Responsabilidade civil dos membros de torcidas organizadas

A nova Lei Geral do Esporte (nº 14.597/2023)[1] inovou ao tratar da responsabilidade civil das torcidas organizadas em relação aos danos causados por seus associados ou membros.

O Estatuto de Defesa do Torcedor previa, em seu artigo 39-B, que “a torcida organizada responde civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento”.

O artigo 39-C, por sua vez, determinava a aplicação do dispositivo antecedente à torcida organizada e a seus associados ou membros envolvidos, nos casos de invasão de local de treinamento; confronto ou induzimento ou auxílio a confronto, entre torcedores e ilícitos praticados contra esportistas, competidores, árbitros, fiscais ou organizadores de eventos esportivos e jornalistas.

O tema veio tratado no artigo 178, §§ 5º e 6º, da Lei Geral do Esporte. O aludido § 5º repetiu, ipsis litteris, o disposto no art. 39-B do Estatuto de Defesa do Torcedor. Já o § 6º estatuiu que o dever de reparar o dano é de responsabilidade da própria torcida organizada e de seus dirigentes e membros, de forma solidária, que responderão inclusive com seu próprio patrimônio.

Parte da doutrina, sob os auspícios da legislação revogada, admitia a responsabilidade de todo o grupo, evitando-se a irresponsabilidade e a ausência de compensação das vítimas nas hipóteses de agressões coletivas.

Efetivar-se-ia, segundo esta corrente de pensamento, a denominada “responsabilidade anônima ou coletiva”, permitindo-se a responsabilização de todos os membros de certa coletividade, dando ensejo ao que a processualística civil convencionou chamar de ação coletiva passiva, hipótese em que um agrupamento humano[2] é colocado como sujeito passivo de uma relação jurídica[3]. Inspirada na defendant class action do direito anglo-americano[4], a ação coletiva passiva admitiria que a demanda fosse direcionada contra a entidade associativa[5] ou contra um “representante adequado”[6], como, por exemplo, um líder de torcida.

Embora a matéria, neste ponto, seja travestida de nova roupagem no direito processual civil, há muito se discute, no âmbito do direito civil, acerca da possibilidade da utilização da teoria da causalidade alternativa, possibilitando-se a imputação dos danos aos membros de determinado grupo[7]. No direito brasileiro, em que pese não haja previsão expressa que permita a responsabilização do grupo sem a individualização das condutas dos indivíduos, os tribunais nacionais têm admitido a sua aplicação, fundamentando-se a condenação em princípios como o da dignidade da pessoa humana, reparação integral do consumidor, solidariedade e boa-fé objetiva[8].      

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Ocorre que, mesmo nos sistemas jurídicos que expressamente adotaram a possibilidade da responsabilização coletiva, o instituto é aplicado restritivamente. Na Alemanha, o § 830 do BGB, primeira parte, assevera que, se mais de uma pessoa tiver causado um dano conjuntamente, cada uma é responsável pela lesão provocada, aplicando-se solução análoga nos casos em que não for possível determinar qual das várias pessoas envolvidas ocasionou o dano.

A utilização do § 830 requer, no entanto, que os sujeitos tenham criado uma situação de risco[9], que se concretizou na ocorrência do dano. É possível ainda que o indivíduo comprove a impossibilidade de conexão direta entre o dano e sua pessoa, exonerando-se da responsabilidade[10]. Assim, em uma situação de tumulto popular com tiroteio, poderia o demandado provar que atirou em direção distinta daquela em que se encontrava o autor[11].

Desse modo, considerando a inexistência de regramento geral análogo ao § 830 do BGB e a necessária individualização das condutas no direito brasileiro, não parece correto sustentar, à luz do artigo 178, §§ 5º e 6º, que todos os membros da torcida organizada devem ser responsabilizados civilmente pelos danos causados por um ou alguns de seus membros.

Faz-se necessário que o sujeito tenha incrementado um risco específico, ao descumprir os deveres no tráfego[12], como no caso em que o indivíduo se envolve em um tumulto ou briga generalizada. Tem-se uma hipótese de potencialidade causal aguda ou agravada, caracterizada pela criação ou manutenção de uma situação de perigo não permitida[13].

