Prevalece no STJ a opinião de Pontes de Miranda

Em uma quadra histórica em que do Direito Civil busca reafirmar sua autonomia epistemológica, em boa hora, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) pacificou o entendimento acerca da natureza jurídica e da eficácia da procuração em causa própria, prevalecendo, em ambas as turmas de Direito Privado daquela corte, a posição de Pontes de Miranda [1].

Tema dos mais controvertidos a procuração em causa própria, conforme já apontava Clóvis Bevilaqua, “tem sido capa de abusos e fonte inesgotável de contendas judiciárias” [2]. Daí a importância da atuação do STJ na pacificação da matéria.

As questões da natureza jurídica e dos efeitos do instituto desafiam há décadas tanto a doutrina quanto a jurisprudência nacionais.

O ponto central da controvérsia cinge-se a determinar se a procuratio in rem suam consubstancia ou não título translativo de propriedade, ou, dito de forma mais ampla, se a procuração em causa própria é apta a transferir os direitos (reais ou pessoais) que compõe o seu objeto.

Em precedentes da década de 1950, o Supremo Tribunal Federal, quando ainda competente para apreciar a matéria, reconheceu que o instituto seria equivalente ao contrato de compra e venda, possuindo, portanto, capacidade para transmitir o direito propriedade [3]. Todavia, também é possível localizar julgados da Corte Suprema no sentido de que a procuração em causa própria não seria meio de transmissão de direitos [4].

Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Superior Tribunal de Justiça passou a ser a Corte responsável por uniformizar a interpretação da legislação infraconsticional. No âmbito do Tribunal da Cidadania, no entanto, também era possível localizar precedentes perfilhando ambos os entendimentos, isto é, de um lado, julgados atribuindo à procuração em causa própria a aptidão para operar a transmissão de direitos subjetivos patrimoniais [5] e, de outro, precedentes negando-lhe a referida eficácia [6].

O cenário começou a se alterar em 2021, no julgamento, pela 4ª Turma, do REsp 1.345.170/RS, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, e consolidou-se em 2023, no julgamento, pela 3ª Turma, do REsp 1.962.366/DF, de Relatoria da ministra Nancy Andrighi.

Fixou-se o entendimento de que a procuração em causa própria é negócio jurídico unilateral que confere ao outorgado poder de representação para que o exerça em seu próprio interesse, por sua própria conta, mas em nome do outorgante.

Do ponto de vista do Plano da Eficácia, por meio da procuratio in rem suam, outorga-se ao procurador, de forma irrevogável, inextinguível pela morte de qualquer das partes e sem dever de prestação de contar, o poder formativo de dispor do direito real ou pessoal objeto da procuração.

Tal é a posição perfilhada por Pontes de Miranda no Tomo XLIII do Tratado de Direito Privado, obra que melhor tratou do tema em âmbito nacional:

“O poder de representação em causa própria é como qualquer outro poder de representação; apenas o outorgado o exerce em seu próprio interêsse. Se há, ou não relação jurídica subjacente, justacente, ou sobrejacente, a que êsse pode se ligue, não importa, no que diz respeito à natureza e à extensão do poder in rem suam. Pode bem ser que, nos têrmos da relação jurídica básica, haja outros direitos ou outros deveres do outorgado, ou do outorgante; nada disso atinge o poder de representação in rem suam, nas sua abstratividade. Infelizmente, imprecisões lamentáveis surgiram nos livros e nas decisões […]. A procura em causa própria é procura em nome do outorgante, pôsto que por conta do outorgado”. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, gestão de negócios alheios. Atual. Claudia Lima Marques e Bruno Miragem. t. XLIII. São Paulo: RT, 2012, p. 226-227).

Mais à frente, o autor arremata no que diz respeito à eficácia:

“3. QUAIS OS DIREITOS QUE SE ATRIBUEM OU SÃO ATRIBUÍVEIS AO PROCURADOR EM CAUSA PRÓPRIA. ¿Que é que o outorgante atribui ao procurador em causa própria? Não é a propriedade imobiliária, ou a mobiliária; nem o crédito, se a procura é a respeito de crédito.

(…) O que se transfere não é o direito de crédito, ou de propriedade, ou outro direito transferível: é o poder de transferi-lo, com todo o proveito e dano desde o momento em que se deu a procuração em causa própria. Tanto o procurador pode transferir a outrem como a si mesmo e, se o bem é divisível, a duas ou mais pessoas, dentre as quais se pode pôr. Há, portanto, atribuição de direito formativo dispositivo.

(…) A atribuição é de direito independente (selbständiges Recht) a exercer o direito de disposição (e. g., o direito de crédito). Não há a transmissão do direito de propriedade, ou de posse, nem a transmissão do direito de crédito”. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: direito das obrigações, gestão de negócios alheios. Atual. Claudia Lima Marques e Bruno Miragem. t. XLIII. São Paulo: RT, 2012, p. 240 e 244).

O instituto, portanto, segundo agora definido pelo STJ, não representa título translativo de direitos subjetivos patrimoniais, não se confunde com o contrato de compra e venda  como se chegou a afirmar , remanescendo, portanto, como verdadeira procuração, ainda que com caracteres especiais.

Conforme bem destacado pela relatora, ministra Nancy Andrighi, “no atual momento de desenvolvimento e complexidade das relações sociais e jurídicas, não parece adequado concluir que a procuração em causa própria possa transferir, diretamente, a propriedade de determinado bem, seja móvel, seja imóvel. Adotar essa conclusão acarreta a negação, e consequente violação, das disposições legislativas a respeito da transmissibilidade dos bens, bem como do próprio funcionamento do sistema registral brasileiro, sobretudo no que tange aos bens imóveis” [7].

Com efeito, a transmissão dos direitos subjetivos patrimoniais, a despeito da presença da procuração em causa própria, exigirá, portanto, a depender da espécie, a prática de posteriores negócios jurídicos obrigacionais (v.g. contrato de compra e venda, doação) e dispositivos (v.g. acordo de transmissão), com a observância, quando necessário, da disciplina própria do sistema registral.

Do exame do inteiro teor dos mencionados acórdãos, é possível constatar que ambas as turmas do STJ adotaram, expressamente e com ampla citação doutrinária, para a solução da hipótese concreta, a doutrina de Pontes de Miranda sobre a matéria, a demonstrar a profundidade e atualidade das lições do mestre tratadista.

É possível conjecturar que não haveria alegria maior para o autor de tantas e profundas linhas do que observar os seus estudos sendo utilizados, verdadeiramente, para guiar a distribuição dos bens da vida, com justiça. Afinal, como adverte logo no Prefácio ao Tratado: “a ciência precisa, para ser verdadeiramente prática, não se limitar ao prático”.

Nas vésperas do ano em que se completará a efeméride de 45 anos da morte do autor alagoano, é motivo de alegria e emoção constatar que as sempre objetivas e completas lições do mestre  que não se cingiram ao Direito Civil  continuam atuais e a dar frutos, contribuindo para o evolver do sistema jurídico nacional.

Augusto Cézar Lukascheck Prado é professor de Direito Civil, mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito da USP.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn
plugins premium WordPress

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor