Impulsionado pela pandemia do Covid-19 e pelos avanços das novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC), o número de ingressantes em cursos superiores de graduação na modalidade educação a distância (EaD) cresceu 474% entre 2011 e 2021 [1]. No mesmo período, a quantidade de ingressantes em cursos presenciais diminuiu 23,4%.
O crescimento da modalidade EaD fica ainda mais evidente quando verificado que, em 2011, os ingressos por meio de EaD correspondiam a apenas 18,4% do total, ao passo que em 2021 esse percentual chegou a 62,8%.
A modalidade EaD tem tido um papel importante como estratégia para ampliar e descentralizar o acesso ao ensino superior. Vale lembrar que os indicadores gerais ainda não são satisfatórios — apenas 19,7% dos brasileiros de 18 e 24 anos estão matriculados no ensino superior, ao passo que a Meta 12 do Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2014-2024 prevê que a taxa líquida de matrícula na educação superior deve ser de 33%, até 2024 [2] — e a modalidade EaD pode se mostrar crucial para que a meta seja atingida.
Não obstante, a expansão do EaD é acompanhada por desafios. Em geral, o embate ocorre entre, de um lado, a ampliação do acesso a cursos superiores e, de outro, a garantia de qualidade dos cursos oferecidos, de modo a formar profissionais habilitados a exercerem suas profissões.
Nesse sentido, em 8/3/2023, o Ministério da Educação (MEC) publicou a Portaria nº 398/2023, sobrestando por mais 12 meses os processos de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos de graduação em Direito, Odontologia, Psicologia e Enfermagem, na modalidade EaD. Além disso, nos próximos 270 dias, deve ser concluído o trabalho do Grupo de Trabalho instituído para subsidiar a elaboração da política educacional no que diz respeito à oferta desses quatro cursos.
Além de aspectos regulatórios, a discussão também foi levada ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que analisa, em quatro novos processos administrativos, supostas infrações à ordem econômica por parte de conselhos profissionais, ao restringirem o registro de alunos egressos de cursos realizados na modalidade EaD.
Processo administrativo contra o Conselho Federal de Medicina Veterinária
O primeiro processo administrativo analisado pelo Cade a respeito do tema foi instaurado em 8/4/2022 após representação da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) contra o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) [3].
Naquele caso, a Anup denunciou ao Cade a Resolução nº 1.256, de 22/2/2019, da CFMV (Resolução CFMV), que estabeleceu (1) a não admissão da inscrição de egressos dos cursos de medicina veterinária ofertados na modalidade EaD; e (2) a possibilidade de responsabilização ético-disciplinar aos diretores, gestores ou docentes médicos veterinários que contribuírem para a oferta ou ministração de disciplinas ou unidades curriculares vinculadas ao exercício profissional da medicina veterinária em cursos de graduação que não fossem ministrados exclusivamente sob a modalidade presencial.
Segundo a Anup, a Resolução CFMV proibiria egressos de cursos de graduação “regularmente autorizados e reconhecidos pelas autoridades competentes” de exercerem sua profissão. A CFMV estaria, na visão da Anup, (1) abusando de seu poder econômico como fiscalizadora do exercício profissional, erguendo barreira artificial à concorrência e reservando o mercado de trabalho aos médicos veterinários já estabelecidos; (2) desequilibrando o mercado de trabalho de médicos veterinários, bem como o mercado de cursos superiores de medicina veterinária, “gerando incentivos perversos que podem influenciar os preços praticados pelos agentes econômicos”; (3) extrapolando seu poder de fiscalização ao impor conduta uniforme, com a ameaça de punição ético-disciplinar, a médicos veterinários que atuassem em cursos que não fossem exclusivamente presenciais; (4) discriminando injustificadamente fornecedores e consumidores de cursos de graduação; e (5) prejudicando a inovação tecnológica ao punir profissionais formados com base em TICs.
Em sua defesa, o CFMV afirmou que o ensino da Medicina Veterinária é matéria sob sua competência regulamentar, orientativa, supervisionadora, disciplinar e fiscalizatória. No exercício de tais competências, o CFMV teria constatado que o MEC ainda não havia definido “os parâmetros estruturais e técnicos condicionantes dos polos presenciais dos cursos oferecidos na modalidade EaD”, o que impactaria a situação dos egressos e a consequente inscrição e exercício profissionais.
