Muitas notícias cirularam acerca do fato relevante divulgado pela Americanas [1] que revelou um passivo inicial de mais de R$ 20 bilhões da companhia. Diante do contexto formado por ações pregressas na condução da empresa, várias consequências foram percebidas, tais como a recuperação judicial da companhia ou a queda do seu valor de mercado.
Em relação a este ponto, a Americanas contou com a significativa queda de mais de R$ 64 bilhões em uma semana após a divulgação do fato e as ações negociadas na bolsa de valores brasileira chegaram a cair de R$ 12 para menos de R$ 1 nos dias subsequentes. Essa situação acabou por gerar grandes impactos aos acionistas da companhia, notadamente aos minoritários que, por muitas vezes, dispendem de parte relvante de seu patrimônio para investir na empresa.
Decorrente disso, alguns grupos de acionistas já iniciaram um procedimento arbitral perante a Câmara do Mercado em face da companhia para discutir os prejuízos suportados e, nesse sentido, surge o seguinte questionamento: como poderá se desenvolver um processo em que figurariam uma infinidade de acionistas que foram prejudicados em razão dos atos da companhia?
Antes de iniciar a análise sobre a questão, é importante destacar que este artigo não busca se imiscuir nas discussões sobre a possibilidade ou não de responsabilização da companhia pelos atos de gestão de seus dirigentes, mas tão somente focar a sua análise em formas pelas quais um procedimento poderá se adequar a uma realidade de diversos indivíduos figurantes em um dos polos da demanda.
Em um primeiro momento, o arcabouço jurídico brasileiro define, na Lei nº 7.913/89, que o Ministério Público e a Comissão de Valores Mobiliários terão a legitimidade de propor uma ação a fim de evitar ou ressarcir danos causados a titulares de valores mobiliários.
Ainda que se tenha uma discussão se o rol de legitimados seria taxativo ou não em razão da aplicação subsidiária das normas da Ação Civil Pública, fato é que não há uma base legal que permita a congreação de diversos indivíduos sem que haja, ao menos, a necessidade de criação de uma associação e de aguardar o transcurso de um ano para que a instituição possa ingressar com a ação.
Não obstante a isso, insta pontuar que a Americanas detinha cláusula arbitral em seu Estatuto Social [2] e, em razão disso e com base no artigo 136-A da Lei de Sociedades Anônimas, todos os acionistas estarão vinculados à clausula compromissória. Dessa forma, os conflitos que envolvam a companhia e seus acionistas minoritários serão submetidos ao procedimento arbitral da Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM).
Atualmente, o regulamento da CAM não prevê disposições específicas que permitam a facilitação de ingresso de um procedimento arbitral aos acionistas minoritários, quando estes compreendam a uma coletividade de requerentes do pleito. Nessa mesma esteira, a Lei de Arbitragem brasileira também não traz disposições específicas que permitam facilite a propositura de um procedimento arbitral que conte com uma infinidade de indivíduos em um dos polos do feito.
Essa ausência de regulamentação específica foi inclusive objeto de uma sugestão da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) [3]. De acordo com a instituição, é recomendável que se desenvolva na câmaras brasileiras, notadamente as que tratem sobre litígios de acionistas minoritários, regulamentações específicas sobre o procedimento arbitral para os casos de arbitragem coletiva.
Como base para os procedimentos arbitrais coletivos, a class action estadunidense é um grande referencial normativo para verificar os preceitos que podem lastrear um procedimento arbitral coletivo — utilizada, inclusive, para definir os procedimentos arbitrais coletivos da AAA e da JAMS, a fim de oportunizar uma melhor condução da demanda e efetivação de eventual direito atrelado aos minoritários.
Dentro a Rule 23, lei estadunidense que disciplina a class action, existem quatro premissas básicas de admissibilidade que devem ser observadas para que o processo possa ser considerado de classe e permita a representação adequada desse grupo de pessoas. O primeiro deles é a numerosidade, a qual relaciona-se ao fato de a classe ser tão numerosa que torna impraticável a reunião de todos os seus membros.
Já o segundo requisito é o commonality, cuja aplicação vincula-se à constatação de direitos em comum entre os membros da classe. O terceiro requisito, por sua vez, trata da tipicidade, o qual preconiza que a tese de defesa do representante da classe necessita estar alinhada com os anseios da coletividade — atendendo, assim, a teoria do interesse da representação.
Por fim, o quarto requisito de admissibilidade é a adequação da representação da classe, fazendo imperativa a obrigação de que o representante da classe defenda de maneira adequada e justa o interesse da classe. Nesse ponto, é comum que se avalie a existência de conflito de interesses e se há número suficiente de representades para o tamanho da classe, por exemplo.
Esses requisitos — que estão previstos nas regras da AAA de arbitragem coletiva — permitem que os membros da classe tenham uma melhor certificação de sua demanda, a medida que são fornecidos critérios para a organização e admissão da classe em um procedimento de forma mais organizada e prática. Ressalta-se, ainda, que essa organização encoraja os acionistas minoritários a postularem o seu direito, vez que os custos são reduzidos e a possbilidade da contratação de profissionais capacitados aumenta.
Além disso, a experiência estadunidense demonstra que a maior parte dos processos coletivos que estão vinculados à class action tendem a ser finalizados em acordos promvidos pelas companhias, decorrentes dos custos inerentes à manutenção do procedimento e possibilidade de condenação das empresas. Esse fato permitiria, de certa maneira, a proteção dos acionistas minoritários, ao passo que te.
Dessa forma, pelos preceitos apresentados, infere-se que a class action traz bases que permitem organizar o procedimento arbitral coletivo e promover a eficiente condução de um procedimento que conte com uma infinidade de indivíduos que possam ter tido o seu direito violado e que sozinhos não conseguiriam promover um procedimento arbitral. Assim, torna-se imprescindível a observância a esse referencial normativo para a condução das arbitragens que envolvam o caso Americanas e os demais procedimentos coletivos que eventualmente poderão ser propostos.
Rafael Henrique Reske é advogado no escritório Passinato & Graebin — Sociedade de Advogados, pós-graduando em Direito Societário e Novos Negócios na FAE Business School, bacharel em Direito Integral Law Experience da FAE Centro Universitário e membro do Comitê de Jovens Arbitralistas (CJA) da CBMA.