Reconhecimento na Resolução 484/22 do CNJ no Tribunal do Júri

Os homicídios são, indubitavelmente, os crimes mais julgados pelo Tribunal do Júri. Em que pese estejamos diante de delitos que deixam vestígios, costumeiramente há um incipiente acervo de documentos ou perícias, razão pela qual o depoimento testemunhal ganha proeminência no contexto probatório.

A importância da oitiva da vítima sobrevivente/testemunha galga patamares ainda mais determinantes para o desfecho do processo quando enriquecida pelo procedimento de reconhecimento de pessoas, não obstante a fragilidade da referida prova, a qual ratifica a relevância da doxa no interior da episteme [1] que se intitula direito probatório.

O tema reconhecimento de pessoas no Tribunal do Júri já foi devidamente abordado nesta coluna, em 18 de março de 2021. Não obstante, diante do advento da Resolução nº 484/22 do CNJ, vamos revisitar a matéria. O presente artigo será dividido em duas partes, quais sejam: 1) relação entre reconhecimento de pessoas e erros judiciários; e 2) repercussões do reconhecimento de pessoas no procedimento do júri, que será publicada na próxima semana.

Relação entre reconhecimento de pessoas e erros judiciários

O reconhecimento de pessoas é uma prova adstrita à memória humana e, por conseguinte, para uma justiça penal pautada em evidências científicas, é imprescindível o diálogo do processo penal com outras ciências, como a psicologia do testemunho.

Essa simbiose de conhecimento ensina que a memória humana é falha. Portanto, é perfeitamente possível que uma vítima sobrevivente/testemunha, ainda que imbuída de boa-fé, preste depoimento que não corresponda à realidade fática.

Os dados estatísticos do Innocence Project, nos Estados Unidos indicaram que aproximadamente 70% das condenações cassadas em sede de revisões criminais derivavam de falsos reconhecimentos.

No Brasil, embora as pesquisas sobre a temática ainda sejam incipientes, temos constatações empíricas que ratificam o vínculo entre decisões judiciais desacertadas e reconhecimentos equivocados. Consoante o relatório realizado pelo Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) e pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ), no período compreendido entre 2012 a 2020, reconhecimentos fotográficos desembocaram em ao menos 90 prisões injustas [2].

Em maio de 2022, a DPE-RJ lançou outro relatório sobre reconhecimento fotográfico no âmbito dos processos criminais. A análise abrangeu 242 processos de 342 réus, em 32 comarcas, no intervalo temporal de janeiro a junho de 2021, sendo observado que 27% dos acusados foram absolvidos. A pesquisa certificou ainda que, desse universo de réus reconhecidos como inocentes, 83% foram submetidos à prisão cautelar, com duração média de um ano e dois meses, no curso da persecução penal [3].

A divulgação dessas pesquisas e os avanços científicos da psicologia do testemunho foram molas propulsoras para uma virada jurisprudencial em torno do artigo 226 do CPP, norma regulamentadora do reconhecimento de pessoas.

 Esse dispositivo legal, outrora considerado mero aconselhamento do legislador, angariou eficácia processual apenas em 2020, por ocasião do julgamento do emblemático HC nº 598.886/SC pela Sexta Turma do STJ. A partir de então, concluiu-se pela força cogente do artigo 226 do CPP, cujas “formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime”, nas palavras do voto condutor do ministro Rogério Schietti Cruz. Posteriormente, o mesmo entendimento foi adotado pela 5ª Turma do STJ (HC 591.920/RJ) e também pelo STF (RHC 206.846). 

Ratificando o (novo) posicionamento sedimentado na jurisprudência das cortes superiores, o CNJ aprovou a Resolução nº 484 (10/12/2022), que estabelece regras para o aprimoramento do reconhecimento de pessoas. O tempo dirá se os atores processuais vão realmente aderir a essa importante ferramenta, cujo intuito é equacionar a Justiça Penal às evidências cientificas.