O CFMV afirmou que existiriam limites para o ensino à distância da Medicina Veterinária, já que conhecimentos e habilidades devem ser objeto de experimento prático, com intensa e permanente interação presencial entre o educando e o objeto de aprendizagem, razão pela qual “o ensino da Medicina Veterinária, a partir das diretrizes e regramentos expedidos pelo Estado, se afigura incompatível com a modalidade integral à distância”.
Ao analisar o caso, a Superintendência-Geral do Cade (SG-Cade), responsável pela investigação, recomendou a condenação do CFMV. Em primeiro lugar, a SG-Cade afirmou que “qualquer um que possa praticar ato restritivo da concorrência deverá ser atingido pelas disposições da lei antitruste”, razão pela qual o Cade possuiria legitimidade para analisar a questão e condenar o CFMV por prática anticoncorrencial.
A SG-Cade também afirmou que o CFMV possuiria poder de mercado, o qual decorreria “diretamente do seu poder regulamentar e fiscalizatório, ou seja, do seu poder legal de controlar o registro de profissionais médicos-veterinários, de definir diretrizes para o exercício profissional, bem como de punir profissionais que atuem em desacordo com as normas que regulam o exercício das atividades relacionadas à medicina veterinária”.
No mérito, a SG-Cade entendeu que a Resolução CFMV possuiria potencial de prejudicar a livre concorrência sob duas óticas principais:
(1) o livre exercício profissional de médicos-veterinários: ao suprimir oferta dos serviços por uma parcela de profissionais diplomados, haveria potencial redução da oferta de serviços de medicina veterinária no mercado nacional; e
(2) o funcionamento de cursos de graduação em medicina veterinária na modalidade EaD, pois (2.1) haveria potencial redução da demanda de alunos por cursos sob a modalidade EaD, em razão da insegurança jurídica quanto à possibilidade de inscrição profissional; e (2.2) as faculdades ofertantes de cursos sob a modalidade EaD poderiam enfrentar dificuldade para recrutar corpo docente necessário para viabilizar o funcionamento dos cursos, ante a previsão normativa de sanções ético-profissionais a médicos veterinários que contribuíssem par ao funcionamento dos cursos sob a modalidade EaD.
Segundo a SG-Cade, o Conselho Nacional de Educação — Câmara de Educação Superior (CNE-CES) já teria concluído que “os órgãos de fiscalização profissional não podem adotar medidas e critérios que possam impedir a emissão do diploma ou exercício profissional de graduado em curso ofertado na modalidade a distância”. A SG-Cade também afirmou que, embora inexistissem provas de efeitos concretos decorrentes da Resolução CFMV, haveria indícios de que o CFMV teria prejudicado a livre concorrência.
Por isso, a SG-Cade recomendou a aplicação de penalidade de multa ao CFMV, no valor de R$ 200 mil, bem como que o CFMV se abstenha de editar novo regulamento ou orientação normativa com vistas a (1) proibir a inscrição de egressos de cursos de graduação EaD, (2) punir (ou ameaçar punir) médicos-veterinários que atuem como docentes em curso de graduação em Medicina Veterinária na modalidade EaD.
Da mesma forma, a Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (ProCade) se manifestou nos autos em 6.3.2023 e opinou pela condenação do CFMV com bases em argumentos bastante similares aos da SG-Cade, no sentido de que a normativa do CFMV prejudicou a livre concorrência e a livre iniciativa ao elevar artificialmente as barreiras à prestação de serviços médicos veterinários e de cursos de graduação em medicina veterinária na modalidade EaD. A ProCade concordou que o Cade é competente para examinar a matéria, que a produção de efeitos não é condição necessária para a caracterização do ilícito e que o CFMV tem poder unilateral sobre os mercados relevantes afetados pelo normativo, e ainda acenou que CFMV não estaria agindo de boa-fé ao descumprir orientações de seu departamento jurídico e do próprio MEC.
O processo administrativo foi distribuído ao conselheiro Victor Oliveira Fernandes e será julgado definitivamente pelo tribunal do Cade.
