Reforma tributária precisa acompanhar economia digital

O segundo dia do XI Fórum Jurídico de Lisboa, ocorrido no fim de junho, contou com um debate sobre a relação entre tributação e economia digital, com especial atenção à reforma tributária que foi recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados, e agora aguarda a apreciação do Senado Federal.

A mesa “Reforma tributária no mundo digital: o governo, o Judiciário e o contribuinte” foi moderada por Edilberto Carlos Pontes Lima, vice-presidente do Tribunal de Contas do Ceará. Ele lembrou que nos anos 1990 havia a preocupação de que, com o comércio eletrônico, o contribuinte iria desaparecer e o ICMS, morrer. Atualmente, a carga tributária (34% do PIB) é superior à da época (27% do PIB) e a participação do ICMS nela continua a mesma. “O contribuinte não desapareceu em nenhum lugar do mundo”, pontuou Lima.

João Ricardo Catarino, doutor em Administração Pública e professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, observou que “a globalização desregulou a economia” — algo para o qual “os sistemas tributários não estavam preparados e continuam não estando”. E isso gerou assimetrias enormes nas cargas tributárias.

O professor destacou os trabalhos conjuntos do G-20 e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na formulação de propostas para diminuir a elisão fiscal das empresas multinacionais — o projeto Base Erosion Profit Shifting (Beps).

Um dos pilares do projeto é o estabelecimento de um “novo nexo de conexão dos lucros com as jurisdições reais”. Se atualmente os critérios da tributação são a fonte e a residência, esse novo nexo obrigaria as empresas multinacionais a “afetar uma parte desses lucros”, para que eles “sofram tributação efetiva no lugar onde ocorreu a atividade econômica real” — o que evita o uso de paraísos fiscais para driblar a tributação. O outro pilar é a necessidade de “criação de regras que puxem os lucros para a jurisdição efetiva”, onde se sabe que a atividade econômica foi desenvolvida. 

Bases ameaçadas

Joaquim Miranda Sarmento
, pós-doutor em Finanças pela Tilburg University, nos Países Baixos, e professor auxiliar da Universidade de Lisboa, citou as principais ameaças aos sistemas fiscais europeus.

Um deles diz respeito ao Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS), cuja base tributária são os salários. Ele destacou que há uma desigualdade de rendimentos cada vez maior: “Cada vez mais, as pessoas com maior formação e qualificação têm rendimentos mais elevados”. No caso de Portugal, 20% das pessoas representam 70% da receita do IRS. Por outro lado, “cada vez mais jovens se formam nas universidades portuguesas e saem para trabalhar no estrangeiro ou para empresas estrangeiras”. 

Outro problema é o impacto das tecnologias na forma de consumo dos bens e serviços. Com o crescimento do comércio eletrônico e das impressoras 3D, Sarmento acredita que haverá uma forte disrupção da base tributária do Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA), que é o imposto sobre consumo português.

O desembargador Marcus Abraham, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), criticou a ideia da adoção de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) no Brasil, em vez de se discutir um modelo novo. Ele apontou que o modelo do IVA foi adotado pelo mundo 60 anos atrás.

O magistrado também defendeu uma reforma orçamentária, com o estabelecimento de uma Lei de Qualidade Fiscal e uma Lei de Responsabilidade Social.

Por fim, Abraham mencionou a existência de uma “cultura de litigiosidade tributária no Brasil”. Segundo ele, contribuintes buscam na Justiça benefícios aos quais não fazem jus, a Fazenda Pública busca postergar a conclusão de processos com “interpretações excessivamente enviesadas” e o Legislativo formula “legislações complexas, com conceitos indeterminados”, que geram insegurança jurídica. O desembargador afirmou que a reforma tributária precisa, de alguma forma, reduzir essa cultura.

Papel dos estados

A tributarista Misabel Derzi, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, criticou a ideia, presente na reforma, da criação de um Conselho Federativo para arrecadação do futuro Imposto sobre Bens e Serviços (IBS, que substituiria ICMS e ISS).

“Os estados estão perdendo a política tributária que têm hoje. Não vão ter nem o domínio sobre o produto arrecadado. Isso é muito grave”, opinou ela, citando uma “obscuridade profunda” dessa proposta.

A professora também lembrou que os altos juros e as grandes desigualdades setoriais e regionais levaram os estados brasileiros, ao longo dos anos, a uma guerra fiscal, com a concessão de benefícios e incentivos em excesso.

