A recente aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 45 de 2019 pela Câmara dos Deputados gerou uma onda de otimismo nos diversos setores econômicos da sociedade brasileira e em investidores internacionais, dando ao governo federal um merecido bônus de credibilidade e capacidade política. O fato é que a reforma tributária é desejada há muito tempo e as dificuldades inerentes à sua realização são evidentes. A começar com o desafio decorrente do federalismo, já que a repartição de competência e receitas tributárias é sustentáculo da distribuição das competências atribuídas pela Constituição Federal aos entes da República.
O segundo ponto de dificuldade está nas despesas, obrigatórias ou não, atribuídas aos diversos entes da federação. As demandas decorrentes de tais despesas, sejam de investimentos, de pessoal, da execução de ações e serviços de saúde, meio ambiente, educação, policiamento, além das demandas decorrentes de benefícios fiscais setoriais e regionais (Zona Franca de Manaus, por exemplo), exercem uma pressão enorme sobre o Estado brasileiro a partir de setores interessados e mesmo da sociedade como um todo.
Assim, a aprovação do texto constitucional, por mais importante que isso signifique, é apenas o passo inicial de um processo complexo e sujeito a diversas interjeições políticas e jurídicas. Não é difícil antever que o Supremo Tribunal Federal será um ponto focal fundamental na resolução de conflitos, tendo a sua competência originária ampliada para resolver “os conflitos os entre entes federativos, ou entre estes e o Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços, relacionados ao imposto previsto no art. 156-A” (artigo 105, inciso “j”, CRFB/88).
Todavia, todo o esforço na reforma pode desaguar em frustração se um ponto não vier a ser enfrentado pelos Poderes Executivo e Legislativo: a forma como a administração tributária busca resolver os conflitos que surgem com os contribuintes na aplicação da legislação tributária. A dimensão conflitiva desse relacionamento é patente e tem uma das mais fortes características no sistema sancionador baseado em multas extravagantes e inconstitucionais. O Supremo Tribunal Federal já afirmou diversas vezes que viola o princípio da capacidade contribuitiva a aplicação de multas que excedam cem porcento do valor do tributo e (aqui e aqui), mesmo assim, permanecem no âmbito federal, estadual e municipal multas por descumprimento de normas tributária que chegam a triplicar o valor do crédito tributário. E são exatamente essas multas abrasivas e inconstitucionais que têm sido a justificativa recorrente para adoção de programas de parcelamento que afastem o excesso e adequem o valor devido à efetiva capacidade de pagamento do contribuinte.
Aliás, a Lei nº 13.988, de 2020, que institui a transação tributária federal, deixa claro que a capacidade contribuitiva é um princípios norteadores da sua aplicação.
A discussão a respeito do voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) também expõe a característica conflitiva da administração tributária. De fato, o Carf, nessa questão, revela a sua dinâmica de bancada, em que a uniformidade e equidade na aplicação da legislação tributária é substituída pelo consequencialismo de pagar mais ou menos tributos. A própria justificativa de retornar o voto de qualidade para a administração tributária é reveladora desse objetivo, já que está apresentado como um dos fatores que permitem obter o resultado fiscal para este ano.
Portanto, para uma reforma tributária funcionar e não ser um novo fomentador de litígios e passivos fiscais para o Estado e para os contribuintes, é indispensável que o comportamento da administração tributária e daqueles que devem cumprir a suas obrigações seja alterado. Um passo fundamental nesse sentido é a adoção de um Código de Direitos dos Contribuintes, a estabelecer um comportamento compreensivo da administração pública, capaz de promover a aplicação da legislação tributária pautada na razoabilidade e proporcionalidade. O foco na administração tributária aqui decorre do fato de ser o agente com maior poder na relação com os contribuintes, exatamente pelo poder sancionar que possui. Uma atuação mais atenta para princípios da razoabilidade, de lealdade, informação, definitividade, dentre outros, produzirá, certamente, um ambiente que permite maior aceitação e cooperação pela sociedade, cujo resultado é um sistema tributário mais compreensivo e sustentável.
Luís Inácio Adams é advogado e ex-procurador da Fazenda Nacional. Foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).