Precisamos falar sobre a Súmula Carf 02, esse pleonasmo vicioso

A Súmula Carf nº 02 é, talvez, uma das súmulas mais utilizadas (senão a mais!) nos julgados do Carf, dispondo que “[o órgão] não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária“. Com a devida vênia, trata-se de uma súmula inútil e que, se não deveria sequer ter sido editada, deveria ser urgentemente revogada, pois, além de ser redundante e redutora em relação à legislação vigente, tem sido utilizada como base para interpretações restritivas, sem suporte legal, à análise de questões que deveriam ser enfrentadas pelo tribunal.

Não estamos dizendo que o Carf pode afastar regras válidas que entenda inconstitucionais. Pelo contrário, o Executivo (e seus órgãos) está jungido à observância da presunção de constitucionalidade das leis e, em discordando da validade de determinada norma, o presidente é sujeito competente para propor ADI a respeito. Apenas o Judiciário pode afastar normas vigentes por inconstitucionalidade, por força da CF/88 (v. artigos 97 e 102) sendo vedado a órgãos administrativos, que não exercem função jurisdicional, ainda que de julgamento (como o Carf e o Tribunal de Contas), que o façam (v. MS nº 35.824/DF, rel. min. Alexandre de Moraes).

Em um breve histórico, a súmula foi editada em 2006, por meio de Portarias do 1º e 2º Conselho de Contribuintes (CC). Os seus acórdãos precedentes envolviam a análise de casos nos quais se pleiteava, diretamente, o afastamento de regra legal por inconstitucionalidade, como: 1) a trava de 30% para prejuízos fiscais (acórdãos nº 101-94.876; 103-21568, 105-14586, 108-06035), cobrança de juros de mora com lastro na Selic (acórdãos nº 102-46146, 204-00115), incidência de Cofins sobre sociedades civis de profissões regulamentadas (acórdão nº 203-09298) e alargamento da base de cálculo do PIS/Cofins na Lei nº 9.718/99 (acórdãos nº 201-77691, 202-15674, 201-78180).

A maior parte dos acórdãos se fia ora em considerações de ordem principiológica, afirmando que o CC, enquanto tribunal administrativo, estaria subordinado à observância da legalidade, por força da presunção de constitucionalidade da lei, ora em considerações funcionais, sustentando caber apenas ao Judiciário o controle de constitucionalidade concentrado e difuso das leis. Com exceção do acórdão nº 108-06.035, nenhum deles menciona o teor do Decreto nº 2.346/1997, que regula exatamente a observância de decisões do STF em matéria constitucional.

Esse Decreto estabelece que as decisões do STF vinculam a administração pública a partir do seu trânsito em julgado, para controle concentrado, ou a partir da suspensão da execução da lei pelo Senado, para controle difuso. Em relação aos órgãos julgadores administrativos, o artigo 4º, p.u., estabelece que eles devem “afastar a aplicação da lei, tratado ou ato normativo federal, declarado inconstitucional pelo STF“, mas sem dispor nada, especificamente, a respeito dessa possibilidade diante de ausência de manifestação definitiva da Corte Suprema.

Entretanto, a Portaria MF nº 103/2002 alterou o Regimento Interno dos CC (RICC – Portaria MF nº 55/98) para incluir o art. 22-A, que vedava o afastamento da aplicação, em virtude de inconstitucionalidade, de tratado, acordo internacional, lei ou ato normativo em vigor, ao passo que ressalvava essa possibilidade nas hipóteses que o Decreto nº 2.346/97 estabelecia. Na edição da Portaria MF nº 147/2007, que revogou o regimento anterior, essa disposição foi mantida, apenas alterando-se a expressão “ato normativo” por “Decreto“, o que restringiu bastante o alcance desse dispositivo.

Ora, quando a referida súmula foi criada, em 2006, já existia, desde 2002, previsão expressa no RICC que proibia o afastamento de tratado, acordo internacional, lei e ato normativo em razão de inconstitucionalidade – ou seja, a regra vigente era muito mais ampla do que a súmula editada, que não apenas se limitou às leis, mas especificamente àquelas tributárias. Basicamente, editou-se uma súmula com um conteúdo normativo que estava inequívoca e integralmente contido no artigo 22-A do RICC. Isso evidencia a inutilidade prática do referido verbete sumular.

Com a edição da MP nº 449/2008, convertida na Lei nº 11.941/2009, houve a reprodução do artigo 22-A do RICC diretamente no Decreto nº 70.235/72, como artigo 26-A, apenas adequar o Carf ao regime existente. E insistiu-se no erro: ao consolidarem as súmulas dos CC, por meio da Portaria Carf nº 49/2010, incorporou-se a súmula nº 2, a despeito da legislação que evidenciava a sua desnecessidade.

A redundância não é o único vício de que padece a Súmula nº 02. Por ser reiteradamente utilizada, de forma automática, nos julgamentos do Carf, tem-se escanteado a análise do alcance da regra que rege propriamente os limites decisórios dos conselheiros nesse aspecto — o artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72 —, e servido de plataforma para a criação de restrições sem suporte no Direito Positivo.

