Rogério Souza: Pandemia, IA e o futuro da Justiça (parte 2)

Continuação da parte 1

A IA e a Justiça

Com a Justiça, não poderia ser diferente e talvez aqui resida o maior temor daqueles que se veem obrigados a conviver com a nova tecnologia. Assim como os trabalhadores manuais do passado culpavam as máquinas por seu infortúnio, muitos operadores do Direito hoje encaram a IA com sobrancelhas arqueadas, um pé atrás e punhos cerrados, prontos a atacar. O desconhecido intimida e na área jurídica as mudanças são particularmente impactantes, pois atingem diretamente as relações de poder. Qualquer mudança na administração da Justiça envolve mudança nas relações de poder imanentes na sociedade, seja através de transferência de poder para aqueles que não o detinham, seja pela concentração de poder por aqueles que já o exerciam. Quando relacionada à Justiça e ao Direito, a IA revela seu aspecto mais desafiador, ultrapassado apenas por suas relações com a política.

A Justiça é um conjunto organizado e multifacetado de instituições integrado por pessoas em relações hierarquizadas de poder e submissão. A razão de ser da Justiça, enquanto instituição social, é resolver, de forma imperativa e inquestionável, disputas de poder entre os membros da sociedade. Para isso, a sociedade organizou métodos de seleção de seus integrantes que irão compor as instituições sociais encarregadas de “dizer o Direito”.

Esse Direito é corporificado, em termos objetivos, nas leis que a sociedade resolve, por meios próprios, adotar como obrigatórias para todos os seus membros. A discordância sobre a interpretação da aplicação da lei sobre este ou aquele fato entre os membros da sociedade transfere para a instituição da Justiça o poder coercitivo de resolver a disputa para impor a decisão de modo definitivo e irresistível por aquele que teve sua interpretação rejeitada.

Com a IA começando a ser empregada na Justiça como método da avançado da tecnologia da informação, visando apresentar a solução da disputa através da seleção do melhor resultado após a pesquisa em bancos de dados quase infinitos, a aplicação da Justiça ao caso concreto ocasionará a própria redução do trabalho dos operadores do direito ao fornecimento das informações correspondentes que deram origem àquela disputa, cuidando para que as interpretações de cada parte conflitante estejam disponível para contrafação pela IA.

Só a descrição de tal atividade basta para gerar calafrios em quem lida com o Direito e a Justiça como seu mister profissional. A constrição raivosa da expressão é uma reação imediata: quer dizer que a justiça será feita por robôs?! A pergunta esconde uma preocupação mais íntima e depressiva: quer dizer que agora seremos todos dispensáveis?

A preocupação é legítima e atual, embora apresentada com premissas absolutamente equivocadas, como os trabalhadores manuais ingleses que arremeteram contra as máquinas de produção industrial. A IA, para os operadores do Direito, é uma “máquina” que veio ao encontro de suas necessidades, ainda que elas próprias teimem em não ser reconhecidas pelos seus usuários, seja por medo de encarar as mudanças que a tecnologia da informação já lhes apresenta, seja em razão da resistência natural à percepção equivocada de que “assim estaremos perdendo poder”. É uma percepção arraigada e que se faz presente quando qualquer novo avanço tecnológico é “descoberto”: os copiadores de livros amaldiçoaram Gutenberg quando desenvolveu a prensa com caracteres móveis. É o mesmo com os que ainda utilizam os programas de computador apenas como coletor de dados e para digitação manual. Exigirá um período de transição até que a inteligência artificial seja utilizada como a prensa do século 21, fazendo com que todo o conhecimento humano seja acessível em tempo recorde e por qualquer um, em qualquer tempo e em qualquer lugar do planeta. Não é uma ameaça individual; é um avanço de toda a sociedade para níveis superiores de organização social, com reflexos na própria distribuição de poder entre seus membros.

A IA e os operadores do Direito

A inteligência artificial não retira dos operadores do Direito sua importância social e seu poder intelectual de selecionar e informar o caso de seu cliente; não retira do Juiz seu controle e sua decisão final, tão logo tenha conhecimento da solução possível dentro do sistema jurídico positivo, conforme sugerido pela IA. A atuação do Juiz ficará à salvo de injunções de natureza subjetiva e será limitada pelos contornos objetivos do caso concreto e da aplicação da lei que o próprio sistema jurídico oferece. Mas a decisão final será sempre do Juiz, detentor do poder jurisdicional de julgar; a diferença é que terá em suas mãos a indicação precisa de todos os argumentos possíveis, favoráveis e contrários, disponíveis para a solução do caso apresentado.

Muitos dirão que hoje já é assim, bastando consultar a jurisprudência. A IA não se limita ao campo jurídico ou jurisdicional, abrangendo toda a gama do conhecimento humano em sua potencialidade. A utilização da IA proporcionará ao julgador (e aos operadores do Direito em geral), o conhecimento de todas as possibilidades disponíveis que dizem respeito ao caso concreto, servindo-se, à exaustão, do arcabouço jurídico existente.

A utilização da IA pelos operadores do Direito, sejam eles quais forem e em que instâncias judiciais estiverem, representa o estado da arte em que a tecnologia da informação se encontra nos tempos atuais e que pode oferecer à administração da Justiça, neste campo específico de conhecimento.

