reforma tributária e cooperação na cobrança e representação judicial


Opinião

Foi promulgada no último dia 21 de dezembro a reforma tributária. A Emenda Constitucional n° 132/2023 tem por objeto reestruturar o Sistema Tributário Nacional. Uma das maiores, talvez a maior novidade trazida pela reforma, é a previsão do IBS, um imposto sobre bens e serviço de competência compartilhada entre os estados, o Distrito Federal e os municípios, que passa a ser regulado no artigo 156-A da Constituição.

Dentre tantos (e polêmicos) temas que chamam atenção, o artigo 156-B da CF prevê a figura do Comitê Gestor do IBS, responsável pela gestão administrativa integrada do tributo. Cabe ao Comitê: editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios; decidir o contencioso administrativo. A Constituição prevê (artigo 156-B, §1°), ainda, que o comitê será entidade pública sob regime especial, com independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira. Todavia, inúmeras questões relativas ao seu funcionamento deverão ser reguladas por lei complementar (artigo 156-B, §2°).

Nosso objeto central é chamar atenção a inciso específico do artigo 156-B, §2°:

Art. 156-B. § 2º Na forma da lei complementar: (…)

V – a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial relativos ao imposto serão realizados, no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que poderão definir hipóteses de delegação ou de compartilhamento de competências, cabendo ao Comitê Gestor a coordenação dessas atividades administrativas com vistas à integração entre os entes federativos; (…)

Caberá à lei complementar regular (ou deixar a regulação ao próprio comitê) como se dará a gestão conjunta e integrada pelos estados, DF e municípios, que permanecem com as respectivas competências para a fiscalização, o lançamento, a cobrança e a representação administrativa e judicial do IBS. A lei complementar poderá ela mesma tratar das hipóteses de coordenação das respectivas competência ou definir que caberá ao comitê regular o tema. Não se pode esquecer que, especialmente no início, inúmeros conflitos de atribuição na representação administrativa e judicial podem ocorrer. O destaque fica por conta da possibilidade de delegação e compartilhamento de competências, a partir da coordenação do comitê.

O constituinte reformador entendeu, portanto, que o Comitê Gestor do IBS é a plataforma ideal para o diálogo entre os estados, DF e município, visando a coordenar as respectivas competências na gestão administrativa, na cobrança e representação judicial do IBS. É natural que a lei complementar não possa alterar a própria estrutura constitucionalmente prevista nos artigo. 37, XXII e 132 da CF. É emblemático, porém, que a Constituição passe a prever a possibilidade de delegação e compartilhamento, via comitê gestor, de tais competências.

E isso chama atenção a um instituto pouco conhecido, que pode revolucionar a cobrança e representação judicial em matéria fiscal dos estados, Distrito Federal e municípios, previsto no artigo 75, §4°, do CPC. Trata-se de uma hipótese típica de negócio jurídico processual, do tipo protocolo institucional [1]. Veja-se:

Art. 75, § 4o. Os Estados e o Distrito Federal poderão ajustar compromisso recíproco para prática de ato processual por seus procuradores em favor de outro ente federado, mediante convênio firmado pelas respectivas procuradorias.

O artigo 75, §4°, teve sua constitucionalidade questionada perante o STF. A Corte entendeu que o dispositivo é constitucional [2]. Estamos diante, portanto, de instrumento legítimo que, se efetivamente realizado, pode revolucionar a forma de gestão do crédito tributário junto aos órgãos de representação judicial após a efetiva implementação do IBS.

A partir deste dispositivo, passa-se a admitir que as procuradorias estaduais e do DF firmem convênios para a prática de atos processuais em outros Estados/DF em favor de outro ente federado. Havendo convênio firmado entre as respectivas procuradorias, torna-se possível que, por exemplo, um procurador do DF atue na representação do Estado de Pernambuco em um processo que corra perante a Justiça do DF e que Pernambuco seja parte.

Apesar de o texto do artigo 75, §4° prever a realização da convenção apenas entre os Estados e Distrito Federal, a doutrina já possui posição tranquila de que se trata de instrumento extensível também aos Municípios que possuam procuradorias regularmente instaladas. Veja-se o enunciado n° 172 da III Jornada de Direito Processual Civil do CJF: “Aplica-se o §4º do art. 75 do CPC aos municípios que tiverem procuradoria regularmente constituída”.

Esta possibilidade de convênio facilita a prática de atos processuais fora da circunscrição original da Procuradoria respectiva, materializando o princípio da eficiência inscrito no artigo 37, caput da Constituição e facilitando o acesso à justiça. No caso, não se trata da eficiência sob as lentes do processo, mas sim de eficiência como instrumento de racionalização da atuação dos entes da administração pública. É exatamente isso que o artigo 156-B da Constituição propõe: uma atividade integrada entre os entes federativos subnacionais na gestão do IBS.

Além disso, não é de se estranhar que o convênio para a prática de qualquer ato processual abranja a convenção sobre a legitimidade ativa (para cobrança, via execução fiscal) e passiva (para as ações de defesa) entre as respectivas procuradorias públicas estaduais, distrital e municipais.

