Relatório da reforma tributária na Câmara prima por indefinições

Como o bom filho que a casa torna, é com imensa alegria que regresso a este espaço! Senti muitas saudades desse ambiente acolhedor.

Durante sete longos anos e em mais de 80 colunas, tive o privilégio de abordar, ao lado de três grandes nomes do Direito Tributário — Heleno, Igor e Roberto —, uma ampla variedade de assuntos, com o objetivo de manter os leitores desta coluna sempre atualizados sobre os temas mais relevantes da época.

Reúno-me agora novamente a esse time vencedor, e o encontro ainda mais enriquecido com a participação de outras três personalidades do mundo jurídico: Elidie, Helenilson e Hugo Segundo.

Felicidade redobrada!

E, nessa reinauguração, eu não poderia tratar de outro assunto que não fosse aquele que me acompanha nos últimos trinta anos, e que, especificamente nesta semana, ocupa as manchetes de todos os jornais: a reforma tributária e o relatório publicado pelo Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados, criado especificamente para o exame das PECs 45 e 110, ambas de 2019.

Quando digo que estou envolvido nesse assunto há 30 anos, não exagero.

De fato, em 1995, tive a minha primeira experiencia com esse tema.  Foi em um encontro de que participei, em Brasília, assessorando o então Secretário de Fazenda do Estado do Ceará, Ednilton Soárez, para tratar de um projeto de reforma tributária que tramitava Congresso, a PEC 175/95.

Esse projeto era conhecido como instituidor do “modelo do barquinho”, em decorrência da alternância de incidências entre os IVAs federal e estadual então propostos. Quando um incidia, o outro era reduzido a zero, e assim por diante, lembrando os movimentos das ondas do mar.  Daí, a União, como um “barquinho”, transportava, pelo mecanismo adotado, o imposto arrecadado no estado produtor para o estado consumidor.

Esse encontro ocorreu no Ministério da Fazenda, durante três longos e consecutivos dias: uma sexta, um sábado e um domingo.

Três eram os grupos presentes: o primeiro, composto por representantes da equipe econômica do governo FHC — o então ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o  Secretário da Receita Federal, Everaldo Maciel (que conheci nessa ocasião e viria, posteriormente, se tornar um grande amigo); o segundo, por membros da comissão criada no Congresso para analisar a PEC 175/95, os deputado Mussa Demes e Germano Rigotto; e o terceiro, por secretários de Fazenda de sete estados — São Paulo, Rio Grande do Sul e cinco estados da região Norte e Nordeste, entre os quais o estado do Ceará, representado pelo secretário Ednilton Soárez, que eu assessorava, como comentei acima.

As discussões eram muito semelhantes às atuais. Debatiam-se questões técnicas próprias da implantação de um IVA (formatos de não cumulatividade, créditos que se acumulavam por todas as possíveis e impossíveis razões, vedações a créditos etc.); aspectos econômicos, orçamentários e federativos que emanariam do novo sistema proposto; e, o mais polêmico de todos, como resolver o problema da guerra fiscal entre estados.

Os representantes dos estados da região Nordeste eram favoráveis; o de São Paulo, contrário; e o do Rio Grande do Sul se mostrava indeciso.

Foram três dias de intensa discussão, até que, no final da tarde de domingo, último daqueles três longos dias, Everardo Maciel, sentado à cabeceira daquela gigantesca mesa — Malan ao lado —, pediu a atenção de todos e começou a marcar à caneta a imensa maioria dos dispositivos do projeto. Os presentes acompanhavam aquela sequência interminável de marcações, sem entender muito o propósito dela. Em dado momento, Everardo se levanta e diz: “Senhores, todos esses dispositivos que marquei neste projeto não têm a menor chance de serem aprovados!”.

Ele foi taxativo na sua afirmação. A reunião terminou e, com ela, a PEC 175/95.

Ali, naquele final de domingo, com aquela frase, aprendi que, ao lado do suporte jurídico e do econômico, há um terceiro, importantíssimo, sem o qual nenhum projeto de reforma tributária prospera: o suporte político.

Tendo em vista os problemas pelos quais, já há muito, passa o Sistema Tributário Nacional vigente, seria de se supor que o suporte político não seria um empecilho à consecução de uma efetiva reforma tributária.

De fato, a necessidade de que ela ocorra é o único consenso existente entre aqueles que a discutem.

Isso porque o nosso sistema tributário é hoje um imenso aglomerado de normas, repleto de patologias que o tornam um dos mais complexos do mundo, seja pela forma como constitucionalmente repartidas as competências tributárias entre as unidades da Federação, seja pelos conflitos de competência que ele gera, ou, ainda, pela insegurança jurídica que esses fatores, juntos, proporcionam.

As adversidades relativas à tributação do consumo a tornam única no mundo e decorrem, principalmente, da multiplicidade de tributos e competências tributárias que a caracterizam, bem como da complexidade resultante das suas normas, principalmente aquelas relativas à não cumulatividade. Vivemos num caos tributário.

Qual seria, então, o motivo de não termos conseguido, até agora, emplacar a reforma tributária proposta por meio das PECS 45 e 110, que, como dito, vem sendo discutida há meia dezena de anos?