Aqui a IA faz um fecho com a tecnologia da informação e com o trabalho em sua essência. Se a IA tem o condão de transformar a Justiça em uma espécie de programa cibernético, acessível a qualquer um previamente habilitado, todo o aparato existente, seja de pessoal, seja material, físico (prédios, tribunais) se revelará, em pouco tempo, inútil e desnecessário em sua maioria e em sua extensão. O trabalho judicial, em sua essência, é intelectual; ele não precisa de um local físico para se desenvolver. As exceções são poucas. A oitiva de testemunhas, do réu e das partes, em geral, pode ser feita (como foi durante os anos de pandemia), por meio tecnológico adequado e disponível, adotando-se os sistemas de controle e segurança compatíveis com cada ato processual indispensável à solução do litígio. O exemplo de resistência mais citado é o julgamento pelo Tribunal do Júri, com a participação direta da sociedade através de jurados, envolvendo todo o teatro da acusação e da defesa, o contato visual com o acusado, as reações dos jurados, o depoimento das testemunhas, a sustentação final e, por estas razões, tenderá a ser preservado em seu arcabouço atual, mormente porque representa o julgamento do maior crime e traz as maiores consequências para os envolvidos, por se tratar de crimes contra a vida (na maioria dos sistemas jurídicos). Mas, a rigor e sem pré-conceitos, não existiria nenhum óbice a que fosse realizado pelas vias que a tecnologia cibernética já dispõe. Desta forma, embora imponentes e símbolos de poder institucional, os palácios de justiça e demais dependências, com o avanço tecnológico, em pouco tempo serão relíquias caras e disfuncionais.

A IA e a desumanização da Justiça

A conjugação da IA com o trabalho cibernético (o trabalhador é o seu próprio local de trabalho) é apontada como “desumanização” da Justiça, impedindo que a parte conheça o juiz que vai julgar seu caso, que o réu desconheça o juiz que o condenou, que as testemunhas não percebam a responsabilidade de sua participação no processo judicial, pois não estão “diante do juiz”. Discute-se ainda que a utilização dos recursos atuais ocasionaria um “afastamento” da Justiça do cidadão. O argumento é apaixonante e cativa aqueles que não conhecem, realmente, como se desenvolve o trabalho judicial, seja nos grandes centros, seja no interior.

Por razões decorrentes da própria “justiça de massa”, privilegia-se, hoje, a rapidez e a eficiência em prejuízo da decantação lenta dos processos para que cheguem ao ponto de julgamento quando já “maduros”; a relação entre a grande quantidade de processos e a proporção entre pessoal da justiça e população se distancia cada vez mais. A cada dia, aumenta a produtividade com o emprego de menos mão de obra e mais tecnologia. O tão falado axioma de que “o juiz deve estar próximo das partes” se revela como uma verdade existente apenas nos livros de formação profissional, com raízes no próprio romantismo. A proximidade do julgador deve ser dos fatos apresentados pelas partes e isso a IA, aliada aos recursos disponibilizados pela tecnologia da informação, já oferece com sabidas vantagens e com menos custos. A proximidade de juiz e partes dividindo o mesmo ambiente físico na sessão de julgamento não é requisito para a administração da justiça, porquanto nada, de fato, é produzido materialmente naquela audiência e que exija a presença consentânea dos envolvidos e a prática de qualquer ato de natureza físico.

Durante a pandemia, as sociedades se organizaram para continuar a administração da justiça, sem que tivesse sido registrado prejuízo verificável aos processos e aos casos julgados. Ao contrário, constatou-se aumento da produtividade considerando as horas envolvidas no trabalho judiciário e os resultados, sem diminuir em nada a qualidade do que foi decidido. Se casos houve em que a decisão teria sido diferente se as partes estivessem sentadas diante do juiz, esses casos foram pontuais de modo a não deslegitimar os resultados de todo o conjunto.

Conclusão: O futuro chegou. Não tenhamos medo

A pandemia mudou o mundo. A Justiça não poderia continuar a mesma. Integrada por pessoas formadas, objetivamente, para preservar o estado atual de coisas, decorrente da própria aplicação da lei (que é estática), é natural que da Justiça provenham as maiores resistências para se aceitar e adotar, doravante, as possibilidades que a tecnologia da informação e a IA oferecem, com assento em hábitos arraigados há centenas de anos. A imagem da figura do juiz altivo, distante, colocado em lugar superior e quase inatingível por qualquer mortal, sempre foi aceita por todos sem que isso desmerecesse o respeito e o valor do seu trabalho. O juiz permanece o mesmo e sua imagem também; só precisamos aceitar, agora, que ele está “inatingível” na interface do computador e não mais sentado à nossa frente na sala de audiências. Continua o mesmo juiz de antes (seja ele com raízes em Dickens ou no juiz americano “bonzinho”), mas agora munido dos recursos tecnológicos de seu tempo.

A tecnologia, desde os seus primórdios, com o domínio do fogo, sempre foi assustadora para aqueles que com ela tiveram o primeiro contato e com ela tiveram que conviver; mas ela sempre se impôs, seja porque havia se transformado em componente essencial da vida cotidiana, seja porque a sociedade a adotou como um elemento dela mesma integrante, ou seja, natural. A tecnologia da informação e a inteligência artificial hoje são realidades inseparáveis de nosso mundo e com ela lidamos diariamente sem nos apercebermos de sua intimidade e de sua essencialidade.

A Justiça, instituição importante e insubstituível em qualquer sociedade, deve receber este novo instrumento com entusiasmo e destemor, fazendo com que a tecnologia sirva, mais uma vez, como elemento facilitador para a resolução dos conflitos sociais. A resistência à sua aceitação, seja por quais motivos forem, apenas retardará a prestação jurisdicional em sua melhor qualidade e com mais rapidez, razão legitimadora da própria razão de ser da Justiça.

Rogério de Oliveira Souza é desembargador da 6ª Câmara Cível do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).

Consultor Júridico

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