Rodrigo Schneider: Uso do RIF na atividade de polícia judiciária

No campo da investigação criminal, tem se observado o uso com maior habitualidade do relatório de inteligência financeira (RIF), documento produzido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com informações recebidas dos setores econômicos obrigados a realizar comunicações automáticas. Esse uso tem provocado decisões de tribunais superiores, bem como a banalização dos dados ora colacionados ao RIF, que supostamente seriam sempre de origem “bancária e fiscal”, haja vista o teor dessas mesmas decisões.

Dito isso, o RIF é composto de informações financeiras de diversas origens (ex: mercado segurador, ações, registros públicos, profissionais liberais, etc.), sendo comum alguns relatórios nem possuírem informações de ordem bancária, mas sim de natureza financeira prestadas pelos setores econômicos obrigados (artigo 9º da Lei 9.613/98).

O Coaf, criado em 1998 no bojo da Lei nº 9.613/98, recepciona, analisa e difunde as informações dos mais variados setores econômicos obrigados, consoante o artigo 9º da mesma legislação. Conforme esse mesmo artigo, as informações recepcionadas pelo Coaf não estão restritas aos dados bancários, abrangendo uma gama muito maior e diversificada de informações que não se revestem necessariamente de sigilo ou mesmo de reserva legal para o seu respectivo acesso (v.g. inciso XIII do artigo 9º: juntas comerciais e os registros públicos).

Mesmo aquelas informações em que há imposição de sigilo, caso dos dados bancários enviados ao Coaf, esses estão na exceção prevista na Lei Complementar nº 105/2001, mais especificamente em seu artigo 1 §3º, inciso IV:

“Art. 1o – As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

……

§ 3o. Não constitui violação do dever de sigilo:

….

IV – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa;

O inciso IV permite o envio de informações bancárias sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa sem constituir violação de dever de sigilo. No caso das instituições financeiras, as informações enviadas estão balizadas principalmente pelas disposições legais previstas na Carta Circular nº 4.001, de 29 de janeiro de 2020, editada pelo Banco Central, órgão regulador do sistema financeiro nacional.

No aspecto prático, os bancos enviam comunicações suspeitas baseadas na respectiva Carta Circular, dentro de um espectro de tempo de movimentação daquela conta bancária, ou seja, quando o Coaf difunde essas informações dentro do RIF (que iremos discorrer mais adiante), os órgãos de persecução penal recebem somente um “retrato” de determinado momento ou período de movimentação considerada suspeita pela instituição bancária, frisa-se, dentro de hipóteses previstas pela CC 4001 e, consequentemente, autorizados pela exceção contida no art. 1º, § 3, inciso IV da Lei nº 105/2001. O Coaf quando analisa, processa e difunde essas informações, assim o faz com supedâneo ao estabelecido no artigo 15 da Lei nº 9.613/98.

Essa comunicação se materializa por um único documento padrão adotado pelo Coaf para o envio de suas informações, qual seja: RIF, documento que, apesar de possuir em seu título o nome “Inteligência”, não está classificado como sendo de inteligência, não possuindo as restrições de acesso previstas no artigo 24 da Lei n.º 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), pois a sua natureza jurídica não é de um documento de inteligência (Neto, 2017), como será visto adiante.

Aqui cabem algumas ponderações em relação as características dos documentos de investigação e de inteligência, principalmente em relação a sua finalidade. O primeiro visa a materialização de indícios no inquérito policial e posterior formação da prova no processo penal, enquanto que a finalidade do conhecimento de inteligência objetiva o assessoramento para a tomada de decisão em nível estratégico, tático e operacional.

Outro ponto que diferencia o RIF de um documento típico de inteligência é em relação a produção do conhecimento, no caso o analista de inteligência pode ter a convicção sobre determinado assunto ou fato, ou assumir uma verdade dentro do documento de inteligência (Relint), entretanto, não necessitará provar ou confirmar essa “verdade”, como é a prova na instrução criminal pelos meios admitidos em direto (Neto, 2018). Em sentido oposto, as informações constantes no RIF podem ser confirmadas e confrontadas durante a instrução criminal, seja através de um extrato bancário, da escritura de compra e venda de um imóvel, da emissão de uma nota fiscal, da apólice de seguro em nome do alvo investigado, etc.