A resposta é simples: porque os três suportes que deveriam sustentá-la — jurídico, econômico e político — apresentavam, todos, deficiências graves que acabaram por inviabilizá-la.

Aqui vão alguns exemplos:

(a) questões relativas ao pacto federativo, como as que colocam em xeque a criação de um IVA único, que compromete a competência outorgada aos estados e municípios e, consequentemente, o Federalismo;

(b) adoção de alíquota única, do que decorre aumento extorsivo de carga tributária atribuído a setores fundamentais para a economia nacional, como o de serviços e o do agronegócio;

(c) extinção da extrafiscalidade, com a eliminação da possibilidade de concessão de benefícios fiscais, mesmo que justificados, como é o caso da cesta básica que pretendeu-se fosse tratada por meio da concessão de cashbacks;

(d) inadequado tratamento à Zona Franca de Manaus;

(e) inadequado tratamento às empresas tributadas pelo Simples Nacional;

(f) transição inapropriada de um sistema para outro, por dele decorrer a transformação da vida do Fisco e do contribuinte em verdadeiro caos, durante anos;

(g) enormes equívocos no tratamento dado à não cumulatividade, que é o alicerce maior de uma reforma cuja principal meta é a criação de um efetivo imposto sobre valor agregado.

Problemas como esses fizeram com que ambas as PECs tenham atravessado quase meia década sendo discutidas — inclusive, durante a pandemia, o que é um contrassenso — sem que se tenha andado um centímetro em direção à sua aprovação.

O único movimento que de fato houve foi a apresentação, nesta semana, pelos deputados Aguinaldo Ribeiro e Reginaldo Lopes, do relatório das conclusões a que chegou o GT da Câmara dos Deputados sobre as propostas feitas.

O relatório não traz no seu corpo propostas concretas relativas aos pontos acima elencados. Em alguns casos, ele se limita a simplesmente descrever as divergências existentes, aconselhando, quando muito e de forma bastante simplória, que alguma iniciativa seja tomada, sem detalhar o caminho a ser traçado.  Isso ocorreu, por exemplo, no caso da Zona Franca de Manaus.

Mas, vejamos, abaixo, mais especificamente, os comentários feitos no relatório que se referem aos temas mais polêmicos, na forma e ordem em que resumidos acima:

(a) questões relativas ao pacto federativo: sugere-se o abandono do IVA único federal. Será criado um IVA Dual, para o qual serão competentes, de um lado, a União e, de outro, os estados e municípios, conjuntamente. Haverá um Conselho Federativo, em que atuarão os entes subnacionais, com o objetivo de que todas as competências sejam exercidas de maneira uniforme em todo o território. Propõe-se, também, a criação do Fundo de Desenvolvimento Regional, financiado primordialmente com recursos da União, com o objetivo de reduzir desigualdades regionais e estimular a geração de renda e emprego.

Comentários: a criação do IVA Dual atende aos estados, mas deixa os municípios, principalmente os grandes, a descoberto; quanto ao Fundo de Desenvolvimento Regional, tanto o secretário Bernard Appy quanto o ministro Fernando Haddad já se manifestaram na imprensa no sentido de que será necessária a imposição de limites a esse financiamento, e que ele será “fiscalmente responsável”.

(b) adoção de alíquota única:  o relatório sugere a adoção de uma alíquota padrão, mas define como diretriz que outras sejam criadas para bens e serviços especificados na emenda constitucional (tais como saúde, educação, transporte público coletivo, aviação regional e a produção rural).

Comentários: sob esse aspecto, houve uma evolução, na medida em que se sugere que desiguais não sejam tratados igualmente, o que ocorreria se imposta uma alíquota única, com grave ofensa à isonomia; mas não houve qualquer determinação de que como será feita, na prática, essa graduação.

(c) extinção da extrafiscalidade, tratamento adequado à cesta básica e utilização do cashback: recomendou-se que os benefícios de ICMS convalidados até 2032 sejam observados, sem definir-se, contudo, a formatação necessária ao cumprimento dessa diretriz; quanto à cesta básica, sugeriu-se que ela seja uma exceção à aplicação da alíquota padrão; e relativamente ao cashback, recomendou-se que ele seja utilizado como medida de mitigação da regressividade, proporcionando a devolução de parte do tributo incidente às famílias de baixa renda.

Comentários: no que diz respeito à cesta básica, pareceu-me correta a orientação dada (alíquota diferenciada); já no que concerne ao cashback, nós, brasileiros, o vemos com muita desconfiança; costumo dizer nos debates de que participo, que, antes de discutir a conveniência desse modelo, gostaria que o governo federal tratasse de restituir o valor dos empréstimos compulsórios instituídos nos anos 80, o que, quase quarenta anos depois, ainda não ocorreu. A redução de alíquotas incidentes nos produtos que são consumidos pelas famílias de baixa renda seria medida muito mais eficiente no combate à regressividade.

(d) Zona Franca de Manaus: reconheceu-se a importância da região, mas não houve clareza quanto às medidas que serão adotadas para a sua preservação.

