Relação entre legislativo e executivo no setor elétrico

O Congresso tem sugerido querer ser protagonista em diversas matérias do setor elétrico. Artigo publicado por pesquisadores do projeto Regulação em Números da FGV Direito Rio mostrou ser a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) a que mais tem sido alvo de projetos de decretos legislativos visando sustar seus atos normativos, respondendo por 25% de todas as iniciativas do Congresso em face das agências reguladoras federais nesse sentido (ainda que os projetos de decreto legislativo tenham dificuldade em ser, de fato, aprovados).

De outra perspectiva, o poder legislativo enfrenta dificuldades para aprovar projetos de lei relevantes ao setor. Impasses decorrentes de interesses de múltiplos stakeholders tendem a gerar bloqueios. É dizer: ao mesmo tempo em que o legislativo ameaça incrementar a sua função de controlador dos atos regulatórios com alegado fundamento no artigo 49, V da Constituição, esse poder enfrenta dificuldades no exercício do seu papel constitucional de exarar leis para desenhar as políticas públicas setoriais, que deveriam servir de base para a atuação das agências reguladoras e o poder concedente.

A ausência de embasamento legal para a renovação das concessões que venceriam a partir de 2015 foi ilustrativo desse fato. Quem acompanha o setor elétrico lembrará que, na primeira década deste século, sabia-se que um conjunto relevante de contratos de concessão, especialmente de geração, estava por vencer. Tratava-se de contratos que haviam sido prorrogados por lei em 1995, por 20 anos, e teriam seu termo final em 2015. O mercado indagava se nova prorrogação seria possível, inclusive em atenção ao fato de que relevante parcela dos ativos em questão eram estatais.

Na ocasião, houve vários projetos de lei sobre o tema, mas nenhum logrou se tornar lei. Como consequência, o Executivo editou a Medida Provisória 579/2012, que ficou conhecida como o “11 de setembro” do setor elétrico, por ter sido aprovada nessa data. A MP autorizou a renovação antecipada dos contratos de concessão com diversas exigências que o mercado não estava esperando, tais como, que toda a energia dos contratos renovados fosse alocada ao ambiente de contratação regulada; que as geradoras passassem a ser remuneradas em modelo de cost plus, tendo direito à recuperação dos custos de operação e manutenção acrescidos de 10%; e que a energia fosse cotizada entre as distribuidoras [1].

Em suma, com essa estratégia, o governo procedeu à redução artificial das tarifas de energia, o que incentivou o consumo em momento de estiagem. Como consequência, houve desbalanceamento do setor e necessidade de incrementos tarifários significativos nos anos subsequentes.

O atual momento histórico mais uma vez experimenta certa apreensão quanto à relação entre os papéis dos poderes legislativo e executivo na conformação do setor elétrico. Vinte contratos de concessão de distribuição terão seu termo final entre 2025 e 2031, conforme dados do Ministério de Minas e Energia (MME) (Nota Técnica 14/2023/Saer/SE-MME).

Para que governo e mercado possam decidir acerca do seu interesse em prorrogá-los, ter informação sobre a base de clientes e as atividades que serão esperadas das distribuidoras, nas próximas décadas, mostra-se essencial. O futuro dessas empresas depende, em grande medida, do processo de abertura do mercado para os atuais clientes cativos, questão que aguarda, ao menos desde 2016, a atualização da legislação setorial. Explica-se.

Na década de 1990, o país promoveu uma série de licitações para celebração de contratos de concessão de distribuição de energia elétrica. O modelo escolhido conferiu às concessionárias o monopólio geográfico sobre a prestação dos serviços de distribuição aos chamados “clientes cativos”, o que inclui a entrega de energia ao usuário final associada à operação e manutenção da rede.

Paralelamente, a legislação previu que a formação do mercado livre de compra e venda de energia elétrica ocorreria de forma gradual ao longo dos anos, iniciando-se pelos clientes eletrointensivos. Na presente data, parcela dos consumidores, inclusive os residenciais, seguem sendo clientes cativos das distribuidoras.

Entretanto, em linha com o que ocorreu em outros países (Carvalho de Paiva, 2021), a abertura total do mercado — de modo que todo consumidor possa escolher seu provedor de energia — é medida que vem sendo discutida. O tema é objeto de proposta que tramita no Congresso ao menos desde 2016 (PLS 232/2016, atualmente em curso na Câmara dos Deputados como PL 414/2021).

A definição de como ocorrerá essa abertura parece se mostrar etapa prévia à regulamentação de parâmetros para que os interessados possam decidir sobre a relicitação ou prorrogação dos contratos de concessão de distribuição. Embora se trate de assuntos distintos, sua inter-relação é inegável: se governo e mercado não têm clareza sobre quais serão as atividades de incumbência das distribuidoras nos próximos anos, e se elas não têm previsibilidade sobre seus custos e receitas futuros, torna-se difícil aos atores interessados a realização de análises custo-benefício.