Processos administrativos subsequentes
Durante a análise do processo administrativo contra o CFMV, o Cade constatou indícios de conduta análoga por parte do Conselho Federal de Odontologia (CFO) [4], do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU) [5] e do Conselho Federal de Farmácia (CFF) [6].
Assim, o Cade instaurou inquérito administrativo contra os três conselhos. No curso da investigação, o CFO informou que o seu normativo apenas impedia a inscrição e o registro de alunos egressos de cursos de odontologia que fossem integralmente realizados na modalidade EaD, “por entendê-la incompatível com uma adequada formação profissional”. O CAU afirmou, preliminarmente, que o seu normativo teria sido suspenso por decisão judicial e, no mérito, que a formação exclusivamente EaD seria incapaz de garantir a formação generalista do arquiteto e urbanista prevista nas Diretrizes Circulares Nacionais (DCN). Já o CFF, por sua vez, argumentou que o seu normativo não é vinculativo, mas reconhece a preocupação com a qualidade dos cursos EaD envolvendo áreas da saúde.
Após analisar as justificativas dos conselhos, a SG-Cade entendeu pela existência de indícios de que CFO, CAU e CFF estariam limitando de forma ilegal o acesso de alunos ao mercado de trabalho ao expedirem normativos proibindo alunos egressos de cursos superiores de graduação na modalidade EaD de se registrarem nos respectivos conselhos profissionais. Segundo a SG-Cade, esses normativos contribuiriam para a redução da demanda aos cursos EaD, diante da incerteza quanto à possibilidade do exercício profissional ao concluir a graduação.
Além da proibição de registro, CFO, CAU e CFF estariam infringindo a legislação concorrencial ao supostamente preverem a responsabilização ético-disciplinar de profissionais que contribuíssem para a oferta ou ministração de disciplinas ou unidades vinculadas à modalidade EaD. A SG-Cade entendeu que tal medida implicaria redução de profissionais aptos a ministrarem disciplinas que compõem a grade curricular EaD.
Em geral, os conselhos profissionais alegam que a proibição de registro a alunos egressos de cursos superiores de graduação realizados integralmente na modalidade EaD tem por objetivo preservar a qualidade dos serviços.
Com relação à competência da autoridade de defesa da concorrência para examinar os efeitos de tais normativos, a SG-Cade entendeu que Conselhos de Fiscalização do Exercício Profissional estão sujeitos ao controle antitruste, já que o artigo 31 da Lei nº 12.529/2011 se aplica também a pessoas jurídicas de direito público.
Além disso, a SG-Cade fez referência a precedentes judiciais que estabelecem que os Conselhos de Fiscalização do Exercício Profissional são responsáveis somente por registrar a habilitação profissional, para fins de controle, não devendo ir além da verificação de requisitos e documentos exigidos por lei. Também foram feitas referências a pareceres do Conselho Nacional de Educação — Câmara de Educação Superior (CNE-CES) que concluíram que órgãos de fiscalização profissionais não podem adotar medidas que impeçam a emissão de diploma ou exercício profissional por alunos egressos de cursos superiores de graduação na modalidade EaD, já que são atividades privativas do MEC.
Com a instauração dos processos administrativos, CFO, CAU e CFF serão notificadas para apresentarem defesa formal nos autos. SG-Cade fará a instrução processual do caso e, ao final, fará a sua recomendação ao Tribunal Administrativo do Cade, que proferirá decisão final.
Considerações finais
A ampliação do acesso aos cursos superiores certamente passa pela disponibilidade, com qualidade, de cursos na modalidade EaD. A análise concorrencial tem um papel relevante nessa discussão, que deve ser informada e complementada também pelos aspectos regulatórios, de modo a garantir um ambiente concorrencial saudável, de qualidade e que incentive a inovação.
Daniel Costa Rebello é sócio do escritório Pinheiro Neto Advogados, bacharel em Direito pela UnB, LLM pela Columbia University, MBA em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e professor convidado da pós-graduação da FGV e do Ibmec.
Luís Henrique Perroni Fernandes é advogado sênior do escritório Pinheiro Neto Advogados, bacharel em Direito pela PUC-SP, LLM pela University of Pennsylvania Carey Law School e master in business economics pela Fundação Getúlio Vargas (FGV EESP).