A simples alusão a uma suposta “causalidade comum”[14] não é suficiente para a imputação dos danos. O simples fato de se associar a uma torcida organizada não deve ser entendido como fator de risco para a produção de danos, mesmo porque se trata de entidade reconhecida e permitida pelo Estado. Deve ser ainda possível que o membro possa demonstrar a ausência de liame entre seu comportamento e o dano (ex: não compareceu ao jogo ou sequer estava no local dos acontecimentos).

Ainda que a proteção da vítima se apresente como importante balizador hermenêutico da responsabilidade civil, não pode servir como fundamento para a utilização deste instituto como forma de justiça distributiva[15]. A tentativa de se ampliar o espectro da responsabilização por meio de uma aplicação indiscriminada de princípios constitucionais, sob a justificativa de se fazer justiça no caso concreto, pode gerar distorções indesejadas, imputando-se responsabilidade àqueles que atuaram licitamente, sem originar ou manter qualquer tipo de situação de perigo que pudesse ensejar o dano.

No que toca à responsabilidade solidária das entidades responsáveis pela organização da competição e dos clubes, o tema é tratado nos artigos 149 e 152 da nova Lei Geral do Esporte. O artigo 149 parece repetir, sem maiores alterações de relevo, o artigo 14 do Estatuto do Torcedor, estabelecendo uma série de deveres à entidade esportiva responsável pela organização do evento. O artigo 152, por seu turno, restringe a responsabilidade das organizações esportivas àquelas de caráter regional, fixando, de outro lado, a responsabilidade das organizações esportivas que disputarão a prova ou a partida e seus dirigentes. O artigo 19 do Estatuto do Torcedor não trazia a limitação relativa às entidades regionais, mas responsabilizava apenas as equipes detentoras do mando de campo.

A Lei Geral do Esporte previu a responsabilidade dos clubes pelos danos provocados dentro do estádio, inclusive quando praticados por membros de torcida organizada, alterando o antigo regramento que restringia o dever reparatório apenas à equipe local que detinha o mando de campo. As organizações esportivas, tanto a anfitriã quanto a visitante, têm responsabilidade pela segurança dos torcedores, embora o artigo 149 confira uma série de deveres apenas à organização esportiva diretamente responsável pelo evento, havendo mesmo quem defenda que o cumprimento destas imposições exclui o nexo de imputação, isentando a entidade que observou todos os deveres legais [16].

Diferentemente, quando o dano provocado pelo membro da torcida organizada não ocorre dentro das limitações territoriais do próprio estádio (arquibancadas, garagem, dentre outros espaços disponibilizados aos espectadores), não parece ser possível estender aos clubes a responsabilidade pelos danos ocorridos, ante a própria impossibilidade de adotar medidas de fiscalização e segurança, de competência do Poder Público. No entanto, o enunciado 447 do CJF[17] assevera que “as agremiações esportivas são objetivamente responsáveis por danos causados a terceiros pelas torcidas organizadas, agindo nessa qualidade, quando, de qualquer modo, as financiem ou custeiem, direta ou indiretamente, total ou parcialmente”, não fazendo qualquer distinção entre o dano ocorrido dentro ou fora do estádio.

Por fim, deve-se afastar a aplicação do CDC nas hipóteses regidas pela lei especial quando a própria Lei Geral do Esporte não fizer remissão ao CDC, ou nos casos em que não for estabelecida uma relação de consumo, em razão da prevalência da lei especial e posterior. Tampouco se deve trazer à baila a banalizada figura do “diálogo das fontes”[18] na tentativa de se buscar a responsabilização a qualquer custo, nos casos em que o Estado, em seu locus apropriado, por meio da atividade legiferante, decidiu restringir o dever reparatório em determinadas hipóteses.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[15] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 8, ano 3, p. 115-137, jul.-set./2016, p. 117.

Cícero Dantas Bisneto é doutorando em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo). Mestre em Direito Civil pela UFBA (Universidade Federal da Bahia). Juiz de Direito do TJ-BA (Tribunal de Justiça da Bahia). Membro do Iberc (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil) e da Deutsch-Brasilianischen Juristenvereinigung (DBJV).

Matheus Preima Coelho é mestrando em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo). Advogado em São Paulo no Junqueira Gomide & Guedes Advogados.

Consultor Júridico

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