Ramos da Silva: Prescrição intercorrente e administração federal

Previsão legal e âmbito de aplicação da prescrição

O tema da prescrição da pretensão punitiva da administração pública federal encontra sua previsão legal na Lei Federal nº 9.873, de 23 de novembro de 1999, onde há o estabelecimento do prazo de prescrição, direta e indireta.

O artigo 1º da referida lei já traz a previsão dos prazos de prescrição, tanto para a ação punitiva da administração pública quanto para os procedimentos administrativo em curso. Porém, importante para o tema aqui abordado, portanto, ater-se à previsão do § 1º, uma vez que ao se tratar de procedimentos pendentes de julgamentos por parte de órgão ambiental federal, qual seja, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), esta ordem legal é plenamente aplicável, conforme se verá adiante.

De pronto, portanto, já temos a delimitação do âmbito de aplicação da referida lei, haja vista que será referência normativa apenas para procedimentos originários de órgãos da administração pública federal, não se aplicando, portanto, para órgãos estaduais e municipais, salvo em caso de previsão específica em lei estadual ou municipal, obviamente.

Mas não apenas isso. O próprio § 2º, do artigo 1º, é claro em afirmar que em caso de a infração também constituir um crime, esta prescrição levará em consideração o prazo previsto na lei penal. Ou seja, em caso de infração ao meio ambiente que, concomitantemente, também configure crime ambiental — pela Lei Federal, nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 —, valer-se-á para fins de contagem de prazo prescricional a pena prevista para o crime ocorrido.

A prescrição ocorrida no curso do procedimento administrativo é a chamada prescrição intercorrente, uma vez que é aquela em que a parte interessada perde o direito de exigir judicialmente algum direito por conta de sua inércia no curso do processo. Importante pontuar que, para o presente caso, é importante que não haja ainda nenhuma decisão passível de execução no processo, pois, se houver, é o caso então da prescrição prevista no caput do artigo 1º da Lei Federal nº 9.873/1999.

Realizada essas considerações iniciais com a delimitação de aplicação da chamada prescrição intercorrente, passa-se à análise de sua aplicação nos procedimentos em curso no órgão ambiental federal, o Ibama.

A prescrição intercorrente nos procedimentos administrativos do Ibama

Como visto acima, os procedimentos administrativos perante a administração pública federal possuem um regramento específico quanto à incidência da prescrição, seja intercorrente ou não. De igual forma, quando se trata de processos administrativos federais que apuram infrações ambientais, sua norma também é específica, porém, coincidente com aquela.

O regramento para verificação de prescrição nos processos administrativos federais que apuram infrações ambientais está disposto no Decreto Federal nº 6.514, de 22 de julho de 2008, mais especificamente em seus artigos 21 e 22.

A exemplo da lei federal, o decreto também trouxe, seguidamente, ambas as possibilidades de prescrição, a na sua forma pura a na forma intercorrente (no curso do processo). No caso, fica evidente que, para a ocorrência da prescrição intercorrente, o procedimento deve, necessariamente, estar pendente de julgamento ou despacho, sendo característica importante, portanto, que o procedimento esteja apenas na sua instrução processual, sem decisão final irrecorrível do órgão ambiental.

As dúvidas quanto à sua aplicação na prática começam a surgir a partir do momento em que se torna necessário uma análise aprofundada caso a caso dos próprios andamentos processuais de cada procedimento administrativo em curso no órgão ambiental. Isso pois o próprio decreto prevê algumas hipóteses que têm a força de interrupção da prescrição, conforme se denota do seu artigo 22.

Assim, evidente que apenas uma análise mais detalhada dos atos processuais de cada procedimento administrativo pode ensejar na configuração da chamada prescrição intercorrente. O que nos leva a outro questionamento: Quais seriam então os chamados “atos inequívocos que impliquem instrução do processo“?

Importante, ainda, complementar as previsões acima com as dispostas em recente Instrução Normativa expedida pelo Ibama. Trata-se da Instrução Normativa nº 19, de 2 de junho de 2023, a qual regulamenta o processo administrativo para apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Tal instrução normativa prevê em seu artigo 64 o regramento para prescrição e, principalmente, de interrupção de prescrição, reconhecendo, em seu artigo 65, a chamada prescrição intercorrente dos procedimentos administrativos no prazo de três anos, assim como a lei federal e o decreto federal.

