O STF (Supremo Tribunal Federal) impôs aos Tribunais de Contas uma das mudanças mais relevantes do Direito Administrativo Sancionador (DAS) dos últimos tempos: o reconhecimento da prescrição quinquenal punitiva e ressarcitória nos processos que imputem débito, multa e demais sanções. Esse tardio acerto de contas produz significativo impacto. Isso decorre do fato que ainda há milhares de processos em trâmite onde ainda não foi aduzida a incidência da prescrição pelos respectivos advogados; ou mesmo ainda não foi reconhecida de ofício a ocorrência da prescrição.
Apesar de iniciativas como a do TCU (Tribunal de Contas da União) — Resolução 344/2022 — e do advento de resoluções ou leis dos demais tribunais de contas regulamentando a prescrição dúplice (punitiva e ressarcitória), ainda há muitos problemas a serem resolvidos, especialmente diante da insegurança jurídica decorrente da fixação dos marcos prescricionais iniciais e interruptivos em algumas dessas normas, o que pode frustrar seriamente o entendimento do STF no tema.
O mais preocupante é que ainda há tribunais de contas que simplesmente ignoram as decisões do STF, numa curiosa afronta à Corte Constitucional. Uma possível e provisória explicação é que as cortes de contas estão muito apegadas aos seus entendimentos e não querem desistir de executar suas decisões em nome de um bem maior: a alegada tutela do erário a qualquer preço e impulsionados pelo ativismo de contas [1], mesmo que à custa do Direito, do entendimento do guardião da Constituição e ainda que essa relutância possa obliquamente produzir dano ao erário, como veremos mais adiante.
A prescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário
A alegada “imprescritibilidade do dano ao erário” sempre foi tema controverso. Por muito tempo o assunto dividiu opiniões na doutrina nacional. Mas convenhamos que o artigo 37, §5° da CR sempre foi um tanto machadiano, deixando dúvidas se Capitu traiu ou não Bentinho. Quem queria ler “imprescritível”, lia; quem desejava ler “prescritível”, também, pois o artigo 37, §5° da CR ressalva as respectivas “ações de ressarcimento”, que naturalmente têm seus próprios prazos prescricionais, além do que, o dispositivo exige interpretação sistemática de todo texto constitucional.
A partir dos entendimentos do STF nos Temas 666, 897 e 899, além do decidido nas ADIs 5.509/CE e 5.384/MG, podemos afirmar categoricamente: toda ação de ressarcimento ao erário é prescritível, à exceção daquelas fundadas em atos tipificados como improbidade administrativa [2].
Esse entendimento é cogente para todos os tribunais de contas do Brasil, porque decorre de tema de repercussão geral, que são vinculantes pelo CPC/2015 no sentido de expressarem o entendimento do STF ao rechaçar a imprescritibilidade. Lembremos que norma jurídica não se confunde com texto normativo; norma é fruto da busca do sentido e alcance do texto normativo e os tribunais têm papel primordial nessa tarefa, de maneira que as cortes de contas não podem desconsiderá-la [3].
Além disso, a prescrição quinquenal punitiva e ressarcitória foi reconhecida em controle concentrado nas ADI 5.509/CE e 5.384/MG. Tal entendimento é vinculante e erga omnes para todas as cortes de contas. Isso autoriza inclusive a utilização da via da reclamação constitucional contra as decisões dos tribunais de contas que ignorarem a prescrição. Destaca-se que no último julgamento no STF quanto ao início do marco prescricional (ADI 5.384/MG), entendeu-se que a prescrição deve contar da ocorrência do fato (cf. Lei 9.873/1999), entendimento que vem sendo seguido em outros recentes precedentes do STF [4].
Os tribunais de contas e a forçada mudança de rumo no trato da prescrição
O descompasso entre STF e os tribunais de contas sobre a prescrição começou a ficar insustentável. Por essa razão, os tribunais de contas no Brasil reformularam seu entendimento pela prescrição dúplice, porque: 1) suas decisões estão sendo objeto de ações judiciais que estão declarando a prescrição; 2) começam a visar uma perspectiva mais pragmática, fixando-se naquilo que vale a pena investir esforço material e humano na busca do ressarcimento ao erário; 3) podem produzir dano ao erário ao insistirem em constituir títulos executivos extrajudiciais já prescritos, cuja execução pela respectiva fazenda pública irá implicar em condenação em honorários de sucumbência do título executado.
