Roberto Armond: Litigância predatória inibe acesso à Justiça

A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 5º, XXXII e 170, V, trouxe uma garantia fundamental ao cidadão, sobrevindo em setembro de 1990 a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), cujas normas visam primordialmente os vulneráveis, a partir de normas principiológicas e um complexo sistema de regras materiais e processuais que possibilitam, a um só tempo, as tutelas individual e coletiva.

Nos idos de 1995 foram criados os juizados especiais, os quais também reinventam o Poder Judiciário na busca de reduzir a litigiosidade contida, ou seja, receber os conflitos que não chegavam ao Poder Judiciário em razão de diversos obstáculos do sistema, tais como: despesas processuais, honorários advocatícios, formalismo procedimental etc.

Posteriormente, foi publicada a Lei nº 11.419/2006, que disciplinou a informatização do processo judicial, novamente visando equilibrar o acesso ao Poder Judiciário, com a duração razoável do processo e o princípio da eficiência.

Assim, o Estado, por opção política do legislador, concedeu mecanismos adequados para garantir e efetivar o acesso à Justiça, permitindo que a reivindicação de direitos e a pacificação de micro conflitos sejam possíveis e a ordem social mantida de forma civilizada, sob os ditames da lei.

Com o avanço da tecnologia, inúmeras ferramentas foram criadas ou aperfeiçoadas, especialmente no período que se seguiu à pandemia do Coronavírus (Covid-19). Portanto, operada verdadeira revolução na tramitação processual, eliminando-se o papel e transformando-se a informatização no palco central de todo o Poder Judiciário.

E os tribunais também avançaram na transparência de seus atos, estando hoje sedimentada a transmissão ao vivo das sessões, o que contribui para a disseminação dos julgados no seio da sociedade, que adquire maior familiaridade com o direito.

O problema é que as lições de cidadania propagadas nem sempre são concretizadas nas rotinas forenses, as quais, não raras vezes, ignoram jurisprudência predominante e, até mesmo, os precedentes qualificados, fomentando o próprio Poder Judiciário a litigiosidade excessiva quando rompe com a lógica do ordenamento jurídico. Eis o ponto crucial: inexiste a certeza do direito e isso gera litigiosidade, conflitos sociais e frustração de expectativas na sociedade.

Nas relações de consumo, o quadro agrava-se com a atuação de grandes fornecedores de produtos e serviços que, com forte penetração no mercado alvo, têm o potencial de gerar danos proporcionais à sua participação em grande escala. Reporto-me às instituições financeiras, às empresas de telefonia, às concessionárias de energia elétrica, aos grandes varejistas e a outras empresas que transacionam com centenas de milhares de pessoas operações potencializadas pelas interações realizadas na rede mundial de computadores. O volume das relações jurídicas impacta na quantidade de conflitos gerados e na posição desses setores como grandes litigantes no território nacional.

E diga-se que práticas ilícitas desses grandes players no ambiente consumerista, ainda que de pequena monta para o consumidor, são estatisticamente vantajosas e lucrativas. Isso porque poucos terão interesse de reclamar por direitos decorrentes de dano diminuto. Contudo, os poucos que reclamam geram número expressivo para a estatística do Poder Judiciário, não obstante a inexpressividade da quantidade de processos diante do número das violações. A lógica desse raciocínio é que os ganhos advindos da violação dos direitos consumeristas superam os custos das demandas judiciais, mesmo nas condenações em massa.

Por outro canto, os órgãos regulatórios ou de proteção ao consumidor, no mais das vezes, não fiscalizam ou interpretam certas condutas lesivas em descompasso com a jurisprudência dominante. Logo, sem prevenção e sem uma tutela coletiva eficaz, a alternativa são os litígios individuais.

Entretanto, na contramão do princípio da inafastabilidade da jurisdição e do direito do consumidor, como forma de inibir o acesso ao Poder Judiciário, foi cunhada a narrativa da litigância predatória.

A narrativa da litigância predatória ou advocacia predatória, concessa venia, advém de vozes de advogados que representam os grandes fornecedores, sendo acolhida por alguns setores do Poder Judiciário. Seu principal desiderato é reduzir o número de demandas, não pela correção do problema base de que decorre o conflito em massa, mas pela restrição do acesso à Justiça. Assim, atribui-se aos advogados dos consumidores, focados nesses micros conflitos, a culpa pela explosão estatística dos litígios.