A abertura do mercado para atingir o consumidor residencial trará complexidades inéditas, com ênfase para questões como (i) mecanismos para se financiar os consumidores de baixa renda (atualmente atendidos pela tarifa social e subsídios cruzados das tarifas pagas pelos demais); (ii) instrumentos para assegurar os direitos do consumidor residencial, potencialmente hipossuficiente nas relações contratuais de compra e venda de energia que serão firmadas; (iii) necessidade de assegurar confiabilidade na geração necessária para atender ao consumo em um cenário de descentralização crescente de unidades produtoras em pequena escala (micro e minigeração e a figura do consumidor-gerador, o “prosumidor”); e (iv) equacionar o aumento da quantidade de agentes e, consequentemente, da complexidade de operações que o Operador Nacional do Sistema (ONS) terá que administrar.

O setor tem discutido profundamente os temas acima, na maior parte dos casos tendo por pano de fundo a tramitação do PL 414/2021. Entretanto, após cerca de cinco anos no Senado, de onde é oriundo, o texto encontra-se há dois anos e meio na Câmara dos Deputados. Após a sua deliberação, como são esperadas alterações, o texto deverá voltar ao Senado. Há ainda notícias de que possa vir a ser substituído por nova proposta legislativa, dessa feita oriunda do Poder Executivo (cf. notícia do Canal Energia).

Enquanto isso, o Poder Executivo avança com a regulamentação dos temas que lhe são possíveis. Em setembro de 2022, o MME exarou a Portaria 50/2022, estabelecendo a abertura do mercado para todos os consumidores classe A, a partir de janeiro de 2024, tendo determinado a necessidade de que aqueles com carga inferior a 500 kw sejam representados por agente varejista na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica.

A decisão foi tomada com fundamento no artigo 15, § 3o, da Lei 9074/1995, que conferiu ao Poder Executivo competência para reduzir os limites de carga e tensão para que clientes do mercado cativo pudessem acessar o livre após oito anos do início de vigência da referida lei.

Além disso, em junho de 2023, o MME abriu a Consulta Pública 152/2023, cujo objetivo é o recebimento de contribuições acerca de um conjunto de temas que, no seu entender inicial (sujeito a modificações a partir das contribuições recebidas), deverão ser endereçados nas suas futuras decisões sobre prorrogar ou relicitar as concessões de distribuição.

O objetivo deste artigo não consiste em endereçar pontos de atenção ou sugestões ao MME, que recebeu dezenas de contribuições (inclusive a da Comissão Especial de Energia Elétrica da OAB-RJ, que integramos, e que pode ser acessada aqui). O ponto que se deseja destacar é que a ausência de definição do marco legal do setor elétrico para os próximos anos traz complexidades adicionais ao assunto.

É louvável a proposta de discussão pública das diretrizes para prorrogação ou relicitação das concessões de distribuição ora proposta pelo MME, mas é preciso mencionar que esta iniciativa parece ocorrer fora da ordem cronológica que seria esperada.

Sem que o Poder Legislativo tenha decidido sobre as questões políticas fundamentais de organização do setor para os próximos anos, tais como as regras de abertura do mercado; quem arcará com os custos do processo; como será assegurada a modicidade tarifária às parcelas mais vulneráveis da população; e como será garantido o fornecimento aos consumidores residenciais em caso de violação dos contratos pelos geradores/comercializadores contratados (o que está sendo designado “supridor de última instância), o futuro é incerto.

Pode-se argumentar que essas matérias, por sua elevada complexidade e tecnicidade, talvez não fossem próprias do Legislativo, sendo mais bem decididas pela Administração Pública, a partir das competências legalmente atribuídas ao MME e à Aneel. A questão, todavia, parece ser a ausência de clareza sobre quem tomarão as decisões fundamentais sobre o tema e em que momento elas ocorrerão. Poderá o MME tomar decisão resilientes sobre prorrogação ou relicitação das concessões, sem que o Legislativo tenha disciplinado o processo de abertura do mercado? Poderão os agentes econômicos confiar nos atos jurídicos negociais firmados nesse contexto?

Traçar a linha divisória entre as competências legislativas e executivas em setores regulados de infraestrutura não é simples. Das teses clássicas do princípio da legalidade como vinculação positiva da Administração à lei (para uma análise sobre graus de vinculação do administrador à lei, ver Aragão, 2004) à defesa da existência de espaços “reservados à Administração” (teoria encampada pelo Supremo Tribunal Federal em alguns julgados, como, por exemplo, no ARE 1343233), são muitas as nuances e teses sobre checks and balances entre os Poderes Legislativo e Executivo na normatização de setores regulados.

É fato que o MME tem o dever de responder tempestivamente aos pedidos das concessionárias, que devem ser realizados até 36 meses antes do seu encerramento, para deliberação pelo poder concedente até o 18º mês antes dessa data. No entanto, a atual indefinição legislativa arrisca que o setor elétrico venha a vivenciar mais uma vez discussões quanto à legitimidade democrática de decisões tomadas no âmbito do Poder Executivo, premido pelos prazos que se avizinham. Ainda está em tempo de Legislativo e Executivo se coordenarem para um futuro mais auspicioso do setor, oferecendo previsibilidade e segurança jurídica ao processo, mas o lapso temporal para este fim está se encerrando.

 

 


[1] DUTRA, Joísa; SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Diagnóstico, desafios e propostas para o desenvolvimento do setor elétrico. In ALMEIDA JR., Mansueto; GIAMBIAGI, Fábio. (ORG.) Retomada do crescimento – diagnóstico e propostas. Rio de Janeiro: Elsevier 2017.

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