Regis Fichtner: O caso de fraude à lei de Deltan Dallagnol

A decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que indeferiu o registro da candidatura do ex-procurador Deltan Dallagnol, e consequentemente resultou na perda do seu mandato de deputado federal, tem sido objeto de acirradas discussões jurídicas.

O fundamento da decisão foi o de que Dallagnol fraudou a lei de inexigibilidades, mais especificamente a disposição do artigo 1º, I, q, da Lei Complementar 64/90, que determina que são inelegíveis os membros do Ministério Público que “tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”

Lula Marques/Agência Brasil

O TSE entendeu que Dallagnol pediu exoneração antecipada do cargo para impedir a abertura contra ele de PAD (processo administrativo disciplinar), e fugir, por consequência, da aplicação da norma que o tornaria inelegível, situação que caracteriza a figura da fraude à lei.

A fraude à lei foi o tema da minha dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da USP (Universidade São Paulo), que constitui o único livro mais recente sobre o tema no Brasil e está sendo agora revisto e atualizado para fins de publicação da sua segunda edição.

A fraude à lei é instituto consagrado não somente no Brasil, onde encontra previsão expressa no artigo 66, VI do Código Civil, como nos países europeus em geral, tendo sido regulada nos Códigos Civis português (artigo 21º.), espanhol (artigo 6,4), alemão (§306a) e italiano (artigo 1.344), dentre outros.

As principais críticas apresentadas contra a decisão foram as de que: i) por não existir no momento da exoneração PAD instaurado contra Dallagnol, o indeferimento do seu registro seria um exercício de “futurologia”; ii) não seria cabível a interpretação ampliativa de regras de inelegibilidades. 

Elas demonstram, no entanto, total desconhecimento da figura jurídica da fraude à lei, que se configura exatamente quando o agente pratica atos que, isoladamente analisados, se encontram em consonância com a lei (no caso, o direito de pedir exoneração), mas que têm por objetivo fugir da aplicação de norma de caráter cogente (no caso, o artigo 1º, I, q, da Lei Complementar 64/90). Não é por outro motivo que os alemães denominam o instituto de Gesetzesumgehung, que significa literalmente “dar a volta na lei”.

Uma das principais discussões na teoria da fraude à lei é a de se exigir ou não a presença da intenção de fraudar para a configuração do instituto. A doutrina mais abalizada não atribui à intenção de fraudar a categoria de requisito para a configuração da fraude (teoria objetiva). Basta que se demonstre que os atos praticados pelo agente tiveram por resultado evitar a incidência de norma de caráter cogente.

No caso Dallagnol nem é necessário se adentrar nessa discussão. Vários fatores demonstram a sua intenção deliberada de evitar a incidência do artigo 1º., I, q, da Lei Complementar 64/90, dentre eles: i) o candidato já tinha duas condenações administrativas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), com penas de advertência e censura, transitadas em julgado; ii) no momento da sua exoneração havia 15 procedimentos investigatórios no CNMP contra ele, alguns prestes a serem convertidos em PADs; iii) 6 dias antes do seu pedido de exoneração, um outro ex-integrante da equipe da “lava jato” foi apenado com demissão pelo CNMP; iv) o candidato poderia pedir exoneração até o prazo de 6 meses antes da eleição, mas o fez 11 meses antes do pleito; v) até bem pouco tempo antes da sua exoneração, ele era inelegível, pela existência dos PADs em que foi condenado. A sua exoneração se deu, pois, em uma “janela de tempo” entre PADs recém terminados e PADs prestes a serem instaurados.

Se o candidato tivesse pedido a sua exoneração após a abertura de PAD contra ele, a sua inelegibilidade estaria configurada por contrariar diretamente o artigo 1º., I, q, da Lei Complementar 64/90. O seu pedido apressado de exoneração, nas condições acima relatadas, configura o seu objetivo de se furtar à aplicação da sanção prevista nessa norma jurídica, o que não é admitido pelo direito, que não agasalha comportamentos de má-fé.

Regis Fichtner é mestre e doutor em Direito. Advogado, professor de Direito Civil da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e autor do livro A fraude à lei, editora Renovar.

Consultor Júridico

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