A presunção de inocência parece estar permanentemente no centro do debate daqueles que parecem sempre buscar pelo retrocesso no processo penal brasileiro. Em 2016 a comunidade jurídica assistiu atônita quando, no julgamento do HC 126.292, o Supremo Tribunal Federal resolveu dar sentido diverso ao conceito de trânsito em julgado, passando a admitir que as penas criminais fossem executadas a partir de julgamento colegiado em 2ª instância, ignorando por completo o marco temporal fixado pelo princípio de presunção de inocência, positivado em nossa Constituição, e ainda tido como direito e garantia fundamental do cidadão, uma cláusula pétrea, portanto.
Ato contínuo, com o advento das ADCs 43, 44 e 54, o Supremo Tribunal Federal resolveu rever o seu entendimento, restabelecendo o trânsito em julgado de sentença penal condenatória como o marco para a execução da pena criminal. Ou seja, em tese, com o julgamento das heroicas ADCs a questão estaria (ou deveria) estar sacramentada: uma pena de natureza criminal só pode(ria) ser executada assim que transitada em julgado, ou seja, com o esgotamento de todas as vias recursais. Porém, não é o que tem sido visto atualmente.
Após o julgamento das ADCs fomos surpreendidos com a possibilidade de prisão automática em condenações cuja pena passe de 15 anos, no âmbito do tribunal do júri. Vimos ainda, membros do Supremo Tribunal Federal [1] defendendo a possibilidade de prisão após a decisão do plenário do júri (órgão de 1ª instância). Mais recentemente, ainda no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o tema (res)surge agora em sede de Recurso Extraordinário, de nº 1.235.340/SC, que deu azo ao tema de repercussão geral nº 1.068, que discute a possibilidade de execução imediata após a decisão do júri, lastreada sob o argumento da soberania dos vereditos.
A questão que se põe, portanto é se poderia o Supremo Tribunal Federal decidir contra o próprio entendimento fixado nas ADCs 43, 44 e 54, ou ainda se poderia o Supremo Tribunal Federal decidir contra o que dispõe a própria Constituição?
Muito embora a resposta pareça fácil, a questão acaba se tornando um pouco complexa, haja vista que até hoje a doutrina não tem ao certo qual a função da presunção de inocência. Quando abrimos qualquer manual de direito processual penal encontramos a presunção de inocência na parte dos princípios inerentes ao direito processual penal, porém, muitos de nossos doutrinadores ao explicarem o princípio esbarram sempre na questão “regra de tratamento”, como se a regra que fosse instituída a partir do princípio abrisse a interpretação.
O professor Lenio Streck [2] ensina que
“os princípios jurídicos devem refletir um sentido constitucional reconhecido em nossa comunidade de modo vinculante, ainda que passível de exceções.”
Ou seja, quando um princípio é visto como tal, pressupõe-se o devido debate na arena adequada para a instituição de tal princípio, que no caso da presunção de inocência, foi a Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela criação do texto que deu forma à Constituição da República, de 1988. Nesse sentido, quando o Constituinte originário atribui o trânsito em julgado com o marco temporal adequado para a formação da culpa e a consequente autorização para que o Estado possa executar a pena, estabelece a normatividade do princípio, não deixando lacuna alguma para interpretação diversa, pois como adverte Streck [3]
“Um princípio não é um princípio em face de seu enunciado ou em decorrência de uma relação lógico-aplicativa, mas, sim, em face daquilo que ele enuncia.”
Diante de tais premissas, por que então se discute até hoje quando o Estado pode ou não iniciar a execução da pena proferida em sentença penal condenatória? Em recentes textos, aqui mesmo na ConJur, Lenio Streck advertiu que a questão que permeia o RE 1.235.340/SC, é justamente a má compreensão que os tribunais brasileiros fazem da teoria da argumentação jurídica, do alemão Robert Alexy.
Streck [4] denuncia o problema da ponderação demonstrando como o relator do aludido RE, se vale de tal instituto para tentar relativizar a presunção de inocência. Nesse sentido, afirma que
“Para ele, a presunção, por ser princípio e não regra, pode ser “aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”. Assim, para o ministro, não haveria que se falar em violação da presunção de inocência com o imediato cumprimento de pena de réu condenado pelo Júri. Também faz uma interpretação conforme à constituição da Lei 13.964/19, sobre a qual falei na sequência.
Assim, no item 16 do seu voto, Barroso diz que é necessário ponderar o princípio da presunção de inocência e, como tal, pode ser aplicado “com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”) com a soberania dos veredictos, de modo a dar prevalência a este último fundado, inclusive, na função do Direito Penal de proteção de bens jurídicos, in casu, da vida humana. Com isso, para além da mera discussão de limitação da quantidade de pena necessária para execução imediata das decisões tomadas em plenário, compreende também que inexiste sequer necessidade de observância de qualquer delimitador de pena.”
