Raquel Prates: Soberania inquisitiva e o artigo 385 do CPP

O sistema processual penal adotado pela Constituição brasileira de 1988 é reconhecido como acusatório, tendo em vista o modelo publicista. Logo, democracia e sistema acusatório compartilham uma mesma base epistemológica [1].

Nossa Constituição, porém, não prevê expressamente a garantia de um processo penal orientado pelo sistema acusatório, mas nela há uma série de regras que nutrem tal modelo [2].

Destarte, como ensina Coutinho, quando a mera leitura prova a insuficiência, o óbvio deve ser desenhado: “Cada parte tem o seu lugar constitucionalmente demarcado” [3], ou, ao menos, deveria ter. Desde o marco constitucional, foram retiradas do magistrado atividades típicas da acusação, e somente com a Lei nº 13.964/2019 e a inserção do artigo 3º- A é que foi consagrada a adoção do sistema acusatório e, assim, o afastamento do agir de ofício do juiz [4].

Todavia, o velho artigo 385, que se acomodou ao CPP em 1941, com hálito inquisitorial, resiste às tentativas de modernização do Código. Contudo, é sabido que nenhuma mudança significativa se dá na calmaria de bons tempos; as crises [5], por vezes, são necessárias. Eis a esperança em torno do processo penal brasileiro, que ruma para algo menos pior que um dia já foi.

No entanto, é do ser humano a sujeição às inseguranças próprias da vida, mas, no processo criminal, não deve haver margem para a insegurança jurídica e nem “a penumbra das excepcionalidades” dos casos deve iluminá-la, visto que, no Brasil, as eventualidades não figuram exceções, de modo que a gestão do poder precisa ser limitada, pois é urgente guarida segura aos que sucumbem às dúvidas do Estado em suas atividades persecutórias para além do status inicial rotular da inocência.

Do contrário, íntimas convicções maquilam a legalidade e a podridão basilar do autoritarismo. É por conta disso que ressaltamos a importância da correta compreensão dos sistemas processuais e, por conseguinte, do lugar do juiz no processo penal.

Nesse giro, os sistemas processuais penais constituem o que se poderia denominar como princípio modular, a espinha dorsal de qualquer teorização sobre o espaço de deslocamento de significantes que configura o processo penal contemporâneo [6]. Cronologicamente, o sistema acusatório predominou até meados do século XII, sendo gradativamente substituído pelo modelo inquisitório prevalecente até o final do século XVIII.

Coutinho assim define esse sistema: “O maior engenho jurídico que o mundo conheceu; e conhece. Sem embargo de sua fonte, a Igreja é diabólica na sua estrutura, o que demonstra estar ela, por vezes e ironicamente, povoada por agentes do inferno! Persistindo por mais de 700 anos. Não seria assim em vão: veio com uma finalidade específica e, porque serve — e continuará servindo, se não acordarmos —, mantém-se hígido” [7]. Assim, o inquisidor acusava, porém, não sem cumular a vista do próprio ponto ao julgar, destinando à pouca sorte o sujeito à soberania maculada da sua íntima convicção.

Ferrajoli, chama de acusatório todo o sistema processual que concebe o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e a um juízo desde uma contenda entre iguais, iniciada pela acusação, a quem compete o ônus da prova [8].

Trata-se, portanto, do afastamento de funções que restam compatíveis apenas com o juiz-espectador; limitando seu convencimento e soberania à circularidade das importantes funções que lhe são próprias, como julgar.

Nesse passo, o fortalecimento do sistema acusatório promove a imparcialidade, jamais a neutralidade, visto que, como ensina o filósofo Timm nas palavras do Levinas: “Pensar não é mais contemplar, mas engajar-se, estar englobado no que se pensa, estar embarcado — acontecimento dramático do ser-no-mundo” [9]. Dessarte, a imparcialidade é passível de escolha; já a neutralidade independe dela e é inalcançável.

Quanto ao sistema misto, significa lançar tudo no nada, porque, além da fase pré-processual que origina o inquérito policial, o processo não é (apesar da já referida Lei nº 13.964/19 fincar a bandeira no princípio acusatório) de todo acusatório; e o artigo 385 do CPP ilustra a burla à filtragem constitucional. Coutinho aventa que ambos os sistemas são mistos, pois não há mais sistema processual puro, razão pela qual se observam todos como sistemas mistos […]. Assim, na essência, o sistema misto é ou inquisitório ou acusatório, recebendo adjetivações elementais secundárias, emprestadas de um sistema ao outro [10].