O artigo 26-A estabelece que, no PAF, “fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade“. Dissecando analiticamente o dispositivo, trata-se de uma proibição aos julgadores administrativos para que não deixem de aplicar norma veiculada em tratado, acordo internacional, lei ou decreto, que seria a priori aplicável ao caso sob análise. Mas essa negativa de aplicação deve se dar sob o fundamento de inconstitucionalidade, isto é, negando-se validade à regra. Há aqui uma imbricação entre a enumeração taxativa das fontes do direito e a causa do seu afastamento, para fins de incidência da proibição do artigo 26-A.

O recurso à Súmula nº 02, menos elaborada e menos categórica que o artigo 26-A, torna-se instrumento para veicular interpretações “criativas”, que vão além do que dispõe o referido artigo. Vejamos alguns exemplos que evidenciarão bem o que estamos a dizer.

No julgamento recente do Ac. nº 3401-011.710 [1] se discutiu o conflito entre a cobrança do adicional de 1% da Cofins na importação e as regras do Gatt. É interessante ver que o presidente afirma concordar com o argumento no mérito (assim como os demais conselheiros), mas sustenta que se trataria de uma questão que não poderia ser analisada pelo colegiado, e o relator, na sequência, afirma que aplicar o Gatt para afastar a cobrança seria contrário à Súmula nº 02.

A mesma situação ocorre no Ac. nº 3002-002.430 [2] no qual o contribuinte argui que o valor de determinada multa aduaneira estaria em descompasso que as regras do Gatt que limitam a aplicação de sanções. No voto, a relatora simplesmente aplica a Súmula nº 02, afirmando que o Carf não teria competência para analisar argumentos dessa natureza.

Com a devida vênia aos conselheiros, a Súmula nº 02 nada trata sobre situações de conflito entre tratado e lei interna — aliás, tampouco o faz o artigo 26-A do Decreto. Em primeiro lugar, a preponderância do tratado sobre a legislação interna não implica um juízo de inconstitucionalidade dela, nem prejudica a sua validade, pelo contrário, limita-se a sua eficácia enquanto vigente o acordo internacional — trata-se de uma exceção à aplicação do direito interno [3]. Em segundo lugar, o raciocínio aplicado iria contra o que dispõe o artigo 98 do CTN, que determina que a lei ordinária superveniente observe os tratados e convenções existentes. Nenhum dos dois fundamentos — preponderância do acordo e conflito com o CTN — encontra qualquer tipo de óbice no artigo 26-A, nem na Súmula Carf nº 02 — justamente porque não são juízos sobre a constitucionalidade da regra.

A prova de que essa aplicação está equivocada é a farta jurisprudência do Carf a respeito dos conflitos entre a legislação sobre a tributação universal da renda e os tratados para evitar dupla tributação, especialmente no tocante às regras CFC, cujos embates, no mérito, ocorrem há muito na 1ª Seção, com posições prevalecentes nos dois sentidos, e sem que nunca se tenha invocado ofensa à Súmula nº 02.

Outra situação corrente é aquela na qual se propõe um controle da legalidade do fundamento do lançamento atacado. Isso se dá, por exemplo, nas hipóteses na qual o decreto, instrução normativa ou portaria que fundamentaram o lançamento contrariam alguma regra legal, ou nos casos em que a legislação contraria alguma norma geral veiculada pelo CTN.

A respeito do conflito com o CTN, menciono o Ac. nº 202-17.373[4], no qual se discutiu a contrariedade entre o artigo 61 da Lei nº 9.430/96 e o art. 138 do CTN, no tocante à exclusão de multas de mora na denúncia espontânea. Em seu voto, o relator afirmou que no “quando ocorre o choque entre lei ordinária e lei complementar o que se tem é uma hipótese de inconstitucionalidade e não de ilegalidade“, e que por isso o órgão não poderia se manifestar a respeito. Discordamos parcialmente dessa afirmação.

Aqui, é preciso distinguir entre duas situações: 1) nos casos em que a lei ordinária invadiu matéria que deveria ser materialmente tratada por lei complementar, não tendo sido regulada ainda, tratar-se-ia de um controle de constitucionalidade formal, impedido pela Súmula nº 02; 2) por outro lado, tratando-se de matéria já regulada pelo CTN, com a qual a lei ordinária conflite, a ofensa à CF aqui é meramente reflexa, pois a lei complementar tem aí posição hierarquicamente superior à legislação ordinária que com ela deve guardar compatibilidade [5].

Trata-se de um juízo de invalidade, mas não de inconstitucionalidade — a exemplo da jurisprudência do STJ sobre atos infralegais que estabelecem condições para o parcelamento, não previstas em lei (v. REsp nº 1.739.641/RS). Não se trata de controle de constitucionalidade, mas de simples aplicação das regras tradicionais para resolução de antinomias normativas.

