Rabêlo e Studart: Acesso à lei e autonomia do fomento à Cultura

No conto Diante da Lei, Kafka narra a história de um homem do campo, nos termos usados pelo autor, que tenta acessar a lei. Esse acesso se daria por meio de um grande portal, guardado por um porteiro que controla a entrada.

No entanto, por mais que esse homem tente acessar a lei, atravessando o portal, o porteiro não permite a sua entrada. O homem reclama, brada, mas nada altera a decisão do porteiro de não lhe permitir entrar. Ele então resolve esperar, senta-se em um banco ao lado do porteiro, passa a observá-lo, estudá-lo, buscando conhecer todas as suas nuances e segredos, sempre na tentativa de compreendê-lo e, assim, convencê-lo a lhe permitir entrar.

Mas o porteiro é impassível. Por vezes, ele submete o homem a extensos questionários, perguntas vazias e sem sentido, que fazem o tempo passar, entretém (e dão esperança) ao homem, mas que nunca resultam em seu acesso à lei.

Os anos passam e o homem, velho e já perto da morte, pergunta ao porteiro porque nunca outra pessoa veio até aquela porta, tentando atravessá-la. E ele lhe diz que aquela porta havia sido feita exclusivamente para ele e que, agora, com a morte do homem, ela seria fechada e o porteiro iria embora.

A metáfora é impactante e faz refletir sobre, afinal, para quem é a lei? E na cultura essa pergunta parece ainda mais pertinente. O formalismo e prolixidade das leis não é exclusividade do setor cultural, mas podem ser especialmente danosos quando aplicadas a essa seara.

A complexidade das leis e editais culturais, com normas e formulários extensos, regras profusas e exigências pesadas afastam as pessoas que mais precisam do fomento, ou as fazem dependentes de quem lhes “traduza” toda a burocracia.

Há tempos, as pessoas que atuam no campo cultural relatam os problemas causados pela burocracia legal para implementação das políticas culturais. No campo do direito administrativo, é comum ouvir que as únicas opções para a realização de qualquer gasto público é o uso das leis de licitações ou as normas associadas à legislação das parcerias, que não atendem, nem de longe, as especificidades do fomento cultural.

No campo do patrimônio cultural também não é diferente. Os instrumentos protetivos parecem ser compreensíveis apenas para os “iniciados”, colocando as pessoas detentoras dos saberes e fazeres alheias às regras estatais sobre as suas próprias manifestações culturais.

Será que o destino do campo cultural é se tornar refém de um monstro burocrático criado pelos próprios homens? A quem interessa a incompreensão da lei, o seu não acesso? Quem é o porteiro, afinal?

Algo parece muito errado. Os direitos culturais são direitos fundamentais que devem ser protegidos e garantidos pelo estado. O fomento às atividades culturais precisa ser compreendido como uma ação estatal para potencializar a difusão, circulação e acessibilidade cultural, visando a dignidade humana. A imposição de regras administrativas desarrazoadas desvirtua essa lógica, transformando o processo administrativo mais importante do que a política cultural em si.

Essa é uma inversão perigosa da eficiência administrativa pretendida pela Constituição, priorizando o meio e não o fim. É preciso adaptar o direito administrativo à cultura, não adequar e distorcer a cultura e suas nuances ao direito. Seguir nessa lógica de rigor burocrático é aceitar que o acesso ao fomento cultural é um emaranhado de normas e páginas de documentos, que mais se assemelham a uma gincana de quem erra menos do que a uma verdadeira intenção de potencializar o campo da cultura.

E a burocracia não pesa somente no agente cultural. É possível notar a epidemia de medo que vem se espraiando na administração pública. Um agente público amedrontado com a possibilidade de punições aplica uma interpretação normativa dura aos agentes culturais, com receio de que ele próprio possa ser condenado por “fugir” da norma ou ser “flexível” demais ao tentar ser menos burocrático.

O resultado disso? Agentes culturais inadimplentes e impedidos de participar de editais por não conseguirem sequer compreender as exigências que lhe são postas. Fora os altos custos pagos por estes em processos administrativos em Tribunais de Contas e processos judiciais, tentando não serem esmagados pela máquina pública.

O porteiro não permite o acesso à lei cultural, e ainda submete quem tenta acessá-la a perguntas, questionamentos, formulários, regras que, em suma, mais atrasam o acesso delas à lei, ou aos direitos culturais, do que qualquer outra coisa.

Mas nem tudo são trevas. É possível notar passos importantes no âmbito legislativo no sentido de dar maior acesso à lei cultural e autonomia ao fomento. O Distrito Federal e o estado do Ceará avançaram bastante com suas leis de fomento, criando regras específicas de repasse e seleção.

As Leis Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc inovaram ao garantir um fomento mais perene ao setor. Já o Decreto 11.453/2023 trouxe instrumentos jurídicos próprios para o repasse, regras flexíveis de prestação de contas e distinção clara entre o fomento direto e indireto.

Esse novo direito administrativo voltado ao fomento à cultura precisa ser espalhado por todo o país, a fim de dar maior segurança jurídica aos gestores e agentes culturais. Se o acesso à lei cultural é limitado, dificultoso, então que ela seja reformulada, que a porta venha ao chão para que a norma dialogue com as pessoas, dentro e fora da gestão pública, e não apenas consigo mesma, em uma burocracia sem fim e contrária à efetivação dos direitos culturais.

Cecilia Rabêlo é advogada, mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

Vitor Studart é vice-presidente da Comissão de Direitos Culturais da OAB-CE, coordenador da Assessoria Jurídica da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

Consultor Júridico

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