“Em contrapartida, os estados praticaram, ao longo desses anos, sem licença da Constituição, bloqueio de crédito dos contribuintes”, apontou ela. Minas Gerais, por exemplo, atualmente tem um boqueio acumulado de R$ 11 milhões. Para Misabel, isso invalida as renúncias fiscais: “A renúncia é uma ficção sem o valor dos créditos dos contribuintes bloqueados”.

Competência

A advogada Nina Pencak, professora da pós-graduação em Direito Tributário do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), criticou outro ponto da reforma tributária recentemente aprovada pela Câmara: o dispositivo que altera o artigo 105 da Constituição e atribui ao Superior Tribunal de Justiça a competência originária para julgamento de conflitos entre entes federativos ou entre os entes e o Conselho Federativo do IBS.

Ela lembra que a Constituição já atribui essa competência originária ao Supremo Tribunal Federal no artigo 102. Assim, apesar dos esforços, a alteração da proposta de emenda à Constituição não impedirá o STF de se manifestar sobre o IBS.

Por outro lado, Nina entende que a PEC pode resolver o problema do possível esvaziamento das bases econômicas tributadas pelo ICMS e das competências dos estados com a digitalização da economia. Isso porque, no texto, não há distinção entre bens materiais e imaterais ou tangíveis e intangíveis. “Com a junção do ISS e do ICMS, me parece que haverá uma possibilidade de superação, enfim, dessa questão.”

Excesso constitucional

O advogado Luciano Fuck, auditor federal de Finanças e Controle na Controladoria-Geral da União, falou sobre o “sistema constitucional tributário rígido” existente no Brasil. Ele apontou que existem muitas normas tributárias na Constituição, enquanto, em outros países, regras do tipo são previstas em “leis ou meros ordenamentos da Receita”.

Segundo ele, a ideia de colocar tudo na Constituição teve origem em 1934, com o objetivo de garantir maior segurança jurídica. Porém, houve um efeito rebote: “Um excesso de litiogisidade constitucional”, que acaba obrigando o STF a arbitrar “regras mínimas de Direito Tributário”. Com isso, certas controvérsias levam até 20 anos para serem pacificadas.

Fuck também destacou que a reforma tributária, por meio de uma PEC, está pautada na ideia de “inchar a Constituição”. Serão colocadas novas controvérsias constitucionais, “que vão levar anos, se não décadas, para se resolver”.

Por isso, ele defendeu uma “lipoaspiração constitucional, para dar mais flexibilidade ao sistema”. Sua ideia é retirar do texto constitucional muitas regras — a exemplo de técnicas de tributação —, “deixando lá o

o núcleo dos direitos fundamentais dos contribuintes”.

Cadê os números?

Por sua vez, o tributarista Luiz Gustavo Bichara criticou a falta de transparência do modelo de IVA dual proposto na PEC. “Nunca ninguém viu um modelo matemático dessa reforma”, apontou ele. “Nenhuma empresa no Brasil é capaz de responder qual será a sua carga tributária pós-reforma”. 

Ele lembrou que o governo federal precisa de uma “arrecadação violenta” para compensar as regras do arcabouço fiscal. Por isso, considera razoável o receio dos contribuintes com relação a um aumento da tributação.

O advogado defendeu a necessidade de apresentação de números concretos: “Precisaríamos ter uma mínima certeza de que não haverá aumento de carga”. Ele sugeriu a adoção de um modelo de 1% da carga por dois anos, para verificação do potencial arrecadatório do tributo.

Modelo atrasado

Por fim, Vanessa Canado, doutora em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), ressaltou o atraso do Brasil na adoção de medidas relacionadas à economia digital.

Para ela, não é possível tributar economia digital em um sistema com PIS, Cofins, ISS e ICMS: “Os mecanismos de coleta do IVA, que os demais países adotam, capturam a economia digital. O Brasil infelizmente não consegue acompanhar esse movimento”.

Por isso, ela defendeu a adoção mínima de critérios usados ao redor do mundo. Embora reconheça que o IVA é um “imposto velho”, concebido 60 anos atrás, ela acredita que o tributo “facilita imensamente o cumprimento das obrigações tributárias entre contribuintes, entre empresas e nas compras internacionais”.

O evento

Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa, ocorrida entre 26 e 28 de junho, teve como mote principal “Governança e Constitucionalismo Digital”. O evento foi organizado pelo IDP, pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV) 

Ao longo de três dias, a programação contou com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos.

Clique aqui para assistir à mesa de discussão ou veja abaixo:

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