Em relação ao envio e compartilhamento desses dados aos órgãos de persecução penal, o Supremo Tribunal Federal em análise ao RE 1.055.941 (relator: ministro Dias Toffoli), concluiu, com repercussão geral (Tema 990), pela possibilidade de compartilhamento dos relatórios de inteligência produzidos pela UIF com os órgãos de persecução penal para fins de investigação criminal, além disso balizou como deveria ser feito o compartilhamento: via sistema eletrônico com controle de quem solicitou, acessou e gerou os relatórios, nunca por e-mail ou outro sistema que não permita o controle de acesso dos usuários.

Nesse mesmo julgado, o STF também vetou a prática do fishing expedition, ou seja, a solicitação da geração de relatórios de inteligência por “encomenda” contra cidadãos sem a ocorrência dos chamados “alertas emitido pelo UIF”, ou sem procedimento investigativo formal instaurado por autoridade competente. O fishing expedition é uma espécie de investigação especulativa indiscriminada, sem alvo ou mesmo crime definido, em que o investigador lança de forma aleatória sua “rede de pescaria” e, que consiga assim, “pescar” uma prova ou indício contra qualquer pessoa.

Essa prática do fishing expedition é de difícil ocorrência nas investigações conduzidas pelas polícias judiciárias, posto que a solicitação de RIF ao Coaf é sempre posterior a instauração de inquérito policial, ou seja, os nomes a seres consultados já estão, em tese, sendo objetos de uma investigação formal.

Em relação aos dados fiscais, cabe aqui um importante esclarecimento, a informação mais “sensível” proveniente da Receita Federal que consta no RIF é a base de dados de Declaração de Operações Imobiliárias (DOI), que é composta por informações dos cartórios de títulos e registros públicos quando o investigado efetiva uma escritura pública.

Dessa forma, estamos diante de uma base que por sua natureza é pública, apesar de a origem ser na Receita, ou seja, esses dados podem ser obtidos livremente por qualquer pessoa, bastando uma solicitação ao respectivo cartório. No caso da DOI, as informações colacionadas ao RIF são exclusivas daquelas pessoas que foram alvo da solicitação de informações por parte da autoridade demandante, e mesmo assim a autoridade necessita solicitar expressamente ao Coaf no resumo dos fatos, caso contrário não serão enviados esses dados.

Nesse ponto, é necessária extrema cautela ao rotular que determinado RIF seja portador de dados fiscais e que, por isso, não poderia ser compartilhado com as autoridades demandantes, pelo contrário, é usual na prática de polícia judiciária deparar-se com relatórios de inteligência financeira que não possuam uma única informação de origem fiscal ou que estejam sob o manto do sigilo fiscal.

Essa questão é importante, pois algumas juntadas de RIF aos procedimentos policiais foram anuladas pelo Poder Judiciário sob o argumento de suposto compartilhamento indevido de dados fiscais, sendo utilizado como fundamento da decisão uma jurisprudência do STJ (RHC nº 83.233/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª Seção, julgado em 9/2/2022, DJe de 15/3/2022), que declara a ilicitude do envio dos dados fiscais da Receita diretamente ao Ministério Público Federal. Por isso, a importância de esclarecer que o RIF não é composto por dados fiscais, e que por conta disso, seu compartilhamento com investigações policiais é lícito.

Em relação ao RIF “espontâneo”, que é aquele enviado automaticamente pelo Coaf aos órgãos de persecução penal, é necessário ter algumas ponderações em relação a recente decisão do STF no HC 201.965 do Rio de Janeiro (com relatoria do ministro Gilmar Mendes), caso em que após o recebimento do RIF 27.746 (que foi o RIF espontâneo), o órgão de persecução penal tomou conhecimento de possível participação de deputado estadual em um suposto esquema de “rachadinha”.

Naquela ocasião, após o órgão investigante receber o RIF 27.746, solicitou mais quatro RIFs ao Coaf (RIFs nº 34.670, 38.484, 39.127 e 40.698), porém a partir do RIF 34.670 foi julgado que o órgão investigante estaria investigando o deputado estadual sem procedimento formal instaurado e sem prévia comunicação ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, posto que o investigado teria foro por prerrogativa de função. Ademais, segundo entendimento da 2ª Turma do STF, nos demais relatórios teria ocorrido a solicitação de informações por “encomenda” ao Coaf. Ambas as circunstâncias ocasionaram a nulidade do RIF 34.670 e seguintes.

