Releitura do interstício entre os turnos de votação de PEC

Enquanto as demais proposições legislativas só precisam, em regra, ser aprovadas em um turno em cada casa do Congresso, as propostas de emenda à Constituição (PEC) devem ser apreciadas em cada Câmara duas vezes (dois turnos), totalizando quatro votações. A proposta será considerada aprovada se for acatada em todas as quatro votações. Perdendo em uma delas, estará rejeitada e será arquivada, expondo-se à limitação do artigo 60, § 5º (irrepetibilidade dentro da mesma sessão legislativa) [1].

Contudo, não há, na Constituição, exigência expressa de um lapso temporal — interstício — entre os turnos de votação, mas essa salutar providência é prevista em sede regimental [2].

Questiona-se sobre a possibilidade de superação dessa norma regimental, com a chamada “quebra de interstício” ou “calendário especial” (votação dos dois turnos da PEC sem respeitar o intervalo regimental). Há quem sustente tratar-se a questão de tema meramente regimental, verdadeira matéria interna corporis, sobre a qual o Parlamento seria soberano para deliberar. Com essa tese, aliás, alinhou-se o STF, no julgamento da ADI nº 4.425/DF, quando ficou decidido que:

“A Constituição Federal de 1988 não fixou um intervalo temporal mínimo entre os dois turnos de votação para fins de aprovação de emendas à Constituição (CF, art. 62, § 2º), de sorte que inexiste parâmetro objetivo que oriente o exame judicial do grau de solidez da vontade política de reformar a Lei Maior. A interferência judicial no âmago do processo político, verdadeiro locus da atuação típica dos agentes do Poder Legislativo, tem de gozar de lastro forte e categórico no que prevê o texto da Constituição Federal. Inexistência de ofensa formal à Constituição brasileira.” [3]

Discordamos desse entendimento, que esperamos venha a ser brevemente revisto pelo STF. A regra dos dois turnos tem uma razão de ser: permitir um debate mais cuidadoso da matéria objeto da PEC, inclusive para permitir à sociedade pressionar seus representantes para, eventualmente, mudar o voto entre a primeira e a segunda rodadas de votação. Assim, a necessidade de um intervalo mínimo — que pode ser conformado, definido, pelos Regimentos Internos, mas não desrespeitado — parece-nos derivação direta do princípio constitucional do devido processo legislativo e do princípio democrático [4].

Trata-se, portanto, daquilo que Vincenzo Longi caracteriza como norma regimental que interpreta e desenvolve o texto constitucional, integrando, assim, o conceito de devido processo legislativo (constitucional) [5]. Com efeito, de nada adiantaria o constituinte originário exigir dois turnos de discussão e votação, se isso pudesse ser feito sem intervalo algum, ou com apenas alguns minutos de distância entre a primeira e a segunda decisão.

Nessa mesma linha de raciocínio, Gabriel Dezen Júnior afirma que:

“a prescrição constitucional que determina a realização da votação de PEC em dois turnos não é mera formalidade numérica destituída de sentido. Ao contrário, prende-se à percepção da necessidade de decantação de uma necessária maturação do regramento que se pretende impor à matéria constitucional, a um sopesamento de seus efeitos jurídico-normativos e a uma fundamental reflexão sobre as razões e efeitos da mutação formal da Constituição.” [6]

No mesmo sentido, confiram-se as lições e a análise exaustiva do tema na obra de Heraldo Pereira de Carvalho acerca do assunto [7].

Essa exigência de intervalo mínimo serve, aliás, para garantir (ou pelo menos tentar garantir) que não se aprovem PECs de maneira açodada. Condiciona-se a validade da emenda à meditação minimamente refletida em ambas as Casas do Congresso, pois, como adverte o prof. Victor Marcel Pinheiro, em outra coluna desta ConJur:

“o devido processo legislativo é entendido como um princípio constitucional mais abrangente, que abarca outros princípios e regras relativas ao processo legislativo e estabelece exigências para que a tomada de decisão política ocorra com um mínimo de reflexão e em ambiente livre de influências externas indevidas.” [8]

Aliás, no âmbito subnacional, algumas Constituições estaduais exigem expressamente um intervalo mínimo entre os turnos de Emendas. Exemplificativamente, o artigo 70, § 1º, da Lei Orgânica do Distrito Federal dispõe que “A proposta será discutida e votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e considerada aprovada se obtiver em ambos, o voto favorável de dois terços dos membros da Câmara Legislativa”.

É interessante notar, a propósito, que o STF costuma ser bastante rígido (corretamente) com outras decorrências não expressas da regra dos dois turnos. Assim, por exemplo, a corte entende que, como decorrência de se exigirem dois turnos de discussão e de votação, não são admitidas no segundo turno emendas de mérito, mas apenas as de redação: com efeito, se fosse admitida inovação material entre o primeiro e o segundo turno, a redação nova teria sido aprovada em apenas um turno (o segundo), violando o § 2o do artigo 60 da CF.

É a razão de ser da norma do artigo 363 do Risf [9], e tal mandamento já levou o STF a declarar a inconstitucionalidade parcial da EC no 19, de 1998 (STF, Pleno, ADI-MC no 2135/DF, redatora para o acórdão ministra Ellen Gracie).

Espera-se que esse mesmo rigor venha a ser adotado em possível revisão do entendimento do tribunal, de modo que se passe a exigir algum intervalo mínimo entre os turnos de votação de PEC. Qual é esse intervalo, como se deve contar, tudo isso é questão regimental e interna corporis; a própria existência do interstício é decorrência necessária da regra dos dois turnos instituída pelo § 2º do artigo 60.

 


[2] O Regimento Interno do Senado Federal dispõe que o “interstício entre o primeiro e o segundo turno será de, no mínimo, cinco dias úteis” (art. 362). Já o Regimento da Câmara prevê que: “A proposta será submetida a dois turnos de discussão e votação, com interstício de cinco sessões” (art. 202, § 6º).

[3] STF, Pleno, ADI nº 4.425/DF, relator ministro Luiz Fux, DJe de 18.12.2013.

[5] Cf. MONTEIRO NETO, José Trindade. O Conceito Judicial do Devido Processo Legislativo. Brasília: IDP [dissertação de Mestrado], 2020, p. 55.

[6] DEZEN JÚNIOR, Gabriel. Teoria Constitucional. Brasília: Alumnus, 2015, p. 261.

[7] CARVALHO, Heraldo Pereira de. A subtração do tempo de interstício entre turnos de votação de proposta de emenda à Constituição de 1988: uma contextualização de interesses segmentados em detrimento do direito da cidadania. [dissertação de Mestrado] Brasília: Universidade de Brasília, 2011. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/8379.

[9] “Incluída a proposta em Ordem do Dia, para o segundo turno, será aberto o prazo de três sessões deliberativas ordinárias para discussão, quando poderão ser oferecidas emendas que não envolvam o mérito.”

João Trindade Cavalcante Filho é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, consultor legislativo do Senado, professor de Direito Constitucional e Legística do IDP, representante do Brasil no Grupo de Formulação de Regras Comuns de Legística para os Países e Regiões Lusófonos, da Universidade de Lisboa.

Consultor Júridico

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