíproca cedeu lugar ao diálogo e à confiança” e que “essa mudança não é fácil. São construções baseadas no que se diz mas, principalmente, no que se faz”. Se precisássemos resumir essas ideias e iniciativas em uma única expressão, ela seria trade compliance.
No mundo aduaneiro e do comércio exterior, para ser considerada “conforme”, uma empresa precisa possuir políticas, procedimentos e processos voltados a garantir o cumprimento das leis, regulamentos e requisitos a que suas operações estão sujeitas, tanto em termos nacionais quanto internacionais. Isso envolve, entre outros aspectos, questões relativas à classificação de mercadorias, controles de exportação, licenciamento de importação, utilização adequada de Incoterms e respeito às responsabilidades contratuais deles derivadas, recolhimento adequado e voluntário de taxas, impostos e outros encargos, observação de regras de origem, produção e apresentação da documentação que ampara suas operações de forma adequada e completa.
Há de se concordar que, independente da jurisdição a que a empresa esteja sujeita, tal tarefa está longe de ser simples. Todavia, em se tratando de Brasil, cuja legislação base data da década de 1960 e cujas normas infralegais são esparsas e muitas vezes de difícil compreensão e identificação, a devida implementação de políticas de trade compliance torna-se um desafio ainda maior.
Como em qualquer relação pautada em cooperação, existem responsabilidades, expectativas e desafios para ambas as partes envolvidas, no caso, as autoridades aduaneiras e os operadores de comércio exterior. Todavia, o presente artigo pretende focar apenas no lado das empresas, deixando as questões afeitas à Aduana para uma oportunidade futura.
Neste contexto, deve-se chamar atenção para uma previsão específica do Acordo sobre Facilitação do Comércio (AFC) da OMC de que pouco se fala, o artigo 12, que trata sobre cooperação aduaneira. Ainda o foco principal do artigo seja a relação Aduana-Aduana, seu primeiro inciso trata sobre a importância e a necessidade de incentivo ao trade compliance pelos operadores quando prevê que “os membros concordam quanto à importância de assegurar que os comerciantes estejam conscientes de suas obrigações em matéria de cumprimento, de incentivar o cumprimento voluntário para permitir que os importadores, em circunstâncias adequadas, possam proceder a sua própria correção sem penalidade, e de aplicar medidas em matéria de cumprimento para que sejam adotadas medidas mais rigorosas para comerciantes que não cumpram essas obrigações” [1].
Tal previsão deriva da constatação de que os ganhos com trade compliance ultrapassam a redução de custos de transação — custos adicionais e ocultos gerados aos operadores diante do tempo necessário para despacho e das burocracias envolvidas no processo — também chamados de red tape at the border. Isto porque, a automação das rotinas aduaneiras, considerada um dos pilares da aduana moderna e da própria facilitação do comércio, depende diretamente da qualidade das informações e dados prestados, os quais só podem ser obtidos a partir do comprometimento dos operadores com a conformidade aduaneira e da relação de confiança público-privada que se estabelece a partir disso.
Como visto em outra oportunidade, a gestão de risco no Brasil já leva em conta — ainda que com ressalvas — a pirâmide de conformidade desenvolvida pela OCDE e muito utilizada pela OMA. Todavia, o que pouco se discute é o contexto em que a referida pirâmide foi criada e seu real intuito, o que está intimamente ligado ao contexto ora analisado.
Motivada pelo artigo 12 do AFC e pela busca pelo aprofundamento de relações de confiança entre Aduana e operadores, a OMA criou o chamado Voluntary Compliance Framework, quadro normativo que visa aumentar o nível de conformidade voluntária dos operadores do comércio internacional e criar condições necessárias a incentivar essas condutas, tidas como a abordagem mais barata e eficiente de atuação para ambos os lados [2].
A partir desse instrumento, a OMA busca indicar que, embora a análise de conformidade aduaneira seja binária, sendo possível apenas concluir que determina empresa é conforme ou não conforme, as respostas da autoridade aduaneira diante da constatação de não conformidade devem ser variadas, adequando-se ao contexto e às razões por trás da não conformidade, cujo espectro varia de erros inocentes e escusáveis (assunto já abordado por esta coluna) a condutas intencionalmente ilegais e fraudulentas [3].