Os estudos sobre a matéria nos ensinam que a memória pode sofrer interferências das chamadas variáveis de estimativas e variáveis sistêmicas [4]. As primeiras são aquelas inerentes à natureza humana ou ao contexto do evento. Como a própria nomenclatura assinala, essas variáveis podem ser tão somente estimadas: pode-se cogitar da possibilidade do seu impacto na memória, e, por consequência, no reconhecimento, mas a Justiça Penal não tem ingerência sobre elas.

A psicologia do testemunho indica, por exemplo, que nosso cérebro tem mais facilidade de reconhecer rostos familiares a rostos estranhos, principalmente quando inerentes à pessoa de uma raça distinta do identificador (cross race effect).  A dificuldade de reconhecer indivíduos de outros grupos raciais potencializa-se quando estamos diante de estereótipos culturais (culture in mind).

Outras importantes variáveis de estimativas são a distância entre a vítima/testemunha sobrevivente e o autor do crime no momento da sua prática, bem como o ângulo de visualização e as condições de luminosidade. Acrescenta-se ainda que em casos de delitos cometidos com emprego de arma de fogo  modus operandi frequente nos crimes de homicídio  a atenção da vítima tende a desfocar exclusivamente da fisionomia do agente. Trata-se do fenômeno “foco da arma” (weapon focus effect): “o objeto raro (arma) converge a atenção da vítima e faz com que em nome da sobrevivência a sequência visual preocupe-se basicamente com seu movimento” [5]. As falhas dos relatos também são objeto de estudos empíricos há décadas, em que se comprova, por exemplo, a alteração da memória das testemunhas a partir de informações externas [6].

As variáveis sistêmicas, por sua vez, são aquelas atreladas ao sistema de justiça e que podem ser controladas pelas instâncias penais. O artigo 226 do CPP estabelece regras mínimas, nítidas e inteligíveis para que o reconhecimento de pessoas seja realizado de forma uniforme e objetiva pelas autoridades sujeitas ao princípio da legalidade.

Consoante preconiza o artigo 226 do CPP, o ato perpassa por duas fases: a prévia descrição da pessoa a ser reconhecida (inciso I) e a sua posterior identificação perante outras pessoas que tenham com ela características semelhantes (inciso II).

A primeira etapa constitui a descrição prévia do suspeito. O ideal é que a vítima /testemunha faça uma narrativa espontânea e mais detalhada possível sobre a pessoa a ser identificada. Nessa etapa, é imprescindível que sejam relatadas também as circunstâncias fáticas e emocionais que envolveram o contato visual com o acusado, como, por exemplos, condições de iluminação, tempo, distância, uso de drogas e/ou álcool, emprego de arma de fogo e nível de estresse [7]. Eventuais perguntas realizadas pelos órgãos de investigação e acusação direcionadas à vítima/testemunhas devem ser “abertas” para a livre narrativa e evitação de qualquer sugestionamento na resposta [8].

Finda a descrição do suspeito, o reconhecimento deverá ser realizado na forma line-up. O método mais adequado é o perfilamento justo: para além do acusado ser apresentado ao lado de outras pessoas com características físicas semelhantes, é importante também que os distraidores sejam sabidamente inocentes [9]. Atualmente, vigendo a Resolução nº484/2022 do CNJ, nos termos do artigo 8º, inciso II, a recomendação é que, ao lado do investigado, sejam apresentadas no mínimo quatro pessoas “não relacionadas ao fato investigado, que atendam igualmente à descrição dada pela vítima ou testemunha às características da pessoa investigada ou processada”.

A tipicidade procedimental visa evitar qualquer indução que comprometa o resultado do reconhecimento. Destarte, pode-se dizer as regras do artigo 226 do CPP desempenham uma “função epistêmica”, pois, “além de possibilitar o funcionamento de garantias institucionais do processo, como o contraditório e ampla defesa, também asseguram um adequado conhecimento dos fatos” [10].

Todavia, a (infeliz) redação do inciso II do artigo 226 do CPP preceitua quea pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”. Uma interpretação literal desse artigo autorizaria concluir pela não obrigatoriedade do alinhamento.