Há até algumas leituras “livres” da súmula, como no Ac. nº 2402-006.034 [6], cujo voto eloquentemente assim dispõe: “o Art. 26-A do Decreto nº 70.235/72 exclui a avaliação de ilegalidade e inconstitucionalidade do âmbito de competência deste colegiado. No mesmo sentido é a Súmula Carf nº 02:“. Com a devida vênia, nem o artigo 26-A, nem a Súmula nº 02, dispõem qualquer coisa a respeito do controle de legalidade de atos infralegais. Trata-se de uma interpretação inventiva do teor desses dispositivos que é replicada, há muito e de forma não criteriosa, em diversos acórdãos (e.g. Ac. nº 206-00.986 [7]).

Vejamos, ainda nessa mesma questão, o Ac. nº 1301-005.347 [8], no qual o contribuinte alegou a ilegalidade do Decreto nº 5.331/2005, que restringiu quantitativamente o ressarcimento fiscal pela cessão de espaços em rádio e televisão para propaganda eleitoral, quando a Lei nº 8.713/93, em seu artigo 80, delegou ao Executivo tratar apenas sobre o modo e a forma que se daria isso. Sobre isso, afirmou a relatora, categoricamente, que “Também não compete ao Carf se manifestar quanto à ilegalidade do Decreto n. 5331/2005, ou negar-lhe vigência”. Onde há expressa essa proibição sobre isso? Não existe!

Ora, fosse o Carf incompetente para se manifestar sobre a validade de decretos, não teríamos decisões como a do Ac. nº 3401-006.222 [9], que reconheceu a ilegalidade do Decreto nº 4.524/2002 e da IN nº 247/2002, pela contrariedade com a Lei nº 11.195/2005, ao se discutir a inclusão do IPI no PIS/Cofins devido pelo fabricante substituto tributário.

Tampouco teríamos o vasto contencioso sobre a ilegalidade da IN SRF nº 243/2002 vis-à-vis a Lei nº 9.430/96, para fins de aplicação das regras de preços de transferência, no que diz respeito ao método PRL-60, sempre discutindo a questão no mérito, e não pela competência do órgão (e.g. Ac. 1102-00.610; 1201-00.658; 1101-001.079; 1103-00.672; 1201-001.680 e 1301-001.096). Ou não poderia haver o Ac. nº 1301-003.951 [10], reconhecendo a ilegalidade do artigo 56, §7º da IN 1022/2012 e a natureza jurídica de instituição financeira das agências de fomento.

Também não se incorre em ofensa à Súmula nº 02 os casos em que se propõe o afastamento da regra ao caso concreto, pela construção de exceções implícitas, e fundamentadas, à dicção literal do texto normativo (fenômeno da derrotabilidade normativa, já tratado aqui [11]). A construção de uma exceção para o caso é medida excepcional, voltada a determinar o âmbito de aplicação concreta da regra, sem que a validade dela em abstrato seja afetada. Em outras palavras, a regra original não é derrogada após a sua derrota diante de um caso concreto, seguindo válida para todos os demais casos (como observado pelo STF no RE nº 567.985/MT).

Nessa linha, podemos mencionar os vários casos que analisaram o afastamento da trava de 30% no aproveitamento de prejuízos fiscais, nos casos de incorporação da PJ (v. Ac. nº 9101-005.728 [12]). Nessa discussão, um dos lados propõe a construção de uma exceção implícita à regra limitadora da compensação, para os casos em que a pessoa jurídica será extinta, existindo no Carf, historicamente, diversos precedentes nos dois sentidos.

Outro exemplo é o Ac. nº 3402-003.023 [13], no qual o se verificou erro no cálculo do IPI, emitiu-se uma NF complementar dois dias depois, pagando a diferença, sem, entretanto, recolher os juros de mora desses dois dias. A fiscalização aduziu que não estavam presentes os requisitos do artigo 138 do CTN, mas o colegiado entendeu que a finalidade da regra fora alcançada, e que seria irrazoável a aplicação da multa em razão dos dois dias de atraso, excepcionando a regra no caso concreto, sem invalidá-la. No Ac. nº 1301-003.808 [14], o relator propôs o afastamento da multa pelo atraso de um dia no envio da Dirf, por atipicidade material, e prevaleceu a posição contrária, no mérito — sem se invocar em qualquer momento a aplicação da Súmula nº 02.

Demonstramos, no início, a inutilidade da Súmula nº 02, criada quando já existia dispositivo mais claro e mais amplo que ela, e o quanto ela tem sido invocada como fundamento para “restrições” à liberdade decisória e de análise de argumentos nos colegiados, indo muito além do alcance do artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72. Trata-se de um pleonasmo vicioso.

Abundam razões para que ela seja revogada e o tribunal passe a analisar mais detidamente o efetivo alcance da regra que trata da matéria, evitando suas reiteradas aplicações equivocadas que, em rigor, são verdadeiros cerceamentos do direito de defesa do contribuinte e mordaças decisórias nos conselheiros.

Carlos Augusto Daniel Neto é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

Consultor Júridico

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