Comentários: esse é um dos assuntos mais relevantes da reforma tributária, e, pela vagueza das conclusões a que o relatório chegou sobre esse tema, percebe-se que ainda há muito o que evoluir para que se chegue a um consenso.

(e) Simples Nacional: o contribuinte aderente poderá optar entre 2 modelos: (i) prosseguir no recolhimento unificado desse sistema (que considerará inclusive a incidência proporcional do IBS na operação), admitido o crédito para as empresas adquirentes dos bens e serviços transacionados; ou (ii) passar a recolher o IBS no seu formato normal e permanecer na sistemática do Simples com relação aos demais tributos.

Comentários: houve aqui uma evolução, quando se sugere a possibilidade do creditamento acima referido, pelas empresas adquirentes.  

(f) transição para o novo modelo: o relatório simplesmente aconselha seguir-se uma das duas regras sugeridas pelas PECs 45 e 110.

Comentários: o problema permanece, sem o oferecimento de sequer uma sugestão adicional que amenize as dificuldades que serão provavelmente enfrentadas pelos contribuintes nessa transição, que fará com que eles tenham que conviver com dois sistemas caóticos e distintos ao mesmo tempo.

(g) questões relativas à não cumulatividade: o GT recomenda o aprimoramento do conceito constitucional de não cumulatividade previsto nas PECs 45 e 110 e sugere que seja retirado da Emenda Constitucional o dispositivo que condiciona o crédito ao efetivo pagamento do imposto na etapa anterior da cadeia de circulação de mercadorias e serviços; mas, por outro lado, permite que esse condicionamento venha a ser disciplinado por lei complementar, juntamente com a incerta criação do denominado split payment. Sugere, também, a criação de “regimes fiscais específicos” para atividades cujo sistema de apuração de créditos e débitos apresente peculiaridades que dificultem a sua implementação, tais como operações com bens imóveis, serviços financeiros, seguros, cooperativas, combustíveis e lubrificantes.

Comentários: O aprimoramento do conceito constitucional de não cumulatividade a ser adotado no novo IBS é medida absolutamente necessária e salutar, como venho dizendo em todos os debates de que participo sobre a matéria.  Quanto ao condicionamento do crédito ao pagamento do tributo pelo elo anterior, retirá-lo do projeto é um acerto; permitir que ele seja reintroduzido no mundo jurídico por meio de lei complementar é imensurável e inaceitável equívoco. A criação de regimes especiais para atividades que enfrentem problemas na apuração tradicional de créditos e débitos é louvável, desde que admitida para todos os setores da economia que se encontrem nessa situação.  Agir de forma diversa ferirá frontalmente a isonomia e a concorrência, entre outros princípios que restariam ofendidos. Tratarei desse tema em coluna própria.

Essas foram algumas das sugestões feitas no relatório apresentado pelo GT nesta semana.

Houve outras relacionadas, por exemplo, à instituição do imposto seletivo (IS), cuja finalidade seria desestimular o consumo de bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente (entre outros), bem como a recomendação de que o IPVA incida sobre veículos aquáticos e aéreos, que o ITD seja progressivo em razão do valor da transmissão, e que os municípios possam atualizar a base de cálculo do IPTU por decreto, com base em critérios gerais previstos em lei.

A despeito de serem boas ou não essas propostas, causa estranheza o fato de que sejam feitas no âmbito de uma reforma focada estritamente na tributação do consumo.

Ou faz-se uma reforma genérica que abranja consumo, renda e patrimônio de uma só vez (o que me parece mais adequado), ou fatia-se a reforma, e cada uma daquelas bases de incidência é tratada de forma individualizada. Misturarem-se ambos os métodos não parece ser medida aconselhável.

Um último comentário, de extrema importância, diz respeito ao fato de que esse relatório veio desacompanhado do substitutivo que aglutinaria todas as sugestões feitas pelo GT.

A disponibilização e publicação desse substitutivo é prometida somente para o dia 20 de junho, e a sua votação, segundo afirma o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, está prevista para a primeira semana de julho.

Em outras palavras, fiscos, contribuintes e parlamentares da Câmara, no melhor dos mundos, terão 13 dias úteis para examinar a qualidade e adequação de regras que mudarão disruptivamente a tributação do consumo no país.

Isso é razoável? Claro que não.

O maior temor é o de que nós, brasileiros, venhamos a experimentar o mesmo dissabor sofrido quando da votação pela Câmara, do PL 2.337/21, relativo à revogação da isenção de IR sobre a distribuição de dividendos. 

Como todos se lembram, esse projeto tramitou naquela Casa com absoluto açodamento, ao ponto de o projeto ter sido votado sem que os parlamentares tivessem tido a oportunidade de lê-lo.  De fato, o projeto não estava no seu formato final, quando foi votado!

Esse lamentável comportamento fere os princípios republicanos, é inaceitável e, portanto, não poderá se repetir.

Gustavo Brigagão é sócio do escritório Brigagão-Duque Estrada Advogados, presidente do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados), ex-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro)e professor em cursos de pós-graduação na FGV (Fundação Getulio Vargas).

Consultor Júridico

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