É justamente em razão desse espectro de diferentes “antecedentes” que se defende a necessidade de aplicação e ponderação dos “consequentes” jurídicos. Em outras palavras, para os diferentes tipos de operadores e contextos em que estes se encontram, deverá a Aduana responder de forma específica e razoável, ponderando o uso de seu poder de polícia e penalidades.
Com efeito, tem-se a pirâmide de conformidade enquanto forma de categorizar as diferentes posturas dos operadores e, de forma proporcional e diferenciada, propor respostas a serem dadas pela autoridade, buscando, em última análise, tratar de forma diametralmente oposta as empresas conformes e que se esforçam para serem conformes — ainda que eventualmente comentam erros e infrações de menor impacto — daquelas que deliberadamente optam por condutas não conformes.
O quadro ora apresentado deixa clara a importância do compliance no comércio exterior e dos benefícios que pode trazer às empresas que o praticam. Todavia, o reconhecimento de que se trata de um objetivo a ser perseguido traz consigo um novo questionamento: como se implementa o trade compliance?
De forma muito sucinta, pode-se indicar que políticas sólidas de trade compliance incluem as mesmas ferramentas e ações do compliance empresarial: compromisso com políticas voltas à coibir e evitar corrupção; criação de código de conduta empresarial; supervisão sobre todas as áreas e atividades da empresa e estabelecimento de procedimentos padronizados e escritos para cada ação e atividade desempenhada internamente; treinamentos e conscientização dos colaboradores sobre riscos de forma contínua e periódica; incentivos positivos às boas condutas e penalização de infratores; auditoria e controle internos e sobre todos os prestadores de serviços envolvidos nas atividades da empresa; e criação de canais de denúncia de práticas internas e de programas de melhoria contínua a partir dos resultados obtidos por meio de testes e avaliações periódicas.
Soma-se a isso, contudo, a necessidade de que as atividades-chave da empresa, voltadas à operacionalização das operações de importação, exportação e trânsito, bem como as decisões estratégicas relativas a regimes aduaneiros especiais, fruição de acordos preferenciais de comércio, escolha de parceiros e prestadores de serviços na cadeia logística, classificação de mercadorias, documentação, declaração de origem e valoração aduaneira, entre outras, sejam acompanhadas de perto e realizadas de forma assistida, técnica e por profissionais qualificados.
Considerando a abrangência das políticas, muitas empresas — em sua maioria de grande porte — optam por inserir em seu quadro a figura do Trade Compliance Officer, cuja função é justamente manter e melhorar os níveis de conformidade relacionados às atividades aduaneiras e de comércio exterior, além de apoiar e auxiliar em questões técnicas e jurídicas.
Por outro lado, seja pelo custo envolvido na manutenção de um profissional dessa natureza ou da pouca disponibilidade de pessoas qualificadas no mercado, deve-se ressaltar que, embora recomendável, muito mais do que o cargo, a busca pela implementação de um trade compliance sólido e eficiente depende do interesse das empresas e de sua filosofia. Antes de mais nada, há que se fortalecer entre os operadores a cultura da conformidade, cuja base está na gestão de riscos e na preparação da operação antes de seu início — regra que pode ser aplicada para empresas de todos os tamanhos e orçamentos.
O que se verifica, portanto, é que o contexto atual converge para a necessidade de que os operadores compreendam a importância da conformidade voluntária e invistam em políticas e procedimentos internos que visem, em última instância, o trade compliance. Isto porque, é a partir da consolidação de posturas de conformidade e da intensificação da confiança entre Aduana e setor privado que as tão almejadas mudanças — principalmente em termos de fiscalização, simplificação de procedimentos, relevação e redução de penalidades – poderão ser alcançadas.
É incontestável que as empresas brasileiras, em sua maioria, já avançaram e muito rumo a este objetivo. Ainda assim, há que se repisar e difundir a questão até que o trade compliance se torne o novo padrão de normalidade.
Fernanda Kotzias é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.