Problemas sobre a vigência da lei estatal no espaço virtual

Desde há muito tempo — convencionou-se que pelo menos desde o Pacto de Westfália — o critério básico para a definição da vigência da lei estatal é o território. Embora ainda haja situações em que a aplicabilidade da norma jurídica está sujeita a outros aspectos (como, por exemplo, a sucessão de bens, que segue em regra a lei pessoal do de cujus), a Idade Moderna e a Idade Contemporânea conviveram sempre com a territorialidade da lei como princípio. Os casos excepcionais de extraterritorialidade apenas confirmam essa regra geral.

Nem sempre foi assim, contudo. Durante toda a Idade Antiga, o critério principal de vigência das normas era a lex personalis. Cidadãos romanos e estrangeiros submetidos ao Império não eram regidos pela mesma legislação, ainda que ocupassem um mesmo território nos limiares do poder político romano. Antes, na Grécia, a distinção entre leis que regiam os gregos e regras aplicáveis aos estrangeiros eram claramente observáveis [1]. Durante a Idade Média, a ascensão da lei costumeira, amálgama de Direito Romano com usos e costumes dos povos “bárbaros” (notadamente germânicos) tratou de esfumaçar um pouco os critérios da vigência da lei, mas o fenômeno da positivação do ordenamento — voltamos à Idade Moderna — sempre esteve intrinsecamente ligado à ideia de território.

Pois bem. Aparentemente, está-se no momento diante de mais uma viragem nesse processo. A emergência de espaços virtuais/digitais — que não podem, obviamente, viver ou continuar a viver a ausência de normas, a anomia — exige uma releitura do conceito de Estado e, por consequência, da própria noção de lei [2] e de vigência da lei [3].

Nesse contexto, os elementos tradicionais da entidade estatal (território, povo e poder soberano) exigem uma urgente releitura: existe agora um território, por assim dizer, virtual, com espaços igualmente virtuais em que a noção de cidadania/nacionalidade/pertencimento já não é mais a mesma, e que testam até mesmo a noção de soberania estatal.

Não é preciso recorrer a casos como o metaverso (ora já em declínio, talvez?). Basta ver ferramentas como redes sociais, mantidas pelas grandes empresas de tecnologia (as big techs) e as dificuldades dos diversos estados “soberanos” para impor suas regulações a essas plataformas. Como definir a “nacionalidade” de uma plataforma quando os dados são mantidos na nuvem, os usuários podem usar endereços de IP situados em outros países? Qual a lei aplicável quando um usuário com ferramenta VPN (que altera a localização do IP) acessa um site estrangeiro a partir de um provedor estrangeiro na internet (significativamente definida como a rede mundial de computadores)?

Questões como essas demonstram a possível obsolescência do critério espacial ou da territorialidade na definição da vigência da lei. Na melhor das hipóteses, faz-se necessário adaptar o conceito de territorialidade a essa nova realidade. Vale lembrar que é o Direito que “corre atrás” da realidade, adaptando-se a ela, e não o contrário…

Não se pense, aliás, ser essa uma discussão meramente teórico-especulativa. Para além do óbvio exemplo das redes sociais, pululam outros aspectos ainda por resolver. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), por exemplo, prevê sua aplicação da seguinte forma:

“Art. 3º Esta Lei aplica-se a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que:

I – a operação de tratamento seja realizada no território nacional;

II – a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; ou

III – os dados pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território nacional.

§ 1º. Consideram-se coletados no território nacional os dados pessoais cujo titular nele se encontre no momento da coleta.

§ 2º. Excetua-se do disposto no inciso I deste artigo o tratamento de dados previsto no inciso IV do caput do art. 4º desta Lei.”

