Rodrigo dos Santos: Avestruzes trajados de vestes talares

Estimado leitor, se você acreditou piamente que se debruçaria sobre percucientes lições acerca da teoria da cegueira deliberada, comumente aplicada ao crime de lavagem de capitais [1], enganou-se. A abordagem não será tão sofisticada assim. Muito pelo contrário. Os casos abaixo expostos são demasiadamente aflitivos. Contudo, prometo não descurar do bom Direito, bem como da irreverência necessária para lidar com as barbaridades técnicas, cuja autoria é levianamente atribuída aos aguerridos e estudiosos “assessores jurídicos”, “secretários” e “estagiários”.

No ápice dos meus devaneios jurígenos, concebi uma espécie de teoria da “Cegueira Deliberada às Avessas”, consubstanciada na famigerada desonestidade (ou equívoco) intelectual que assola as instituições integrantes do sistema de justiça pátrio. Neste singelo artigo, elencarei algumas atrocidades pragmáticas nada singelas, sem elucubrar excessivamente, atendo-me-a, no máximo, lançar “deboches retóricos”, de viés reflexivo.

A “burrice” tem cura; a desonestidade intelectual, não.

Hodiernamente, o problema da “burrice” se resolve com um cursinho de Direito na modalidade “on-line”, graças à democratização do ensino jurídico proporcionado pelo avanço tecnológico dos meios de comunicação e da internet, e ninguém precisa saber que o “excelentíssimo sr. dr. juiz” está estudando.

Imagina saberem que um “membro” deseja se atualizar! A execração institucional é líquida e certa! A morte seria menos dolorosa!

Por sua vez, a desonestidade intelectual nada mais é do que um desvio de caráter, má-fé, descompromisso com a boa técnica, com a ética, hipocrisia, ausência de bom-senso, de empatia, de compaixão etc.

Sem mais delongas, vamos aos dantescos casos concretos. Prometo não expor os “Avestruzes”.

1) Princípio da devolução para o mesmo promotor de Justiça que promoveu o arquivamento do auto de prisão em flagrante (APF):

Certa feita, o promotor de Justiça, após analisar minuciosamente o auto de prisão em flagrante (APF) lavrado pela competente autoridade policial, manifestou-se pelo arquivamento da referida peça de informação, por conta da atipicidade material. O ínclito magistrado, deparando-se com a manifestação ministerial, discordou da opinio e, olvidando do comando do artigo 28 do CPP, proferiu o seguinte despacho: “Não se trata de caso de arquivanento. Ao MP para oferecimento de Denúncia“. Pasmem, colegas, vocês não leram errado! Não tem como não se “pasmar””.

Retornando o autos ao Ministério Público, o estudioso e diligente estagiário do membro do Parquet , sem crer no que acabara de ler, elaborou uma minuta, explicando educadamente a dinâmica do artigo 28 do Código de Processo Penal, o qual, aliás, ainda está em vigor por efeito de medida cautelar [2]. Contudo, o presentante do MP, contrariando a boa técnica, decidiu oferecer denúncia, sob o argumento de que aquela providência era o melhor a se fazer, pois, assim, evitaria uma “crise institucional”. Seria o mesmo que chamar o juiz de… “relapso”. Inacreditavelmente, a ação penal foi deflagrada.

É… entendam isso como uma espécie “gestão de crises” entre as instituições.

2) Conflito de atribuição ou de competência? Eis a questão.

Outro episódio trevoso aconteceu com o mesmo magistrado. Veja:

O promotor de Justiça suscitou conflito negativo de atribuição. Atribuição, senhores. O juiz, diante da necessidade de instauração do incidente para dirimir o conflito negativo de atribuição, despachou da seguinte forma: “Trata-se de conflito negativo de competência. Remetam-se os autos ao Egrégio Tribunal de Justiça“.

Não sei vocês, mas eu, quando leio algo do tipo, perco as esperança na humanidade.

Será que o magistrado não sabe a diferença entre atribuição e competência? Competência é o delimitador do exercício jurisdicional. Ou seja, só há que se falar em competência se a jurisdição foi provocada, o que não aconteceu no caso concreto, pois não se sabia quem verdadeiramente detinha atribuição para deflagrar a ação penal.

E foi isso que o promotor fez: desenhou a ritualística, alertando sua excelência de que conflito negativo de atribuição era decidido pelo procurador Geral de Justiça [3], e não pelo Tribunal de Justiça. Imagina esse despacho nas mãos de um relator de uma das Câmaras Criminais! O promotor poupou o magistrado de 1º grau de mais uma vergonha, gerindo mais uma “autofágica crise institucional” entre membros do mesmo Poder da República (Judiciário versus Judiciário).