Note-se, todavia, que, além das previsões já existentes no Decreto Federal nº 6.514/2008, a nova instrução normativa prevê um novo “ato” de interrupção do prazo prescricional, qual seja, “qualquer ato inequívoco que importe manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória“, o que, por si só, demanda maiores questionamentos sobre o que configuraria tal ato. Ou seja, é dizer que tal previsão importa em novo parâmetro de análise dos procedimentos administrativos em trâmite perante o órgão ambiental federal.

A partir destas previsões normativas, pode-se dizer que se está diante dos chamados conceitos legais indeterminados, uma vez que não se trata de uma situação fática clara, com um rol exaustivo para sua configuração, mas que demanda, além de uma análise processual, uma interpretação jurídica sobre os “atos inequívocos” a que o regramento se refere.

A resposta aos questionamentos, por sua vez, vem, num primeiro momento, do próprio órgão ambiental, mediante sua decisão administrativa. Sendo tal decisão insatisfatória tecnicamente, cabe então a possibilidade de questionamento perante o judiciário, o qual possui diversas decisões sobre o tema, conforme se verá adiante.

Assim, feito este recorte específico quanto à aplicação da prescrição intercorrente nos procedimentos administrativos em curso perante o Ibama, nos cabe uma breve análise de alguns julgados sobre o tema, inclusive para fins de esclarecer os questionamentos acima, haja vista que não possuem uma definição específica.

O entendimento dos tribunais sobre a prescrição intercorrente

Inicialmente, é importante pontuar que o reconhecimento da prescrição intercorrente nos tribunais superiores já é pacífico, inclusive no que tange procedimentos administrativos em curso no Ibama [1]. E não poderia ser diferente, haja vista que perante o Superior Tribunal de Justiça já há o Tema Repetitivo nº 328 [2], decorrente do REsp 1.115.078/RS. Nele, discorre-se:

“Questão submetida a julgamento: Cinge-se a controvérsia sobre o prazo prescricional para a cobrança de multa administrativa por infração à legislação do meio ambiente aplicada por órgão ou entidade da Administração Pública Federal, direta ou indireta: se quinquenal, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/32, ou vintenária, segundo o art. 177 do Código Civil de 1916.

Tese firmada: É de três anos o prazo para a conclusão do processo administrativo instaurado para se apurar a infração administrativa (‘prescrição intercorrente’).

Delimitação do Julgado: ‘A questão debatida nos autos é, apenas em parte, coincidente com a veiculada no REsp 1.112.577/SP, também de minha relatoria e já julgado sob o regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ nº 08/2008. Neste caso particular, a multa foi aplicada pelo Ibama, entidade federal de fiscalização e controle do meio ambiente, sendo possível discutir a incidência da Lei 9.873, de 23 de novembro de 1999, com os acréscimos da Lei 11.941, de 27 de maio de 2009. No outro processo anterior, a multa decorria do poder de polícia ambiental exercido por entidade vinculada ao Estado de São Paulo, em que não seria pertinente a discussão sobre essas duas leis federais’.

E, para não restar dúvidas sobre a aplicação deste entendimento perante os tribunais superiores, recente decisão em sede de agravo interno em recurso especial [3], de lavra do ministro Benedito Gonçalves, foi clara e sucinta nos seguintes termos:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. FISCALIZAÇÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO. PRESCRIÇÃO TRIENAL INTERCORRENTE. OCORRÊNCIA.

1. Tendo o recurso sido interposto contra decisão publicada na vigência do Código de Processo Civil de 2015, devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele previsto, conforme Enunciado Administrativo n. 3/2016/STJ.

2. No processo administrativo fiscalizatório incide a prescrição intercorrente, após a paralisação por mais de três anos, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei 9.873/99, sem a ocorrência de causa de interrupção. Precedentes.

3. Agravo interno não provido.”

Importante, igualmente, analisar trecho do voto do ministro relator, que fundamentou sua decisão nos seguintes termos:

“Isso porque, no que se refere ao prazo prescricional, extrai-se do acórdão recorrido, que ‘entre a lavratura do auto de infração nº 545236-D, em 16/07/2008, e o julgamento de 1ª instância, em 27/08/2015, foi proferida manifestação jurídico instrutória, em 08/07/2013. Tal manifestação, entretanto, como dito anteriormente, por não traduzir ato efetivamente destinado à apuração de fatos, não tem o condão de interromper o decurso da prescrição’ (grifou-se). Ou seja, sete anos entre a lavratura do auto de infração e o julgamento.

