A relação entre o Brasil e a Itália se expande por muito tempo, sendo possível encontrar a influência de seus institutos jurídicos em nosso ordenamento, até porque somos vinculados ao mesmo sistema romano-germânico.
Naturalmente que nossa preocupação diária deve se voltar ao Direito aplicável no Brasil e, no caso do Direito Penal, o nosso Código Penal brasileiro. Mas nem por isso devemos ignorar o que ocorre em outros países, sobretudo aqueles que possuem uma forte relação conosco.
E diante deste interesse e até por curiosidade acadêmica, algumas considerações devem ser feitas em relação ao Direito Penal italiano, em especial o tema de legítima defesa, a qual, nos últimos anos, sendo objeto de debate em solo italiano.
Primeiramente, é válido relembrar de que modo este instituto é aplicável em nosso país.
A totalidade dos manuais de Direito Penal no Brasil identificam que o crime, à luz de um conceito analítico, se constitui dos seguintes elementos: fato típico, ilícito e culpável. Significa dizer que um fato será considerado um crime apto a gerar consequências no Direito Criminal quando, então, reunir os mencionados elementos.
No que compete ao segundo dos elementos mencionados, o Código Penal brasileiro lista, formalmente, quatro causas que excluem a ilicitude de um fato, entre eles, a legítima defesa.
Pelo conceito dado no caput do artigo 25 do Código Penal, aquele que, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, atua sob o estado da legítima defesa, excluindo a ilicitude de seu comportamento.
Em outras palavras, aquele que pratica determinado crime para repelir ou se defender de agressão injusta, age em legítima defesa, desde que o faça por meios moderados.
Ocorre que a letra fria da lei pode passar despercebido aquele que pode ser o principal requisito para o seu reconhecimento: a proporcionalidade. Significa dizer que, na situação concreta, deve existir um equilíbrio entre a ação e o revide, sendo eventual excesso culposo punido nos termos do Parágrafo Único do artigo 23 do Código Penal.
A questão é que, em determinados circunstâncias, a proporcionalidade revela um problema. Na tensão de um caso concreto, de que modo manter uma conduta equilibrada? Imagine-se um pai de família, com esposa e filhas, acaba tendo sua casa invadida por agentes criminosos, os quais buscam roubar seus pertences e praticar atos sexuais; de que modo é possível exigir, da vítima, moderação nos seus atos na defesa de sua família?
É sabido que a punibilidade para crime culposo exige disposição específica, ante a previsão do Parágrafo Único do artigo 18 do Código Penal. Assim, crimes como homicídio e lesão corporal admitem a figura culposa. No exemplo mencionado, a vítima poderia incorrer, naturalmente, em tais crimes, caso adotado um revide considerado desproporcional.
O requisito da proporcionalidade pode ser valorado sob diversos modos, especialmente quando não se está na posição da vítima. A dificuldade é aumentada quando não há um critério efetivamente estabelecido na doutrina ou jurisprudência do que é ou não proporcional, cabendo órgão acusador e, em especial, ao magistrado determinar no caso concreto.
Esta questão também era causa de debate na Itália.
Analisando o artigo 52 do Código Penal, que trata da Difesa Legittima, constatam-se os mesmos requisitos da legitima defesa brasileira, isto é, existência de um direito próprio ou alheio, atualidade da agressão, injustiça da agressão, necessidade e, especialmente, a proporcionalidade do ato da defesa.
Segundo o dispositivo, quem cometeu crime não é punível por ter sido forçado pela necessidade a defender o próprio direito ou o direito de outrem contra perigo atual de um delito injusto, desde que a defesa seja proporcional ao ataque. Ou seja, não se verifica maiores divergências em comparação ao Código Penal brasileiro.
Ocorre que por meio da Lei nº 36, de 26 de abril de 2019, o Código Penal Italiano foi modificado justamente na aplicação da legítima defesa.
Com esta reforma a proporcionalidade passou a ser reconhecida sempre de forma absoluta na hipótese da legítima defesa domiciliar, isto é, quando ocorrer dentro do domicílio da vítima ou outro lugar onde seja exercitada uma atividade comercial, profissional ou empresarial.
Significa dizer que, se a vítima ferir ou mesmo matar um sujeito por meio de uma arma de fogo, o legislador concede maior proteção ao sujeito que viu a violação ocorrer em seu domicílio.
Portanto, o que seria objeto de discussão se tal ato é ou não proporcional, pela disposição legal, impõe-se o reconhecimento da legítima defesa.
Possivelmente o Parlamento italiano buscou eliminar o subjetivismo incorporado no requisito da proporcionalidade, de modo a garantir maior segurança jurídica da vítima em agir de acordo com a situação que está inserido, sem a ameaça de responder criminalmente.
Porém, parece que tal tentativa encontrou óbice nos casos submetidos ao Poder Judiciário, de modo que jurisprudência italiana balizou a aplicação absoluta do instituto.
Por exemplo, o Tribunal de Cassação da Itália — que equivale, em linhas gerais, ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), na Sentença nº 49.883 de 2019, especificou que a justificativa não poderia aplicada de forma automática, sem que todos os fatos e circunstâncias do caso tenham sido devidamente apurados.
Já na Sentença nº 40.414, de 13 de junho de 2019, o Tribunal considerou que a legítima defesa domiciliar, no formato atual, “…não permite uma reação indiscriminada contra quem entre fraudulentamente na casa de outrem, mas exige que essa intrusão tenha ocorrido com violência ou com ameaça de uso de armas ou outros instrumentos de coação física, portanto, a ponto de ser percebida pelo agente como uma agressão, ainda que potencial, à segurança própria ou alheia”.
Por fim, na Sentença nº 33.191, de 2019, a Corte compreendeu que a reação só será legitima quando assumir a forma de uma resposta a um perigo real e tangível e verdadeiramente ofensivo; assim, quem agredir um vizinho que subia na sua própria varanda para chegar à varanda adjacente, de propriedade do vizinho, que estava trancado do lado de fora de sua própria casa, poderia ser responsabilizado pelos ferimentos – exemplo dado na própria decisão.
É inegável que a jurisprudência da Corte italiana interpretou de forma restritiva a alteração legal, reafirmando a necessidade de analisar o caso concreto.
Entretanto, ainda assim, as decisões sinalizam que a alteração exigirá do intérprete uma avaliação das circunstâncias concretas da forma mais favorável possível para com a pessoa que reagiu a violação indevida de seu domicílio e não em relação ao agressor.
De todo modo, por se tratar de um tema de grande complexidade no Direito Penal, vale a reflexão de como outros países buscam aplicar o instituto da legítima defesa e de que modo o Brasil pode se aproveitar disso.
Rafael de Oliveira Citá é advogado, servidor público e pós-graduando em Ciências Penais e Segurança Pública.