E mais: quanto tempo levaria para que os autos retornassem do Tribunal de Justiça, acompanhados, obviamente, de um despacho malcriado do desembargador relator, e fossem remetidos ao destino final, qual seja, as mãos do PGJ? Zzzzz…

Em tempo, acerca da celeuma em comento, vale trazer as lições do eminente professor Renato Brasileiro: “O conflito de atribuições não se confunde com o conflito de competência. Cuidando-se de ato de natureza jurisdicional, o conflito será de competência; tratando-se de controvérsia entre órgãos do Ministério Público sobre ato que caiba a um deles praticar, ter-se-á um conflito de atribuições” [4].

Na prática, o promotor declinou da sua atribuição e o juiz acolheu, porém despachou declinando da “competência”. Parece vaidade, não é?

Problema maior do que esse é o “arquivamento indireto” [5], entretanto esse imbróglio não é objeto deste artigo ranzinza.

3) Despacho: “Ao (Re)presentante do Ministério Público”

O promotor de Justiça é a personificação do Ministério Público. O membro oficiante, na verdade, presenta o Ministério Público. Por tal razão é possível inferir o óbvio: o Ministério Público não é uma instituição incapaz carecedora de representação. Direito e reto.

4) Resposta à acusação de ofício por utilitarismo exagerado da magistrada!?!?

Nesse caso pitoresco, após realização do juízo de diagnose na seara inquisitiva [6], o inquérito policial foi remetido à Promotoria de Investigação Penal (carinhosamente chamada de “PIP”), a fim de que o promotor de Justiça tomasse as providências em relação aos fatos ali apurados (oferecimento de denúncia, arquivamento, retorno à DP ou declínio de atribuição). Pois bem.

Em absoluta atuação defensiva profilática, antes mesmo de ser oferecida a exordial acusatória, cuidei de peticionar na seara procedimental no intuito de insuflar o Ministério Público a promover o arquivamento, já que, a meu ver, não havia justa causa para deflagração da ação penal. Resultado: o órgão ministerial ignorou a petição defensiva e ofereceu denúncia. Até aí, tudo bem.

Ocorre que a magistrada, adotando uma postura assaz utilitarista (do ponto de vista processual), desprezando o fato de a petição ter sido endereçada ao Ministério Público (Direito de defesa na seara procedimental, e não exercício do contraditório), proferiu o seguinte despacho: “Recebo a denúncia, visto que preenche os requisitos do artigo 41 do CPP. A Defesa já apresentou Resposta à Acusação, razão pela qual designo AIJ para o dia…“.

Pasmem, colegas! (ironia)

Diante dessa aberração jurídica, que, diga-se de passagem, fere postulados e princípios comezinhos do Processo Penal democrático, fui compelido a peticionar e explicar que não existe contraditório na seara procedimental, que a professora Marta Saad advoga a tese do exercício do direito de defesa exógeno e endógeno no inquérito policial, mas que não se confunde com a ampla defesa e o contraditório [7], que a resposta à acusação é peça indispensável na fase endoprocessual, porquanto pode ensejar a rejeição da peça acusatória ou até mesmo a absolvição sumária do réu, que a atitude da magistrada se equiparava ao teratológico caso ocorrido na Justiça Federal da “Contestação de Ofício”: magistrado juntava, de ofício, xerox das contestações do advogado da União etc.

A juíza, notando que cometeu um “equívoco”, retratou-se do despacho e oportunizou o oferecimento da resposta à acusação.

Será que a juíza não dominava a ritualística processual-penal? Como diria o grande intérprete de samba Neguinho da Beija-Flor, na música Angela: “Eu prefiro acreditar que é mentira…“.

5) Imputação de tráfico de drogas apoiada no seguinte teor de interceptação telefônica: “Fulano tá maluco! Deve tá fumando maconha!”

Sim, colegas, o Ministério Público denunciou um sujeito só porque ele, nos diálogos interceptados, com nítido animus jocandi, disse que: “Fulano tá maluco! Deve estar fumando maconha“.

Ante a (in)controversa ausência de materialidade para a deflagração da exordial acusatória, argui, em Defesa, a preliminar de ausência de justa causa, malgrado estar ciente de que de nada adiantaria, pois as estatísticas mostram que a probabilidade de rejeição da denúncia é remotíssima, independentemente da teratologia.

Sendo muito honesto, argui a preliminar para tão-somente satisfazer um “pré-requisito anômalo” imposto pelos Tribunais de Justiça (jurisprudência defensiva) [8], quando do julgamento dos HCs profiláticos impetrados imediatamente após o oferecimento da denúncia, qual seja: “esgotamento do juízo de piso”. Antes disso, a ação autônoma de impugnação em questão não teria “interesse” em razão da supressão de instância.