A falaciosa narrativa não se atém à causa de pedir da demanda judicial, impedindo, pois, ao leitor compreender a lide ou o abuso de direito alegadamente praticado pelos advogados dos consumidores. Quer-se dizer: o fundamento supostamente ilícito gerador da demanda é ocultado, apegando-se unicamente à forma da postulação para caracterizar a narrativa predatória e apenar os autores e seus patronos.

Aliás, inexiste qualquer tipificação (descrição de conduta e sanção exigem previsão em lei), para essa malsinada “litigância predatória”, logo, é uma conduta atípica, ao que resta vedada aplicação da analogia para ampliar normas punitivas. E, obviamente, a punição não pode atingir terceiros, in casu, os jurisdicionados, com a extinção sem resolução de mérito das demandas ou com a rejeição do pedido.

Para exame dos pormenores da narrativa, veja o texto publicado no Migalhas pelo Juiz de Direito Guilherme Stamillo Santarelli Zuliani [1], o qual apresenta as seguintes características à litigância predatória: A litigância predatória ou advocacia predatória é uma prática que infelizmente existe no nosso sistema de Justiça. Ela consiste no ajuizamento de ações em massa, através de petições padronizadas, artificiais e recheadas de teses genéricas, em nome de pessoas vulneráveis e com o propósito de enriquecimento ilícito. Entre outros caracteres, “o juiz identifica também ilegalidade na captação de clientela e abuso da gratuidade da Justiça e do direito de litigar”. Esse raciocínio, encontra-se em inúmeros textos similares, inclusive de órgãos de inteligência dos tribunais.

Pois bem, enfrentemos os caracteres acima arrolados.

As duas primeiras características, o ajuizamento de ações de forma massificada e a utilização de petições padronizadas, data maxima venia, são comuns em outras ações, como as manejadas pela Fazenda Pública nos executivos fiscais e pelos grandes conglomerados econômicos nas ações de cobrança e de execução propostas pelas instituições financeiras. Assim, são elementos inábeis para caracterizar a litigância predatória, salvo se essa pecha recair também sobre advogados públicos e patronos de instituições financeiras. Se a premissa for tida como válida, alcançados pela narrativa da demanda predatória os representantes judiciais das Fazendas Públicas, eis que as execuções fiscais correspondem a mais de 30% da quantidade de processos do Poder Judiciário, conforme Relatório do Justiça em Números, ano base 2021, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça.

Por outro lado, a terceira característica, teses genéricas, exige uma análise acurada da causa de pedir e do pedido, posto que o fenômeno consolidado nas ações repetitivas, de per si, não consubstancia abusividade no acesso à Justiça, podendo, ao contrário, significar ilicitude na origem do litígio, sem descurar que a falta de aderência dos precedentes qualificados nos órgãos do Judiciário alimenta a litigiosidade.

No tocante às pessoas vulneráveis — também citadas no conceito em exame — é de se dizer que representam a maior parcela da população brasileira, isso porque, segundo relatório divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em 2019, somos o sétimo país mais desigual do mundo — atrás apenas dos africanos África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique. Além disso, segundo notícia publicada em 11/7/2023 pela agência Brasil [2], 78,5% das famílias brasileiras estão endividadas; sem descurar que, em 11/5/2023, o jornal O Globo [3], aponta para 16,9% da população brasileira vivendo de algum benefício social do governo. Eis a justificativa econômica para os inúmeros pedidos de assistência judiciária gratuita, o que, no entanto, está longe de representar que os vulneráveis assumem posição dominante nas estatísticas do Judiciário, uma vez que a vulnerabilidade constatada também é fator a inibir o acesso à Justiça.

Nessa quadra, insere-se a questão do abuso da gratuidade. Ora, se preenchidos os requisitos legais, materializada hipótese para deferimento da assistência judiciária gratuita, caso contrário, o indeferimento impõe-se. Portanto, não se trata de abusividade pedir um benefício de fundo constitucional (artigo 5º, LLIV) e que está essencialmente ligado às condições econômicas das partes processuais. Registre-se que má fé não se presume, desta feita, qualquer alegação de abusividade deve ser devidamente demonstrada nos autos judiciais, resguardando-se todas as garantias constitucionais que lhe são viscerais.

A próxima característica, propósito de enriquecimento ilícito, é um elemento subjetivo de difícil aferição em abstrato e exige respeito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, quer da pretensão, quer do objetivo de enriquecimento ilícito. É de ver se no afastamento da pretensão autoral nas demandas tributárias, cujo escopo é justamente reduzir a carga tributária, nas demandas de servidores públicos, cujo escopo é aumentar a remuneração, nas ações de cobrança de créditos, há propósitos de enriquecimento ilícito exclusivamente pela rejeição do pedido. Sem apreciar o mérito é possível aquilatar a licitude ou não do propósito? Eis que a narrativa não explica. Em síntese, necessariamente, é indispensável adentrar no mérito da pretensão, respeitando o devido processo legal.