Assim, o acórdão recorrido encontra-se em consonância com o entendimento desta Corte Superior na aplicação da prescrição intercorrente, após a paralisação por mais de três anos, nos termos do art. 1º, §1º, da Lei 9.873/99, sem a ocorrência de causa de interrupção.”

A partir da análise do referido voto, tem-se alguns questionamentos que decorrem da previsão normativa sobre prescrição intercorrente, conforme visto anteriormente, que são, principalmente, em torno das causas de interrupção de prescrição. Para tanto, valemo-nos de julgamentos dos Tribunais Regionais Federais, que especificam, de alguma forma, os entendimentos sobre os atos aptos a interromper a prescrição.

A primeira interpretação combatida pelos Tribunais Regionais Federais diz respeito ao entendimento sobre os despachos que buscam, de fato, encaminhar para alguma decisão no bojo do procedimento administrativo.

Nesse sentido, os chamados despachos de mero expediente não podem ser considerados como atos suficientes para interromper a prescrição, uma vez que se trata de um encaminhamento interno natural no curso do procedimento, não se podendo, portanto, admitir a utilização de qualquer tipo de despacho administrativo como marco interruptivo, sob o risco de sua utilização transformar o curso processual eterno e imprescritível [4].

O que se quer dizer é que meros despachos de encaminhamentos, apresentação de relatórios e/ou qualquer ato burocrático praticado não podem ser confundidos com “inequívoco” ato apuratório de fatos ou de impulsionamento processual visando à apuração de fatos, razão pela qual são inaptos a interromper a prescrição, sob pena de desvirtuamento da norma [5].

Mas, ainda, não resta clareza sobre quais seriam os despachos hábeis a interromper o prazo prescricional. Para tanto, todavia, recorremos a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça [6] que definiu o seguinte:

“[…] No caso, despacho, deve ser compreendido como qualquer ato da Administração praticado no processo administrativo que resulte efetiva inovação nos autos, como ocorre com as manifestações técnicas produzidas pela Administração acerca dos elementos trazidos aos autos processuais (análise de fatos, provas e defesas), com os pareceres e até mesmo com a adoção de providências internas ou externas que importem impulso processual (expedição de intimações, por exemplo). 7. Entretanto, não pode ser considerada como despacho a mera circulação dos autos pelas diversas áreas técnicas da Administração envolvidas no processo sem a produção de uma efetiva manifestação, ou a mera repetição de manifestações ou providências já presentes nos autos.”

Adiante, outro questionamento possível é se um ato de mero expediente pode ser considerado um ato de interrupção de prescrição. Na mesma linha de entendimento sobre os despachos, tem-se que os atos de mero expediente também necessitam de características de encaminhamento para uma instrução/decisão, uma vez que simples movimentação processual ou de expediente não pode ser confundido com um ato inequívoco para apuração do fato objeto do procedimento [7].

Veja-se que alguns atos processuais, no mesmo sentido dos despachos, são aqueles inerentes ao correto decurso do procedimento administrativo, de forma que, quando não direcionados para a sua instrução, não podem ser equiparados àqueles que possuem o condão de interromper a prescrição [8]. Ou seja, atos de mero expediente (como memorando para encaminhamento de documentos; ofício para localização de documentos supostamente extraviados; e consulta à procuradoria federal para verificação da ocorrência da prescrição intercorrente), não são hábeis para interromper a contagem de prazo prescricional [9].

Nota-se, portanto, que, em que pese o regramento em torno das causas de interrupção de prescrição não trazer uma definição específica sobre os chamados “atos inequívocos“, coube ao Judiciário dar a correta interpretação dos dispositivos consoante as situações fáticas de cada procedimento administrativo.

Os entendimentos do Tribunais Regionais Federais, bem como do próprio Superior Tribunal de Justiça, servem de baliza para uma análise mais detalhada do grande número de processos administrativos em curso perante o Ibama, de forma que, cada dia mais vai se consolidando a tese da chamada prescrição intercorrente.

Luis Ricardo Bernardo Ramos da Silva é advogado e consultor jurídico, mestre em Políticas Públicas pelo Insper-SP e especialista em Direito Ambiental e Sustentabilidade pela PUC-PR.

Consultor Júridico

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