Rehfeld e Pires: Medidas atípicas e a ADI 5.941

O plenário do Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade recente de se debruçar sobre a possível inconstitucionalidade das chamadas medidas atípicas de execução. Tal instrumento, positivado no artigo 139, IV do Código de Processo Civil, determina que o juiz possui legitimidade para determinar as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias que julgar necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial [1]. A ADI 5.941, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, visava à declaração de inconstitucionalidade, sem redução de texto, de tal artigo do Código de Processo Civil.

Com o intuito de afastar, em qualquer hipótese, a possibilidade de imposição judicial de medidas coercitivas, indutivas ou sub-rogatórias consistentes em suspensão do direito de dirigir, apreensão de passaporte e proibição de participação em concursos públicos ou em licitações, o partido político autor se baseava na ideia de que tais medidas feririam o princípio da proporcionalidade e que se dariam sob o sacrifício de direitos fundamentais.

Tal ADI, no entanto, foi julgada improcedente pela maioria do plenário, tendo vigorado a tese do relator, ministro Luiz Fux, na qual considerou que medidas coercitivas como a retenção de passaporte e de CNH visam tutelar as garantias de acesso à justiça e de efetividade e razoável duração do processo e que inexistiria violação abstrata e apriorística da dignidade do devedor.

Utilizando como premissa o fato de que o Poder Judiciário figura, na ordem constitucional brasileira, como a instituição responsável por tutelar os cidadãos contra lesões ou ameaças a seus direitos, competindo-lhe, por conseguinte, conceder uma resposta adequada e célere às questões que lhe são submetidas (artigo 5°, incisos LIV e LXXVIII, da Constituição da República), considerou-se que a intenção da legislação processual foi propiciar aos magistrados os instrumentos necessários e suficientes para a garantia da efetividade de suas decisões.

O ministro Edson Fachin, no entanto, teve voto parcialmente divergente, limitando a possibilidade de restrição das medidas atípicas às hipóteses de devedores de alimentos, visto ser a única hipótese em que o próprio ordenamento admitiria inclusive prisão civil. Para o ministro, não poderia o devedor ser sancionado com medidas restritivas de suas liberdades ou direitos fundamentais, em virtude da não quitação de suas dívidas, exceto no caso da dívida de alimentos, pois, a seu ver, tal entendimento não seria consentâneo com a Constituição e o próprio Estado democrático de Direito.

O voto vencedor, no entanto, apesar de permitir a utilização de medidas atípicas aos diversos tipos de execução, não foi uma carta branca para que o juiz se valha irrestritamente de qualquer meio para efetivação do pagamento do débito. Ficou expressamente consignado que hão de ser respeitados os direitos fundamentais, proporcionalidade, razoabilidade, dignidade humana e que o artigo tem que ser lido dentro do contexto em que se encontra.

Ademais, o voto destacou que tais medidas só podem ser utilizadas de forma secundária, na linha do consignado pelo renomado processualista Fredie Didier Junior, que entende que os meios executórios atípicos só devem ser utilizados quando as medidas previstas no Código de Processo Civil demonstrem-se ineficazes ou inúteis. Ou seja, de forma subsidiária [2].

A temática a respeito das medidas atípicas está longe de ser pacífica. Tanto é assim que a própria PGR opinou em sentido contrário à tese do voto vencedor, opinando pela procedência do pedido da ADI. Segundo Aras, o juiz somente poderia aplicar, subsidiariamente e de forma fundamentada, medidas atípicas de caráter estritamente patrimonial, excluídas as que importem em restrição às liberdades individuais [3].

Do ponto de vista do exercício da advocacia, a decisão do STF mostrou-se de extrema importância na facilitação de meios de forçar o adimplemento de obrigações judicialmente impostas.

Imagine, por exemplo, a atuação de um patrono, que defende os interesses de uma criança, representado por um de seus ascendentes, no ajuizamento de uma ação de alimentos em face do outro. Figure a possibilidade de a sua atuação profissional na ação de conhecimento ter sido bem-sucedida, conseguindo provar com êxito as necessidades específicas da criança, a elevada possibilidade financeira do genitor alimentante e a proporcionalidade do valor requerido, tendo o pedido da ação sido julgado procedente em sua integralidade.

Mesmo com o sucesso na ação hipotética supramencionada, por diversas vezes o cliente não recebe efetivamente a verba à que faz jus. Isso porque, com exceção das hipóteses de vínculos de trabalho com carteira assinada em que é possível o desconto direto em folha de pagamento, o alimentante constantemente deixa de adimplir com a obrigação fixada. É o famoso “ganha, mas não leva”, ainda agravado pelo fato de ter que pagar honorários contratuais ao advogado por sua atuação. Em situações como essa, a única saída é o ajuizamento de ações de execução e o início de uma longa saga na busca pela localização de patrimônio e meios de efetivo adimplemento.

É bem verdade que o ordenamento jurídico pátrio autoriza a utilização do rito de prisão civil para execuções de dividas alimentares. No entanto, tal possibilidade está restrita somente aos débito compreendidos até as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo.

Fato notório, ademais, é que, por diversas vezes, as tentativas de execução pelo rito convencional da expropriação se mostram completamente infrutíferas. Utilização de “laranjas”, venda de bens no curso do processo executivo e cessão “fraudada” de direitos hereditários são só alguns dos muitos artifícios de má-fé de burlar o processo executivo.

Cabe questionar então: como dar efetividade aos débitos anteriores ao período que autoriza a prisão civil? Como fazer com que o genitor que detém a guarda fática da criança não tenha a incumbência de arcar com todos os meses em que teve que, na prática, sustentar sem auxílio financeiro de outrem aquela criança?

Nesse sentido, a possibilidade de retenção de passaporte e de CNH mostra-se uma saída importante. O acesso à justiça, como pontuado no voto vencedor, reclama tutela judicial tempestiva, específica e efetiva sob o ângulo da sua realização prática. Num cenário de inefetividade generalizada das decisões judiciais, é possível que o devedor não tenha incentivos para colaborar na relação processual, mas, ao contrário, seja motivado a adotar medidas protelatórias.

Nesse contexto, longe de apresentar estímulos para a atuação proba, célere e cooperativa das partes no processo, a legislação (e sua respectiva aplicação pelos julgadores) estará promovendo incentivos perversos, apontando para o descumprimento das determinações exaradas pelo Poder Judiciário [4].

Assim, na análise axiológica do ordenamento jurídico, não é possível que se pondere somente em abstrato as limitações às liberdades individuais. O contexto do caso contrato e o poder de cautela do juiz, balizados por uma análise de efetividade do acesso à justiça, devem servir de norte na autorização pelo juiz de medidas atípicas de execução, como a retenção de passaporte e Carteira Nacional de Habilitação.

David Igor Rehfeld é advogado, sócio do escritório Pires, Kaufmann e Rehfeld e membro do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFam).

Tatiana Kaufmann Pires é advogada, sócia do escritório Pires, Kaufmann e Rehfeld, associada ao Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFam) e mestre em Direito Civil, com ênfase em Direito de Família, pela Universidade de Lisboa.

Consultor Júridico

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