Em aspectos práticos de polícia judiciária, com base no HC 201.965/RJ, no RIF espontâneo, caso este contenha alvo com foro por prerrogativa de função, o delegado de Polícia deverá comunicar o Tribunal de Justiça solicitando autorização para instauração de inquérito policial, e somente após a respectiva autorização, poderá dar continuidade nas demais diligências de investigação, bem como poderá solicitar novos relatórios de inteligência, sempre com relação de nexo-causalidade dos alvos demandados.

Já o RIF de intercâmbio (por solicitação da autoridade competente) pode constituir meio de obtenção de prova, mas não prova criminal em si, ou seja, serve para fundamentar eventuais medidas judiciais (ex: afastamento de sigilo bancário), que poderão então constituir prova criminal. Imperioso salientar que as informações enviadas pelos setores obrigados podem conter inconsistências que poderão ser sanadas pelo próprio órgão comunicante, ou em sede de contraditório (vide trecho do voto do ministro Gilmar Mendes no HC 201.965/RJ).

Por fim, dentro do RIF há informações sigilosas (v.g. dados bancários),  e nesse aspecto é importante que o RIF não seja juntado ao inquérito policial, salvo se for colocado em sigilo, nem fornecido a terceiro, devendo ser juntado, preferencialmente, em medidas cautelares para fins de fundamentação de outras medidas judiciais, inclusive as patrimoniais assecuratórias. Dessa forma, ao juntar o RIF às medidas cautelares, o delegado de polícia estará garantindo o acesso à ampla defesa pelos advogados dos investigados, mitigando futuras nulidades.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

BANCO CENTRAL DO BRASIL. Departamento de Supervisão de Conduta. Carta Circular n.º 4001, de 29 de janeiro de 2020. Divulga relação de operações e situações que podem configurar indícios de ocorrência dos crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, de que trata a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e de financiamento ao terrorismo, previstos na Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016, passíveis de comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, ano 157, edição 22, p. 92, 31 jan. 2020a.

BRASIL. Lei nº 9.613, de 03 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, e dá outras providências. 12.092, de 21 de dezembro de 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613compilado.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.613%2C%20DE%203%20DE%20MAR%C3%87O%20DE%201998.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20os%20crimes%20de,COAF%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Acesso em: 09 set. 2022.

BRASIL. Lei Complementar n.º 105, de 10 de janeiro de 2001.Dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp105.htm. Acesso em: 09 set. 2022.

BRASIL. Lei n.º 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em: 16 set. 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HABEAS CORPUS HC201.965/RJ. 2ª Turma. Relator: Gilmar Mendes. Julgamento: 30.11.2021. O tribunal, com único voto divergente, negou o provimento do Recurso, nos termos do voto do relator. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=759912843. Acesso em: 13 set. 2022.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HABEAS CORPUS HC Nº 191.378/DF /SP. 6ª Turma. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1088805&num_registro=201002168871&data=20111205&formato=PDF%CB%83. Acesso em: 18 set. 2022.

DOUTRINA NACIONAL DE INTELIGÊNCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA – DNISP,, 4ª edição, revista e atualizada, Brasília: Ministério da Justiça, 2015.

NETO, Oscar Vieira de Araújo. Mitos e mística sobre a atividade de Inteligência na seara da Segurança Pública. Disponível em https://oscarvneto.jusbrasil.com.br/artigos/509366086/mitos-e-mistica-sobre-a-atividade-de-inteligencia-na-seara-da-seguranca-publica#:~:text=O%20devido%20entendimento%20sobre%20os,a%20luz%20da%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Federal. Acesso em: 15 set. 2022

NETO, Oscar Vieira de Araújo. Relatório de “Inteligência” Financeira emitido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras e seu conteúdo sigiloso. Disponível em https://oscarvneto.jusbrasil.com.br/artigos/341087078/relatorio-de-inteligencia-financeira-emitido-pelo-conselho-de-controle-de-atividades-financeiras-e-seu-conteudo-sigiloso. Acesso em: 15 set. 2022

Rodrigo Raiser Schneider é especialista em Inteligência Criminal e em Gestão de Segurança Pública pela Universidade do Vale do Itajaí e em Ciências Criminais pela Universidade da Amazônia, delegado de Polícia Civil de Santa Catarina e professor da Academia da Polícia Civil de SC.

Consultor Júridico

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