Desde a viragem jurisprudencial operada pelo STF, diversos tribunais de contas passaram a disciplinar a prescrição nas cortes de contas. Dentre os atos normativos, destacamos: a Resolução n° 344/2022 do TCU; a Lei Complementar Estadual n° 819/2023 do Estado de Santa Catarina; o Código de Processo Administrativo de Controle Externo do Mato Grosso (LCE n° 752/2022); a Decisão Normativa Nº 05/2021 do TC-DF, a Resolução Administrativa Nº 03/2023 do TCE-CE e ainda a Resolução TCM-SP/2023 do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.
Com efeito, outras cortes de contas já passaram a aplicar a prescrição da pretensão punitiva e ressarcitória em seus acórdãos. Dentre eles, o TCE-AC no Acórdão nº 13.345/2022, o TCE-ES no Acórdão TC-243/2022, o TCE-GO no Acórdão nº 3689/2022, o TCE/PR no Acórdão n° 525/2022 e Acórdão 1919/2023, o TCE-RJ no Acórdão n° 136225/2022-PLENV, o TCE-RN no Acórdão n° 300/2022 e o TCE-RO no processo n° 00413/15-TCE-RO[5].
No entanto, ainda há cortes de contas que não editaram seus respectivos atos normativos ou mesmo estão se recusando expressamente a aplicar a prescrição dúplice nos moldes fixados pelo STF. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, editou a Deliberação SEI Nº 18068/2021-88 justamente para dizer que não irá aplicar a incidência dos prazos prescricionais. O Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul TCE-RS está oscilante na aplicação da prescrição ressarcitória em seus processos de contas. Também o Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás, através da Resolução Administrativa RA n° 00016/2022, não tem aplicado a prescrição da pretensão ressarcitória, apenas a punitiva.
A despeito dos avanços, começa a ganhar terreno uma nova insurgência baseada no argumento ad terrorem do prejuízo ao erário. Conforme divulgado pelo TCU, como consequência da aplicação da prescrição houve a queda das condenações de débitos e multas de 2.3 bilhões no primeiro trimestre de 2022 para R$ 268 milhões no ano de 2023 em relação ao mesmo período, o menor valor dos últimos 15 anos. O levantamento do TCU compreendeu o período de 12/10/2022 a abril de 2023 [6].
O argumento não procede. Por mais sedutora e compreensível que seja a ideia de ressarcimento ao erário, esta deve ocorrer dentro do ordenamento jurídico e de acordo com a interpretação que os tribunais conferem ao texto constitucional, ademais, se esquece que 1) há baixo percentual de ressarcimento ao erário decorrentes dos título decorrentes das decisões dos tribunais de contas, sem exata correspondência entre a queda nas condenações e a perda ao erário; 2) não é producente aos tribunais de contas gastarem tempo em processos que serão declarados prescritos pelo Judiciário, com sérias consequências para as respectivas fazendas públicas e com desperdício de recursos públicos para apuração de dano que não poderá ser executado e 3) mesmo que os processos nos tribunais de contas estejam prescritos, caso configure possível ato doloso de improbidade, nada impedirá que o dano ao erário seja apurado no Judiciário, pois o STF manteve a imprescritibilidade nesse caso. Ademais, é evidente que reconhecer a prescrição importa reflexos nos processos ainda em trâmite, ainda mais quando ignorada por tantos anos desde a viragem jurisprudencial do STF.
Alguns problemas a serem equacionados no trato da prescrição nos Tribunais de Contas
Uma vez postas essas premissas legais e jurisprudenciais, cabe avaliarmos como os tribunais de contas vêm regulamentando a prescrição nos processos de contas através de leis ou atos normativos e se estes atos estão, uma vez mais, frustrando a incidência da prescrição nos moldes fixados pelo STF.