Melhor sorte não tem o pretenso requisito da quantidade de ações ajuizadas por advogado, a uma porque inexiste limite legal de patrocínio ou cota de ações por advogado, a duas porque as ações repetitivas, de uso corrente e totalmente validadas no sistema normativo brasileiro, desdizem o malfado requisito, o qual tenta encobrir, na verdade, o cerne do problema da judicialização em massa, isto é, a violação em grande escala de direitos materiais individuais homogêneos.

Já a característica da ilegalidade na captação de clientela exigiria perquirir o meio utilizado para o advogado obter seus clientes. Concessa venia, impossível juridicamente, por presunção, definir a ilegalidade dessa conduta. Assim, subserviente ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, forçosa a apuração, não pelo Judiciário, mas pela OAB, para cada processo onde a questão foi elucubrada. Outrossim, com a devida vênia, não cabe ao Poder Judiciário, no bojo de uma ação com causa de pedir desconexa com a questão em destaque, declarar de ofício eventual ilicitude de ato não praticado nos autos judiciais, como a aduzida ilegalidade na captação de clientela.

Desdobrando o tema, tem-se que o tema captação de causas, previsto no artigo 34, IV, do Estatuto da Advocacia, é um conceito jurídico indeterminado (tipicidade aberta), mal definido por atos administrativos e na jurisprudência dos tribunais da OAB; o que ontem era proibido, hoje não o é (esse tema comporta aprofundamento oportuno). Por outro lado, a captação em si de clientes é uma regra que visa exclusivamente a proteção da concorrência entre advogados e, por ser uma infração ética apenada com censura, cabe exclusivamente à OAB exercer a fiscalização e punir, com respeito ao devido processo legal, o profissional, jamais podendo ser apenado o jurisdicionado, pela presumida irregularidade na captação de clientela por seu patrono, mediante a rejeição do pedido posto à apreciação judicial ou com exigências processuais ilegais.

Por outro canto, tem-se confundido condutas tipificadas pelo Direito Penal com litigância predatória. A Nota Técnica 01/2022 do CIJMJ [4] (intitulada litigância predatória) narra, com gráficos, condutas que se subsomem a tipos penais, bem descritos nas normas que incriminam condutas e preveem sanções para seu descumprimento, como: uso de documento falso, falsificação de comprovantes de endereços, procuração falsamente outorgada e assemelhados a crimes de falsidade material, ideológica, apropriação indébita de valores, todos, fatos típicos. Enfim, a narrativa mistura realidades distintas com fito de embaralhar contextos normativos e fáticos.

Em conclusão, as características trazidas à baila e com apelo fortemente genérico e abstrato não permitem aferir a irregularidade na litigância denominada de predatória, que, sem previsão legal, visa inibir o acesso à Justiça a partir de uma construção retórica, cunhada pelos sujeitos mais fortes da relação de consumo, mas sucumbe diante de uma análise aprofundada. Ouso dizer tratar-se de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana para obstar o acesso à jurisdição em casos de violações e lesões a direitos, exata situação resguardada pela Constituição no arcabouço dos direitos e garantias fundamentais.

Que o Estado brasileiro, notadamente o Poder Judiciário, não destrua e por narrativa, os mecanismos de efetivação de direitos, tampouco não se deixe encantar pelo caminho traçado por Gunther Jakobs, que aponta, na política criminal do direito penal do inimigo, para a exclusão dos direitos fundamentais e das garantias daqueles que o Estado considera seus inimigos, no caso em exame, os hipossuficientes reconhecidos por lei, os consumidores, e os que vêm a seu socorro, os advogados.

Em conclusão, narrativa da litigância predatória é simplesmente inibir o acesso à Justiça, especificamente dos hipossuficientes e nas lides de massa, tendo por modus operandi aterrorizar e inibir a atuação dos advogados, os quais são reconhecidos como inimigos, com a devida venia.

 

Roberto Armond é advogado, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Amapá, contabilista, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, MBA em gestão empresarial e em projetos pela FGV, pós-graduado lato sensu em Direito Empresarial pela Escola Paulista da Magistratura de São Paulo, ex-juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT-SP), ex-conselheiro do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda (função absorvida pelo atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), ex-professor universitário e ex-consultor Sebrae.

Consultor Júridico

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