Cunha Martins, por sua vez, acerta ao sintetizar que no processo inquisitório há um desamor pelo contraditório; de modo que o modelo acusatório constitui uma declaração de amor pelo contraditório [11]. Sendo possível escolher, que o amor não falte pelo caminho… Sobretudo e não obstante ao bel-prazer da sorte, o estado da arte é este: no dia 14 de fevereiro de 2023, por ocasião do julgamento do REsp. nº 2.022.413 — PA, a 6ª Turma do STJ posicionou-se em favor da possibilidade de condenação do réu, mesmo diante do pedido de absolvição pelo Ministério Público, sob boas conjunções adversativas (mas, porém, todavia; em outras palavras: apesar disso, aquilo e acolá previsto em lei, livre decido e assim tem de ser aos que também gozam da soberania ao decidir).

Pobre sistema acusatório, vencido, mais uma vez, pelo desamor [12]. O que não reduz a nobreza intelectual dos integrantes da respeitável corte, que não pouco surpreendem a comunidade jurídica com sérias decisões garantistas, mas não há que se deixar passar que a decisão vai na contramão do marco legislativo ocorrido no dia 23 de janeiro de 2020, que, mesmo não de todo bom, aparentou um avanço em relação ao que passou. Ledo engano!

Isso porque não foi interiorizada, quiçá efetivada a mudança: da cultural à legislativa. No entanto, há o tensionamento precursor da mudança, mas a zona de conforto conduz ao apego passivo na, só aparente, sutil mutação do arcaico sob o novo. Ou seja, para além de ressignificar teses intuídas à higidez do antigo sistema, lançar mão do total controle das “peças sob o tabuleiro” é que resultaria no verdadeiro xeque-mate; ainda assim, sem vencedores.

Entretanto, despir-se do apego ao deixar ser o que na essência o sistema acusatório é (constitucional anti-juiz-ator-inquisidor) resvalaria positivamente, credibilizando às “demais peças” possibilidades básicas de realizarem o que estão destinadas pela própria Constituição a realizar, como demonstrar que, apesar dos pesares, ao menos, ainda dispõem de capacidade cognitiva mínima, legitimidade Institucional e comprometimento com a ética ao acusar, ou não, uma pessoa.

Assim, a Lei 13.964/19 presta um desserviço à sociedade e, principalmente, aos operadores do direito que, a partir desse cenário, mal sabem onde pisam, se não levados a sério seus comandos normativos.

Ora, pois, dum lado, há o inquisitivo artigo 385 do CPP, doutro, o artigo 3º- A da referida Lei, que flerta apaixonado com o sistema acusatório, bem como o artigo 2º da LINDB, que possibilita a revogação da lei anterior em relação à posterior quando passível de incompatibilidade (nesse caso, revogação tácita, pois um art. que possibilita o “carimbo da condenação sob um pedido de absolvição” é, em seu âmago, inquisitório).

À guisa de conclusão, no referido REsp foram emergidos dois questionamentos, sendo o primeiro: no caso do MP, deixar levar-se por um erro matemático e manifestar-se, em alegações finais, pelo reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva, estaria o juiz obrigado a chancelar o referido cálculo e declarar extinta a punibilidade do réu, mesmo ciente do evidente equívoco? Não se trata de um pedido expresso de absolvição, mas de um erro material, logo, ele deveria apenas manifestar-se de forma a elucidar o cálculo, a fim de desenhar ao MP que (1 + 1 = 2, e não 5), por exemplo, assim, há que falar no juiz que está, de fato, exercendo a função que lhe é própria: a de garante.

A segunda questão trata da hipótese de o MP pedir a absolvição do réu no plenário do Tribunal do Júri; estariam os jurados obrigados a acompanhar tal pleito, a despeito da soberania dos vereditos? De modo que o juiz-presidente deveria dissolver o Conselho de Sentença? Quando há um pedido de absolvição, o que se tem, por óbvio, é a perda de objeto do processo; assim como num cálculo, valer-se-ia o juiz do seguinte exemplo: (processo + objeto = possibilidade de condenação; processo – objeto = absolvição). Logo, os jurados não votam, e o juiz, não sem antes fundamentar, absolve. O que não seria um feito inovador no mundo, visto que, na Espanha [13] e no Sistema norte-americano [14], assim procede o julgador quando diante da simples questão.

Por fim, já sabemos o passado sombrio da inquisição e que inocentes minguaram em cinzas pelos “bem-intencionados” da época, os quais ateavam fogo por uma mão, hasteando a cruz com a outra, justificando os diabólicos atos na sagrada causa final.

Em casos de equívocos, pela “nobreza dos motivos”, o in dúbio dos céus garantia o bom tempo, e deus também fingia não ver. Embora reles mortais, não incidir no mesmo erro revela compromisso com a história.

Além disso, mais que aderir ao sistema acusatório, é preciso internalizar a mudança e insistir nela, visto que é abusivo forçar na Cinderela os velhos sapatos da infância. Os tempos são outros, e ela sabe disso!

Rute Raquel Prates Ferreira é mestranda em Filosofia na PUC-RS, pós-graduanda em Ciências Penais na PUC-RS e no 4º Curso de Processo Penal pelo IBCCrim e Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito da Univ. de Coimbra e aluna da Ajuris/2023.

Consultor Júridico

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