Não se trata de um critério tradicional de territorialidade, como se vê. Ou, pelo menos, tem-se uma mescla do critério tradicional de territorialidade com diversos outros, tais como o território de oferecimento dos bens ou serviços para os quais se fez o tratamento de dados… Como definir onde os dados foram coletados pode, contudo, cair nos mesmos problemas e dilemas adiante comentados em relação às apostas esportivas…

Por outro lado, a questão de como regular (e tributar) sites de apostas esportivas (bets) mostra essa mesma necessidade de releitura do critério da territorialidade. A maioria — para não dizer a totalidade — desses sites é situada e registrada com domínio estrangeiro na internet, o que leva inclusive a algumas contradições curiosas, como é o caso da “betnacional.com”. Isso se deu como tentativa de fugir não apenas da tributação brasileira, mas também de legislações nacionais eventualmente restritivas dessa atividade. Ao menos para fins tributários, a questão parece ainda não resolvida, a ponto de o presidente da República ter editado uma medida provisória (MP) a fim de tributar os bilionários valores movimentados nessas plataformas [4]. Sendo o fato gerador ocorrido em “território brasileiro”, incide a lei tributária brasileira, criando a obrigação tributária principal. Assim, por exemplo, a legislação brasileira prevê a existência da loteria de quota fixa, “cuja exploração comercial ocorrerá no território nacional” sendo que “poderão solicitar autorização para exploração das loterias de apostas de quota fixa as pessoas jurídicas nacionais ou estrangeiras, devidamente estabelecidas no território nacional” (artigo 29, caput e § 4º, da Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, na redação dada pela Medida Provisória nº 1.182, de 25 de julho de 2023).

Como definir, nesse contexto, território brasileiro? Sendo o apostador pessoa física brasileira, conectado à internet por meio de provedor estrangeiro e com IP estrangeiro realizando aposta em site registrado em domínio estrangeiro, enquadra-se essa situação na hipótese de incidência da norma brasileira? E se a pessoa física for brasileira, mas domiciliada em país estrangeiro, porém realizar a aposta em site brasileiro com domínio brasileiro, incidirá o tributo? Se sim, há uma nítida situação de se aplicar o critério da lei pessoal do apostador, em detrimento do critério territorial. Ou então se considera que o território, para essa finalidade, é o país no qual o domínio do site está registrado: nesses casos, se se entende esteja sendo mantido o critério da territorialidade da lei, então “o buraco é mais embaixo”, e se considera que o território não é apenas a base física sobre a qual repousa a população do Estado, mas também o conjunto de sites cujos domínios estejam registrados como “.br”, um verdadeiro território virtual.

Nesse ponto, por exemplo, não se deve esquecer que o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014) regula a utilização da internet “no Brasil” (artigos 1º a 4º), mas sem especificar o que se entende como “território”. Já no artigo 11, define-se um critério que transita entre a territorialidade clássica e a lex personalis:

“Art. 11. Em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros.

§ 1º. O disposto no caput aplica-se aos dados coletados em território nacional e ao conteúdo das comunicações, desde que pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil.

§ 2º. O disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.

(…)”

Tudo isso, no entanto, não pode ofuscar os casos da legislação “física”, que ainda tem aplicação segundo a territorialidade. Boa parte — a maior parte da vida de talvez (ainda) a maioria das pessoas — ainda ocorre no mundo “real”, regida por leis “à moda antiga”. O território (ainda) é (também) físico. Que o digam a Crimeia e o Donbass [5].

De toda forma, é certo que a necessidade de vigência da lei em espaços virtuais traz questões que poucas décadas atrás nem sequer se colocavam. Talvez se caminhe para a substituição (ainda que parcial) do critério da territorialidade pela “nacionalidade” da pessoa física ou jurídica, ou até do domínio do site, ou seja, pode ser que se esteja presenciando o renascimento do critério da lex personalis. Ou então se pode entender pela manutenção do critério territorial para a vigência da lei, mas aí então será preciso uma releitura da própria noção de território estatal, para abranger não apenas a base física “real”, mas também o “território virtual” daquele Estado.

Seja uma mudança do critério universal da territorialidade, seja uma alteração mais estrutural no próprio conceito de Estado e de território, é certo que a teoria do Direito e da legislação precisa apresentar interpretações sobre essa mudança estrutural do âmbito de aplicação da norma jurídica. Talvez se esteja diante de uma das maiores mudanças no âmbito da teoria da norma desde o século 17; talvez um Pacto de Westfália Digital, 2.0, seja necessário com urgência.

João Trindade Cavalcante Filho é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, consultor legislativo do Senado Federal, professor de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Direito nos cursos de graduação, mestrado e doutorado do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e advogado.

Consultor Júridico

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