Contudo, temos um problema: Habeas Corpus não é recurso, motivo pelo qual não é razoável exigir o esgotamento das instâncias para sua impetração. Imagina condicionar o Habeas Corpus ao esgotamento de um “protocolo”. Sim, protocolo, porque, estatisticamente falando, a probabilidade de o magistrado de primeira instância (nada de piso ou de porcelanato) trancar o processo (não se tranca ação, porquanto se trata de direito subjetivo já exercido pelo Ministério Público) é nula. Mas impetre você, colega advogado, um HC trancativo sem, antes, levantar a questão na primeira instância pra ver o que acontece.

Cumprido o malfadado pré-requisito obstativo da “jurisprudência defensiva”, impetrei o HC profilático. Após indeferimento da liminar, o Procurador de Justiça, em terreno meritório, emitiu parecer pela denegação da ordem, pois “a quantidade de drogas apreendidas era ‘vultuosa'”. Obs: ele quis dizer vultosa. Mas isso não é o pior. Explico:

Não havia apreensão de material entorpecente. De acordo com a opinio delict, a justa causa para o oferecimento da denúncia originou-se de uma frase jocosa interceptada: “Fulano tá maluco! Deve tá fumando maconha!“. Que quantidade “vultuosa” foi essa constatada pelo procurador de Justiça? Modelão?

Adiantou despachar com o relator? Não. Resultado: a imputação de tráfico de drogas continuou hígida.

6) O promotor de Justiça que apresentou memoriais em demanda penal instaurada pelo querelante (ação penal privada).

Em ação penal privada deflagrada pelo querelante, finda a instrução criminal, o magistrado intimou o querelante para apresentar memoriais. Contudo, o Ministério Público, antecipou-se e apresentou “memoriais acusatórios”, pugnando pela condenação do querelado. Ou seja, o promotor de Justiça, antes das partes, apresentou “memoriais acusatórios”, ignorando, portanto, a sua condição de Custus Iuris .

Nesse caso específico, é cediço que o Ministério Público oficia apenas como fiscal da ordem jurídica, devendo, portanto, apresentar parecer (opinar), após à apresentação dos memoriais pelas partes.

E tem solução? Penso que sim. Vejamos: 1) ou o magistrado chama o feito à ordem e desentranha a peça ministerial; 2) ou mantém a manifestação precoce do MP (Teoria do Ato Ultra Precoce), aguarda a apresentação dos respectivos memoriais pelas partes, recebe os “memoriais acusatórios” lançados aos autos como “parecer” (fungibilidade) e abre vista novamente ao MP para, querendo, aditar ou retificar a sua peça, agora, com base nas manifestações derradeiras das partes (cognição exauriante).

Ufa! Que ginástica hermenêutica!

7) Apesar da ausência de reconhecimento da vítima de roubo, promotora de Justiça pediu vista do processo para analisar as anotações do réu e pedir condenação baseada nessas anotações. Não, você não leu errado!

Durante audiência de instrução e julgamento na Vara Criminal da Capital do RJ, a vítima do crime de roubo não reconheceu o réu como autor do crime, asseverando, ainda, que não o reconheceu nem mesmo em sede policial. Isso mesmo, não havia nem justa causa para a deflagração da ação penal.

Diante do contundente depoimento do ofendido e da autoria delitiva por ele infirmada, sugeri à promotora de Justiça que apresentássemos oralmente as alegações finais, oportunidade em que ela se negou e, por conseguinte, pugnou pela abertura de vista no desiderato de analisar as anotações criminais do réu e se manifestar posteriormente em memoriais.

Tal manifestação causou estranheza na magistrada, que intercedeu e colocou um pouco de “juízo” na cabeça do Ministério Público (com perdão do trocadilho), alertando-a de que nem deveria ter denúncia.

A propósito, eu me antecipei e fiz essa ponderação técnica. Sustentei que a denúncia era “natimorta”, mas…sabe como é, não é? Então…agradeci a magistrada por ter engrossado o coro.

Irresignada com a intervenção lúcida e providencial da magistrada que referendou a minha tese, a promotora de (in)Justiça vociferou: “A polícia também não ajuda a gente, né?”, sorrindo maliciosamente, ao final da fala.

Ao final, o réu foi absolvido!

Senhores, os casos acima relatados são apenas “gotículas de água no oceano”.

Por derradeiro, em relação às arbitrariedades perpetradas na entabulação do acordo de não persecução penal, remeto o leitor ao artigo de minha autoria publicado anteriormente [9], ocasião em que utilizo as parcelas da boa-fé objetiva para combater os abusos estatais.

 


[3] Lei nº 8.625/93. Art. 10. Compete ao Procurador-Geral de Justiça: X – dirimir conflitos de atribuições entre membros do Ministério Público, designando quem deva oficiar no feito;

[4] LIMA, Renato Brasileiro de, Manual de Processo Penal. 3ª ed., Salvador: Juspodivm, 2015, p. 1113;

Rodrigo Gomes dos Santos é ex-assessor jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, advogado criminalista, pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes-RJ e professor de Processo Penal.

Consultor Júridico

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