Pensamos que o melhor cânone hermenêutico para a concretização do artigo 226 do CPP é a realização do alinhamento justo como garantia mínima do acusado. Do contrário, estar-se-ia violando a teleologia da norma. O desiderato das formalidades que circundam o ato de reconhecimento é minimizar as chances de equívocos, e, nesse sentido, as evidências científicas demonstram que a prática do line-up deve preponderar sobre o show-up, pois essa modalidade de reconhecimento gera sugestionamento [11]. Nessa esteia, acrescenta-se que a redação do artigo 4º da Resolução nº 484/2022 do CNJ rechaça a possibilidade de reconhecimento mediante a técnica do show-up.

Por fim, ainda no compasso do que preconiza o inciso II do artigo 226 do CPP, é importante que, no alinhamento, a pessoa a ser reconhecida seja colocada “ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança”. Para além das semelhanças físicas, deve-se evitar que o suspeito esteja realçado de qualquer forma que induza o seu apontamento, a exemplo de estar algemado ou trajar vestes de presidiário. Essa importante técnica de precaução encontra guarida expressa no artigo 8º, §2º da Resolução nº 484/2022 do CNJ.

Não se desconhece, vale salientar, que a realização de um perfilamento justo esbarra, por vezes, em dificuldades estruturais do sistema de justiça. Mas não cabe ao réu arcar com as falhas do sistema penal. É dever do Estado propiciar as condições necessárias para o regular desenvolvimento do devido processo penal: “o Estado que pretende legitimar a punição daqueles que violam a lei, não pode, para punir, violar seus próprios comandos legais” [12].

Importante destacar o que está determinado também como formalidade no inciso IV do artigo 226 do CPP: que seja lavrado auto pormenorizado do ato de reconhecimento, “subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais”. O descumprimento tem como consequência a ausência de controle da preservação da cadeia da custódia da prova, inviabilizando a análise de eventuais prejuízos à defesa.

A ausência de registros sobre o procedimento de reconhecimento deve conduzir à própria invalidade da prova. A metáfora feita por Taruffo [13] é bastante apropriada a essa situação:

“un historiador que no revelase las fuentes de las informaciones que utiliza, o un científico que no explicara el procedimiento que ha seguido para llegar a su descubrimiento, no producirían ciertamente conocimientos que merecieran ser tenidos en consideración”.

Espera-se que esse panorama seja modificado pela aplicação da Resolução nº 484/2022 do CNJ, uma vez que há exigência expressa de que o ato de reconhecimento será reduzido a termo, de forma pormenorizada e com informações sobre a fonte das fotografias e imagens, para juntada aos autos do processo, em conjunto com a respectiva gravação audiovisual” (artigo 10).

A forma como o procedimento é concretizado interfere fortemente no seu resultado final, inclusive sendo vedada a sua repetição, consoante abordaremos semana que vem. Ademais, como já dito anteriormente, as variáveis de estimativas fogem do controle da Justiça Penal. Destarte, mesmo quando o reconhecimento de pessoas é realizado dentro dos quadrantes legais, e ainda que a testemunha/vítima sobrevivente aja de boa-fé, corre-se o risco de um reconhecimento equivocado decorrente de falsas memórias. Essa constatação serve como um alerta: a tipicidade procedimental do artigo 226 do CPP é garantia mínima do acusado.

No procedimento do júri, a questão se reveste de peculiaridades, porquanto se até mesmo os juízes togados têm tendência em valorar um reconhecimento feito fora dos quadrantes legais, quiçá os jurados que poucos são instruídos na direção de que, no processo penal, forma é garantia.

Gina Ribeiro Gonçalves Muniz é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

Denis Sampaio é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa (Portugal), membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

Rodrigo Faucz Pereira e Silva é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de Mestrado em Psicologia Forense da UTP.

Daniel Ribeiro Surdi de Avelar é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

Consultor Júridico

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