Rogério Devisate: Compra de terras por produtor estrangeiro

A doutrina estrangeira bem demonstra a dimensão da parceria do continente africano com a China.

São livros não publicados no Brasil, com títulos como China’s Second Continent: How a Million Migrants Are Building a New Empire in Africa [1] (segundo continente da China: como um milhão de migrantes estão construindo um novo império na África), The Dragon’s Gift: the Real Story of China in Africa [2] (O presente do dragão: a estória real da China na África) e Will Africa Feed China? [3] (A África alimentará a China?).

outros, sobre temas correlatos e aquelas vastas áreas continentais, dos quais ora destacamos: Land grabbing. Come il mercato delle terre crea il nuovo colonialismo[4] (Como o mercado de terras cria o novo colonialismo), Il land grabbing e la guerra d’Africa [5] (A grilagem de terras e a guerra na África) e Land Grabbing in Africa: The Race for Africa’s Rich Farmland [6] (Grilagem de terras na África: a corrida pelas ricas terras agrícolas da África).

Por mais de 20 anos temos estudado o tema, a respeito publicando artigos e dois livros: Grilos e Gafanhotos, Grilagem e Poder [7] e Grilagem das Terras e da Soberania [8].

Aquelas obras, inicialmente citadas, produzidas sobre a dominação estrangeira no continente africano, bem representam como a dominação passou a ter novo formato. No lugar das conquistas por guerras, o fluxo de financiamentos e as aquisições de terras fazem do grande continente africano o produtor da riqueza e da comida que segue para outros países. Assim, a história global de dominação não se repete com as exatas mesmas notas de outrora, mas a sinfonia continua sendo tocada, com outros arranjos e o mesmo resultado.

Os produtores hoje instalados desbravaram os sertões e transformaram o país em grande produtor de riquezas e alimentos. Entretanto, no lugar de ser recompensados, tendem a ganhar concorrência aqui dentro, por entidades ligadas a governos estrangeiros, notadamente se houver o afrouxamento da legislação sobre a aquisição de terras por estrangeiros e se estes, de fato, vierem a ingressar com financiamentos fortes para transformação de 40 milhões de hectares em áreas exploráveis [9].

Apenas para contextualizar, sobre os 40 milhões de hectares, basta dizer que essa área corresponde ao total da produção de soja, no Brasil, em 2021/2022 [10]!

Com relação à venda de terras a estrangeiros, a lei vigente limita (como quer a Constituição, no seu artigo 190) [11] cada unidade a 2.500 hectares, como contundente resposta ao grave cenário revelado pela CPI da venda de terras a estrangeiros (1967) [12].

Na contramão, o projeto em tramitação no Congresso [13] (PL 2963/2019) não fixa limite para o tamanho de cada área — para os particulares. Além disso, admite a aquisição de posses, algo difícil de ser controlado pelo Estado e pela sociedade, já que não são registráveis nos cartórios do registro de imóveis.

A propósito, em fevereiro de 2021, a Comissão Nacional de Assuntos Fundiários, da União Brasileira dos Agraristas Universitários (Ubau) formulou parecer e o endereçou ao Congresso, alvitrando a realização de audiências públicas e apontando sombras na legalidade e constitucionalidade do aludido projeto de lei, ao passo que, mais recentemente, a Procuradoria Geral da República elaborou detalhada Nota Técnica [14], pronunciando-se pela inconstitucionalidade daquela proposta legislativa [15]. O Conselho Federal da OAB também se pronunciou a respeito [16].

Reprodução

A rigor, as situações e o contexto não possuem muita distinção do que a literatura internacional indica acontecer no continente africano…

Em princípio, pode parecer haver vantagens, mas a doutrina estrangeira e a lupa indicam que a questão é menos de fluxo econômico das mercadorias e mais de estratégia política e de soberania nacional e, também, de posicionamento da estrutura rural diante da chegada dessas potências, capitaneadas pelos investimentos maciços e a necessidade estratégica de alimentar a maior população do mundo.

Nada há de errado ou questionável na necessidade expansionista ou do interesse nacional daquele ou de outro país. Não há nuance de qualquer preconceito ou resistência a povos ou nações. A grande questão é: por qual motivo não somos, também, protecionistas, expansionistas ou nacionalistas? Se outros podem ser nacionalistas e tudo fazer para proteger os seus, hoje e no futuro, por qual motivo não podemos valorizar e proteger os nossos nacionais?

A propósito, Alessandro Octaviani [17] ensina: China e EUA: proteger seus mercados contra o controle por capitais estrangeiros. Na China […] A lei de 2020 continua restringindo ou proibindo o investimento externo em diversas áreas”.

Vale considerar que os grandes parceiros comerciais e compradores só manterão tal posição enquanto tiverem a necessidade de aquisição. A partir do momento em que tenham as mesmas condições de produção, deixarão de ser grandes compradores e passarão a ser fortes concorrentes.

No fim, efetivamente, a riqueza não será nossa e nem dos nossos produtores, pois será levada daqui, por transferência dos altos valores envolvidos e in natura. Os nossos produtores e nossa cadeia produtiva tenderão a perceber a concorrência e a diferença no quilate dos negócios mundo afora.

Em recente artigo, intitulado Monopsônio chinês afeta o mundo [18], dissemos:

“Quando um único e grande comprador adquire produtos de vários vendedores, por longo tempo, não domina só os preços, já que cria complexa cadeia de dependência. Esta acaba produzindo também ingerências políticas que retroalimentam o seu poder de compra. A cadeia de fornecedores se torna tão dependente que começa a disputar entre si, como num leilão às avessas“.

A expansão, na forma de financiamento, em troca de abastecimento (leia-se, fornecimento de alimentos) equivaleria à condição de guerra quase ideal, pois dispensa o uso de armas e a mobilização de exércitos.

A Índia e a China precisam de segurança alimentar para as suas populações — de cerca de 1,5 bilhão e meio de pessoas, cada. Mais ainda: necessitam crescer e adquirir o controle das terras cultiváveis. Buscam novos produtos por consumir e o controle do fluxo das cadeias produtivas e dos alimentos.

Em sentido figurado: quem possuir a padaria venderá os pães. Se a nossa padaria for vendida, teremos de pagar pelos pães e, mais do que isso, pelo preço que o novo proprietário quiser nos vender ou… ficar sem.

Esse é o quadro que se desenha — a exemplo do que se identifica no continente africano. Ainda estamos em tempo de resistir, como nação — dos produtores instalados, dos proprietários rurais, dos envolvidos nas cadeias produtivas.

 


[5] DI SALVO, Michele. Il land grabbing e la guerra d’Africa. Italian. 2014. 135 páginas.

Rogério Reis Devisate é membro da Academia Brasileira de Letras Agrárias, da Academia Internacional de Direito e Ética, da Academia Fluminense de Letras, do Instituto Federalista e da
União Brasileira de Escritores, presidente da Comissão Nacional de Assuntos Fundiários da UBAU, membro da Comissão de Direito Agrário da OAB/RJ e do Ibap, autor de vários artigos e do livro Grilos e Gafanhotos Grilagem e coordenador da obra Regularização Fundiária: Experiências Regionais.

Consultor Júridico

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