Comecemos pelo Tribunal de Contas da União. A Corte de Contas editou sua Resolução TCU n° 344/2022 adotando a incidência da prescrição punitiva e ressarcitória quinquenal, além da prescrição intercorrente trienal. Alguns dos dispositivos da Res. TCU n° 344/2022 ampliam eternamente a incidência do prazo prescricional, e, com isso, driblando uma vez mais o posicionamento do STF sobre a questão. Esse é um sério indicativo que o Tribunal de Contas da União e outras cortes de contas que se inspiraram nesse modelo, apenas toleram a prescrição dúplice, contornando-a sempre que possível.
São bastante problemáticas algumas das hipóteses de contagem do prazo prescricional inicial previsto na Resolução TCU 344/2022. O artigo 4°, III prevê como termo inicial, a data da denúncia ou representação. Já o artigo 4° IV, da data do conhecimento da irregularidade pelo TCU ou dos órgãos de controle. Tais dispositivos da Resolução TCU n° 344/2022, simplesmente levam à imprescritibilidade.
Ora, se considerarmos o recebimento da denúncia ou representação (artigo 4°, III da Resolução 344/2022), se esta denúncia for feita de um fato pretensamente ilícito ocorrido há dez, 20 ou 50 anos, jamais será deflagrado o prazo prescricional. Já o marco inicial contado da data do conhecimento da irregularidade ou dano pelos tribunais de contas ou órgãos de controle interno (artigo 4°, IV da Resolução 344/2022), caso essa “ciência” venha a ocorrer daqui há 20 anos ou mais, nunca haverá prescrição, importando em verdadeira imprescritibilidade. Faltou compatibilizar o conhecimento de irregularidades e denúncias pelo TCU com a referência temporal objetiva da ocorrência da prática do ato ou fato ilícito.
Exatamente isso que procurou resolver o Código de Processo Administrativo de Controle Externo do Estado do Mato Grosso — LCE 752/2022. A data inicial da prescrição quando da constatação da fiscalização do próprio tribunal ou denúncia, ficou bem melhor equacionada na LCE 752/2022, cujo artigo 83, III, prevê: “Art. 83 As pretensões punitiva e de ressarcimento decorrentes do exercício de controle externo pelo Tribunal de Contas prescrevem em 5 (cinco) anos, contados a partir da data: (…) III – do protocolo do processo, quando a irregularidade ou o dano forem constatados em fiscalização realizada pelo Tribunal de Contas, ou mediante denúncia ou representação de natureza externa, desde que, da data do fato ou ato ilícito ou irregular, não se tenham ultrapassado 5 (cinco) anos” (grifo do articulista).
Um dos bons exemplos a servir de inspiração para contagem do marco inicial da prescrição aos demais tribunais de contas do país é o do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, modelo bem superior ao previsto na Resolução 344/TCU. A Lei Complementar Estadual Catarinense n° 819/2023 (o TCE/SC já começa acertando em utilizar-se de lei e não de resolução como ato infralegal) prevê as seguintes hipóteses: “Art. 83-B. O prazo de prescrição é contado: I – da data em que as contas deveriam ter sido prestadas, no caso de omissão no dever de prestação de contas; II – da data legal para a apresentação da prestação de contas ao órgão competente para a sua análise inicial; ou III – da data da ocorrência do fato ou, no caso de irregularidade permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado a permanência ou a continuidade”.
Já quanto à interrupção da prescrição, um dos principais problemas do artigo 5°, §1° da Resolução TCU n° 344/2022, é sua ocorrência se dar por uma mesma causa, não apenas por causas distintas, a saber: “Art. 5º A prescrição se interrompe: (…) § 1°. A prescrição pode se interromper mais de uma vez por causas distintas ou por uma mesma causa desde que, por sua natureza, essa causa seja repetível no curso do processo”.
Tal regramento confronta diretamente com a Lei 9.873/1999 que não prevê a possibilidade de infindas interrupções. Ora, diante do reconhecimento pelo próprio TCU da nulidade da primeira decisão condenatória recorrível, se abriria novo marco temporal entre a primeira decisão recorrível e a segunda? Pensamos que não. Essa ausência de limites da ocorrência de interrupção da prescrição por uma mesma causa poderá frustrar completamente o instituto da prescrição nos moldes já reconhecidos no STF.
