Roberto Beninca: Rescisória originada por modulação de efeitos

A ação rescisória sempre se mostrou um tema muito polêmico em função de sua própria ratio essendi. Bem ou mal, trata-se de um meio pelo qual se tenta revogar a “coisa julgada”, um dos maiores (senão o maior) pilares de segurança jurídica. No entanto, apesar disso, sua importância nunca foi posta em xeque, uma vez que ela impede a consolidação imutável de uma decisão essencialmente antijurídica, seja em razão de circunstâncias factuais ou, até mesmo, de direito.

Entretanto, as discussões acerca deste instituto sempre foram voltadas para os entornos da regulamentação, sobretudo quanto as situações de acolhimento. Atualmente, suas hipóteses de cabimento estão previstas no CPC, tanto no artigo 966 quanto no 535.

Veja-se que estamos tratando de excessivas dez previsões [1] para se tentar rescindir o trânsito em julgado de uma ação. Imperioso destacar que já é preocupante a existência de um rol tão alargado para se tentar desconstituir uma decisão definitiva. Todavia, se não bastasse isso, atualmente, estão sendo rescindidas sentenças, sob a fundamentação de que elas foram previamente constituídas em dissonância com modulação de efeitos, sob o abrigo da incidência prevista no artigo 535 do CPC.

Tal incidência tem causado grande estranheza pelo motivo de que a hipótese de cabimento contida na norma referida somente é prevista para os casos em que a repercussão geral desconstitua o título executivo pelo reconhecimento de inconstitucionalidade de norma/ato. Todavia, em que pese a modulação de efeitos não esteja suficientemente regulamentada, haja vista a brevidade legislativa com que ela é trabalhada, é incontestável o fato de que ela não define a constitucionalidade (ou não) de um ato/dispositivo. Aliás, a própria previsão da modulação de efeitos [2] retrata que ela apenas a restringirá o momento de aplicação da decisão de direito, mas não que ela irá “compor” o mérito decisório.

Apenas para exemplificar, insta mencionar que, quando houve o julgamento do RE 574.706 (Tema 69 do STF), a Corte Suprema fixou a de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins”. Já no tocante à modulação de efeitos, restou fixado que a repercussão geral abarcaria apenas as decisões transitadas em julgado até 15 de março de 2017. Nesse contexto, é possível verificar que a inconstitucionalidade da inclusão do imposto na base de cálculo das contribuições ocorre desde sempre, sendo que não há como definir que, para o contribuinte que ingressou com a ação após março de 2017, a forma de tributação é constitucional, enquanto para o que ajuizou o processo antes, a base de cálculo das contribuições seria constitucional. O ponto é que, para ambos os casos, a inconstitucionalidade está declarada, mas somente um deles receberá efeitos patrimoniais da declaração, uma vez que modulados efeitos restritivos.

Nessa oportunidade, verificaríamos a possibilidade de cabimento de uma ação rescisória com base no artigo 966, inciso V, considerando que a modulação de efeitos se trata de norma jurídica, e não uma declaração de inconstitucionalidade. E qual seria a diferença? O prazo, pois, o artigo 535, a depender da forma em que houver a modulação, seria permitido rescindir o trânsito em julgado de uma sentença exarada há mais de 20 anos, enquanto o artigo 966 somente concederia a rescisória para decisões exaradas há menos de dois anos.

De qualquer modo, evidenciado que a modulação de efeitos não declara inconstitucionalidade, sua aplicação não poderia ser efetivada sob a égide do artigo 535 do CPC. A situação se agrava pelo motivo de que diversos Tribunais Federais tem utilizado de entendimento oposto para rescindir sentenças. Sob o aspecto, verifica-se o entendimento exarado pelo desembargador Leandro Paulsen, no TRF-4, no momento de julgar a Ação Rescisória 5028331-83.2022.4.04.0000:

“a modulação dos efeitos de determinada decisão pelo STF está inclusa no conceito da interpretação constitucional dada pela corte à uma norma específica. Note-se que a delimitação dos efeitos temporais de determinada orientação jurisprudencial deriva de questões de segurança jurídica e de ordem econômica estabelecidas pela própria Constituição Federal, razão pela qual não há como apartar tal espécie de decisão daquelas trabalhadas pelo CPC para fins de manejo da ação rescisória. Ressalto que ainda que assim não o fosse, é a própria decisão do STF que determinou sua aplicabilidade às ações já transitadas em julgado. Simplesmente inexiste espaço para seguir discutindo a questão ad eternum.”