A premissa posta por Streck deixa claro que como princípio, a presunção de inocência jamais poderá sofrer uma alteração somente pela consciência do julgador, pela sua vontade subjetiva, e remeto a uma fala feita pelo próprio professor, quando do julgamento das ADCs 43, 44 e 54, na tribuna do Supremo Tribunal Federal, perguntou aos ministros que ali estavam: “teria a Constituição virado inconstitucional!?” [5].
Por mais que o júri seja soberano, há que se lembrar sempre que a soberania dos vereditos jamais poderá sobrepor-se à presunção de inocência do acusado. Esta posição já foi defendida em outro momento, aqui mesmo na Conjur, afirmando que a inocência deve ser o fundamento epistêmico do processo penal [6]. Não há como conceber um processo penal de cariz democrático sem que se conceba, de maneira conjunta, o tratamento de inocência que deve ter o acusado, que se institui justamente a partir do princípio da presunção de inocência.
É justamente no Tribunal do Júri onde o instituto da presunção de inocência tem de ser mais protegido, pois pela própria passionalidade, que é peculiar ao instituto do júri, e a admissibilidade de julgamento por íntima convicção, é que o Réu está sempre mais vulnerável na relação com o jus puniendi estatal. Nunca é demais lembrar os inúmeros júris midiáticos que fazem parte do cotidiano jurídico do Brasil há décadas. Eis, inclusive, um dos muitos problemas do instituto do júri: o juízo ser exercido por íntima convicção, sem dever de fundamentação, que coloca o réu à mercê de qualquer juízo subjetivo e porque não dizer, discricionário.
Nesse sentido, é sempre bom lembrar Dworkin [7], que inspira o título deste texto, quando no livro Uma questão de princípio aponta a necessidade de um juiz estar sempre desvinculado de uma certa comunidade. Afirma então que
“Os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular. Mas decorre daí que não devem tomar decisões independentes no que diz respeito a modificar ou expandir o repertório legal, pois essas decisões somente devem ser tomadas sob o controle popular.”
Tal assertiva vai de encontro com os argumentos populistas propalados em todos os cantos do Brasil, quando se fala da necessidade de os tribunais “ouvirem a voz das ruas”, lembrando que não faz muito as ruas queriam que os tribunais acabassem. Percebem aí por qual razão nunca se deve ouvir a “voz das ruas” na atividade jurisdicional?
Não há qualquer margem para que se flexibilize a presunção de inocência em detrimento da soberania dos vereditos, uma vez que como bem assevera Streck os princípios fecham a interpretação, e portanto com essa função de fechamento interpretativo, nunca se poderá dizer que a decisão proferida em julgado faz trânsito em julgado de maneira automática, afinal sempre há prazo para se recorrer e nem sempre a voz do povo será a voz de Deus, até porque se fosse, talvez nem existisse mais democracia para isto, e o 8 de janeiro está aí para fazer a comprovação empírica.
Continuemos então a defender a autonomia do Direito, ainda que por vezes não gostemos do resultado, porque ao fim e ao cabo, por vezes nós mesmos somos salvos pelo Direito que tanto criticamos. Vejamos, por exemplo, os violadores do Direito de outrora, que de tanto subverter a ordem jurídica e dizer que Direito não passava de “filigranas”, e quando são postos no banco dos réus clamam pela mais pura aplicação in totum do garantismo de Ferrajoli, ou ainda aqueles que pregaram e talvez ainda preguem a ruptura do Estado Democrático de Direito, mas que todos os dias são salvos pelo Direito que é instituído pelo Estado Democrático que tanto querem abolir.
Segunda instância, soberania dos vereditos ou até mesmo prisão automática em condenações com pena maior do que 15 anos, no rito do tribunal do júri, todas são retóricas com a mesma face da moeda: fragilizar, dia após dia a autonomia do Direito que freia os instintos selvagens de quem detém o poder de punir. Para que isso não aconteça, que permaneçamos vigilantes e continuemos atentos para que ao fim eles sempre se constranjam, epistemologicamente, claro!
[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Ed. Letramento/Casa do Direito, 2020. p. 374.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Op.cit. p. 375.
[7] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Ed. Martins Fontes; 2ª Ed.; 2005. p. 17
Jefferson de Carvalho Gomes é doutorando em Direito pela Universidade Estácio de Sá (bolsista Prosup-Capes), mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (bolsista Prosup-Capes), especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.