Já a interrupção por qualquer ato inequívoco de apuração do fato prevista no artigo 5°, II da Resolução TCU n° 344/2022, precisa ser corretamente interpretada, sob pena de constituir verdadeira imprescritibilidade ou violação ao prazo quinquenal. Desse modo, quando deflagrada uma tomada de contas especial, é inequívoco para o órgão de controle que deve apurar aquele fato, ainda que genérico, sob o risco de que a descoberta de cada “novo fato” postergue indefinidamente a prescrição. Ora se o TCU já tem acesso a certas apurações de irregularidades porque deflagrou a TCE com objeto definido, é certo que não poderá indefinidamente alegar que descobriu alguma “novidade” para deixar de cumprir seu dever de apurar irregularidades dentro do prazo quinquenal.
Ainda relevante que no MS 38.615 o ministro Nunes Marques asseverou que: “(…) a afirmativa segundo a qual, a interrupção da prescrição se dá por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato, somente me parece válida quando o interessado tem conhecimento de que a Administração deu início ou praticou algum ato vocacionado a apurar fatos a ele ligados”.
Na esteira de Gustavo Justino de Oliveira e Gustavo Schiefler, o conceito de ato inequívoco para fins de interrupção da prescrição, pressupõe a efetiva comunicação ao interessado para que possa exercer a garantia do contraditório e da ampla defesa, concretizando a publicidade à apuração [7].
Apesar do MS 36.810/DF da relatoria do ministro Dias Toffoli (DJe 19.05.2022) ter desconsiderado a prévia intimação como suficiente para interrupção da prescrição para fins de ato inequívoco, há diversos outros precedentes do STF, que vão em sentido oposto, entendendo que o prazo prescricional não se interrompe sem prévia intimação, a exemplo do citado MS 38.615, relator ministro Nunes Marques (DJe 13/10/2022), onde apenas após 20 anos deu-se a citação do interessado; ou qualquer que seja o prazo superior ao quinquenal como no MS 38.223/DF, rel. min. Nunes Marques (DJe 02.12.2021); MS 38.288/DF da rel. min. Cármen Lúcia (DJe 23.11.2021), ou ainda no recente MS 37.902/DF, rel. min. Nunes Marques (DJe 17.03.2023).
Igualmente o artigo 6° da Res. TCU 344/2022 pode criar problemas para interrupção da prescrição. A norma estabelece: “Art. 6º Aproveitam-se as causas interruptivas ocorridas em processo diverso, quando se tratar de fato coincidente ou que esteja na linha de desdobramento causal da irregularidade ou do dano em apuração”.
Essa interrupção do prazo prescricional por processos diversos e sem que tenha havido a notificação do responsável, como bem relatam Vitória Damasceno e Mariana Carvalho, contrasta com decisões do STF, a exemplo do MS. 38.614, rel. min. Luís Roberto Barroso (DJe 20/3/2023), onde exigiu-se que para interrupção da prescrição por ato inequívoco é necessária a identidade entre as irregularidades investigadas e aquelas que futuramente venham a justificar o exercício da pretensão punitiva [8]. Isso para não falar na problemática em saber o que consiste ou não “linha de desdobramento causal da irregularidade” (artigo 6° Res. TCU 344/2022).
Apesar do inegável avanço da Resolução TCU 344/2022 e do advento de resoluções ou leis dos demais tribunais de contas regulamentando a dúplice prescrição, ainda há muitos problemas a serem resolvidos. A insegurança jurídica decorrente da fixação dos marcos prescricionais iniciais e interruptivos em algumas destas normas, pode frustrar completamente o entendimento do STF no tema. O que parecia o fim da novela, certamente terá cenas dos próximos capítulos.
Rodrigo Valgas é sócio do Espíndola & Valgas Advogados Associados, mestre em Direito pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), doutor em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), professor do Cesusc (Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina), presidente da Comissão de Moralidade Pública do Conselho Seccional de Santa Catarina da OAB, 1º vice-presidente do Ibda (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo) e membro vitalício da Acalej (Academia Catarinense de Letras Jurídicas), cadeira nº 26 — patrono José Ferreira Bastos.