Seguindo no mesmo entendimento, a excelentíssima desembargadora Marli Ferreira, ao tratar do julgamento da Ação Rescisória de nº 5000058-24.2022.4.03.0000, no TRF-3, retratou que:

“Repise-se, por oportuno, que a decisão do C. STF modulatória dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade não possui caráter meramente processual, mas sim integra o próprio julgado em seu mérito, pois interfere em todas as relações jurídicas relacionadas com a questão definida pela Suprema Corte.”

“No que toca ao instituto da modulação dos efeitos de uma decisão que declara a inconstitucionalidade, já previa a Lei nº 9.868/99, no art. 27, a possibilidade do Supremo Tribunal Federal decidir pela fixação do momento a partir do qual deve ter eficácia tal declaração de inconstitucionalidade, conferindo-lhe efeito ‘ex tunc’ (retroatividade plena) ou efeito ‘ex nunc’ (irretroatividade em relação ao momento dessa declaração de inconstitucionalidade), ou estabelecer outro momento para esse fim, fincado no princípio da segurança jurídica e excepcional interesse social, nos julgamentos proferidos em controle abstrato de constitucionalidade.”

Pois bem, conquanto não se deva desconsiderar a fundamentação levantada pelos julgadores, que está sendo amplamente aplicada nos tribunais federais do território brasileiro, é preciso dizer que o entendimento em questão, se definitivamente consolidado, pode ser amplamente perigoso ao sistema jurídico.

Primeiramente, pela questão essencial já trazida. O instituto da modulação de efeitos apenas delimita os efeitos da aplicação de uma decisão de repercussão geral, mas não define a constitucionalidade de algo. Logo, tudo aquilo que decidido antes da decisão que modula efeitos se trata de um julgado realizado conforme a noção jurídica contemporânea ao momento da ação. Até porque, na situação trazida, a modulação de efeitos definiu apenas a data inicial para aplicação da tese de repercussão geral, mas não um marco em que as balizas eram constitucionais.

Entender a diferença entre a restrição dos efeitos e a essência do mérito é relevante para se notar a inaplicabilidade da ação rescisória prevista no artigo 535 do Código Processual. A regra aludida somente permite a ação rescisória quando há reconhecimento de inconstitucionalidade, não outorgando a possibilidade para as questões em que existe uma restrição de efeitos. Outrossim, não podemos olvidar da impossibilidade do processo em questão em razão da aplicabilidade do Súmula 343 [3] do STF.

Além de tudo isso, deixando a interpretação legislativa de lado e se atentando para as questões principiológicas do nosso Estado Democrático de Direito, data máxima vênia, é preocupante entender que é possível ajuizar uma ação rescisória com base no artigo 535 do CPC. O perigo se agrava se pensarmos que isso é possível quando utilizando-se do aspecto ilimitado da modulação de efeitos.

Esse último instituto, muito mal regulamentado, permite que uma decisão do STF declare uma lei inconstitucional, mas somente a partir da data da publicação do acórdão de repercussão geral. Logo, se a lei foi editada há cinquenta anos, há uma concessão de inconstitucionalidade desde a publicação da legislação. Isso, por si, já é suficientemente espantoso, mas a questão se agrava pela possibilidade de se rescindir um trânsito em julgado formado com conceituação juridicamente perfeita e com décadas de consolidação.

Enfim, estamos diante de uma das aberrações jurídicas mais perniciosas que o Direito brasileiro já enfrentou. O seguimento desse entendimento pode extinguir de vez com a credibilidade do Poder Judiciário, extinguindo a confiabilidade do cidadão para com o Estado. Se não houver uma manutenção mais estável da coisa julgada, haverá um caminho aberto para a autotutela, pois a decisão judicial não valerá de nada.

 

Consultor Júridico

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