É o momento de repensar e admitir a realização de protocolo institucional (ou convênio, como se refere o CPC) para o compartilhamento de legitimidade ativa. O tema, que parece estranho à primeira vista, encontra precedente antigo e já bem consolidado no Brasil.

Apesar de pouco percebido este detalhe, a Lei n° 8.844/94 autoriza a celebração de convênio entre a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e a Caixa Econômica Federal para definição da legitimidade para promoção da execução fiscal. Trata-se de uma hipótese de substituição processual negocial no polo ativo. Através de convênio a PGFN passa a executar créditos do FGTS. Trata-se de interessantíssimo caso de legitimidade extraordinária ativa negocial [3], firmada em convenção processual de direito público em protocolo interinstitucional do tipo convênio [4].

Conforme o artigo 18 do CPC, o ordenamento jurídico pode autorizar a substituição processual. A Lei n° 8.844/1994 previu a realização do ato, materializado contemporaneamente no Convênio PGFN/Caixa n° 1/2019. Agora, esta possibilidade está prevista constitucionalmente, no artigo 156-B, §2°, V e merece, sem dúvida, maior detalhamento da lei complementar que virá para regular diversos pontos da reforma tributária.

Não há dúvidas que a implementação das alterações trazidas pela EC n° 132/2023 trará enormes desafios. O momento, agora, é de identificar as potencialidades e caminhos para que se reduzam conflitos federativos na realização da arrecadação e do produto do IBS. Não se pode descuidar, todavia, de que também a representação judicial ativa e passiva em matéria tributária exigirá que os Estados, Distrito Federal e Municípios se insiram na rede que encontrará no Comitê Gestor do IBS plataforma de diálogo e cooperação. A previsão de competências bem delimitadas na representação judicial (na defesa e na cobrança) é mandamento necessário de segurança jurídica não apenas para as respectivas Fazendas Públicas, mas também para os contribuintes, que precisam de regras claras sobre quem e como demandar.

É revolucionário pensar que poderemos ter um intercâmbio intenso de fluxo de trabalho, uniformização de atuação e construção de teses entre as diversas (em quantidade e qualidade) procuradorias estaduais e municipais, através da utilização de uma ferramenta prevista pelo CPC sem a percepção por parte do legislador de que poderia se encaixar tão bem às necessidades trazidas pela reforma tributária.

Há inúmeras questões a serem resolvidas. O compartilhamento de informações fiscais, harmonização de normas, interpretações, obrigações acessórias e procedimentos relacionados ao IBS (artigo 156-B, §6°), base de dados de inscrição em dívida ativa, estrutura física, canais oficiais de comunicação, sistema de controle interno de processos etc, são apenas alguns pontos que precisarão de regulação. A lei ou as diversas leis complementares (o termo “lei complementar” é mencionado setenta e três vezes no texto da emenda) devem se ocupar de superar (e quem sabe criar) diversos deles. Em matéria de representação ativa e passiva nas demandas exacionais e antiexacionais envolvendo o IBS, o Comitê Gestor deve desempenhar um papel fundamental na transição do modelo atual (eminentemente territorializado e não cooperativo) para a anova forma de cobrança e defesa em rede, impondo-se a cooperação entre os diversos entes subnacionais.

Fica aqui a sugestão de um instrumento para auxiliar na superação das dificuldades que, sem dúvida, virão.

 


[1] Sobre os protocolos institucionais, tratamos com mais vagar em: AVELINO, Murilo Teixeira; PEIXOTO, Ravi. Consensualidade e Poder Público – 2ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2023, p. 181 e ss.

[2] “(…) 6. Diante de seu caráter autorizativo, o art. 75, § 4º, do CPC não viola a autonomia dos estados-membros, não impondo a celebração do convênio. As procuradorias jurídicas estaduais e distrital, prévia e devidamente organizadas em carreira segundo os ditames da Constituição Federal, da Constituição Estadual ou da Lei Orgânica do Distrito Federal, bem como das normas constantes da lei que instituir a carreira, é que disporão, mediante ato consensual, acerca dessa cooperação mútua, mediante instrumento no qual serão definidos os contornos jurídicos dessa colaboração. Ausência de inconstitucionalidade.” (STF, ADI n° 5492, Relator Ministro Dias Toffolli, Tribunal Pleno, DJE 09-08-2023).

[3] Já percebendo a possibilidade, ainda que não aborde esta hipótese específica: DIDER Jr., Fredie. Fonte normativa da legitimação extraordinária no novo Código de Processo Civil: a legitimação extraordinária de origem negocial. Revista de Processo, ano 39, vol. 232, jun/2014.

[4] Defendemos a possibilidade, originalmente, em: AVELINO, Murilo Teixeira. Execução Fiscal, Processo Flexível e Trânsito de Técnicas. Londrina: Thoth, 2023, p. 98 e ss.

Consultor Júridico

Facebook
Twitter
LinkedIn

Entraremos em Contato

Deixe seu seu assunto para explicar melhor