Como foi amplamente divulgado, o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, na sessão do dia 23 de agosto, que a alteração no Código de Processo Penal que instituiu o juiz das garantias é constitucional, ficando determinado que a regra é de aplicação obrigatória, cabendo aos estados, ao Distrito Federal e à União definir o formato em suas respectivas esferas.
A decisão, tomada no bojo de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305), estabeleceu um prazo de 12 meses, prorrogáveis por outros 12, para que leis e regulamentos dos tribunais sejam alterados, permitindo a implementação do novo sistema a partir de diretrizes fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça. Este prazo começará a contar a partir da publicação da ata do julgamento.
Para o colegiado, as regras introduzidas pelo chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13964/2019) são uma opção legítima do Congresso, visando a assegurar a imparcialidade no processo penal. O entendimento foi de que, como as normas são de processo penal, não há violação do poder de auto-organização dos tribunais, pois apenas a União tem competência para propor leis sobre o tema, nos termos do artigo 22, I, da Constituição.
De acordo com o julgamento, e conforme disciplina o Código de Processo Penal, o juiz das garantias deverá atuar apenas na fase da investigação criminal e terá competência para o controle da legalidade do procedimento investigatório e pela salvaguarda dos direitos individuais dos investigados.
Na sessão de julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso destacou a necessidade de que o país tenha um direito penal sério e moderado. Segundo o ministro, o sistema atual é duríssimo com os pobres e “extremamente manso com a criminalidade dos ricos, do colarinho branco, inclusive com a apropriação privada do Estado”.
No mesmo sentido, a ministra Cármen Lúcia considerou “que a escolha do Legislativo, embora não vá resolver todos os problemas do sistema de persecução penal, é benéfica, pois busca uma solução para seu aperfeiçoamento”.
Para o ministro Gilmar Mendes, “a criação do juiz das garantias foi uma das manifestações da classe política em defesa da democracia brasileira, ao assegurar mecanismos de imparcialidade do magistrado criminal e favorecer a paridade de armas, a presunção de inocência e o controle da legalidade dos atos investigativos invasivos”, entendendo “que essa sistemática contribui para maior integridade do sistema de justiça”.
Já a ministra Rosa Weber afirmou “que o direito ao juiz imparcial é uma garantia prevista na Constituição Federal e em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário”. Segundo ela, “a obrigação do Estado passa pela criação de normas para inibir a atuação do magistrado em situações que comprometam ou aparentem comprometer sua imparcialidade”.
A respeito do juiz das garantias, o jurista argentino Pedro Bertolino, comentando o Código de Processo Penal de Buenos Aires e, mais particularmente, o juiz das garantias, fazendo como se fora um jogo de palavras — como ele próprio admite —, afirma que com o juiz das garantias “a lei processual penal de Buenos Aires pretendeu, antes de qualquer outra coisa, estabelecer a ‘garantia de um juiz'” (grifos e aspas no original). É ainda dele a observação de “que a própria denominação legal vincula-o, sem prejuízo de outras considerações, com a realidade das garantias processuais”, tratando-se da concretização da “dimensão constitucional da jurisdição” [1]
Vejamos, então (e criticamente), alguns pontos da decisão:
Com efeito, decidiu-se que a competência do juiz das garantias termina com o oferecimento da denúncia, cuja análise passa a ser da competência do juiz da instrução, que decidirá, também, eventuais questões pendentes; outrossim, estabeleceu-se que em até 10 dias após o oferecimento da denúncia ou queixa, o juiz da instrução e julgamento deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso.
Aqui surge o primeiro e grave equívoco da decisão, data maxima venia: segundo os ministros, a competência do juiz das garantias cessa a partir do oferecimento da denúncia ou queixa, ficando o juízo de admissibilidade da peça acusatória a cargo do juiz da causa, ao contrário do que expressamente estabelece o artigo 3º-C, do Código de Processo Penal, in verbis: “a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do artigo 399 deste Código”.
Ora, deixando para o juiz do processo a competência para receber (ou rejeitar) a denúncia ou queixa, por óbvio que a decisão fez tabula rasa do verdadeiro sentido da criação do juiz das garantias, que é o de afastar o juiz da instrução do material colhido durante a investigação criminal, inquisitória por sua própria natureza.
Na forma como foi decidido, o juiz que irá julgar o caso penal já terá tido contato com os elementos colhidos durante a investigação criminal, pondo em xeque a sua imparcialidade, pois, possivelmente (e ainda que inconscientemente), estará contaminado pelos atos investigatórios levados a cabo sem os cuidados do devido processo legal, especialmente a ampla defesa, o contraditório, a publicidade e a oralidade.
A propósito, Roberto Falcone, defendendo a imparcialidade do julgador, explica que, em razão dela, não pode “ser uma mesma pessoa a que realiza a investigação e a que decida”. Assim, o modelo acusatório “pretendeu devolver ao investigado/acusado a qualidade de sujeito de direitos, o que o procedimento inquisitivo negava, transformando-o em um mero objeto de um procedimento inquisitivo, presidido por um juiz instrutor e de acusação” [2].
Eis o ponto central: a imparcialidade do julgador, “a primeira exigência de um juiz, que não pode ser, ao mesmo tempo, parte e julgador no conflito submetido à sua decisão”, conforme sintetiza Juan Montero Aroca [3].
Sobre o tema, Ferrajoli afirma que a imparcialidade deve ser, para o juiz, “um hábito intelectual e moral”, razão pela qual não deve ter o Magistrado qualquer “interesse acusatório”; neste sentido, para ele, “a função judicial não pode ser contaminada pela promiscuidade entre juízes e órgãos da polícia, que só devem ter relações — de dependência — com a acusação pública” [4]
Também, lamentavelmente, foi afastada a regra que previa o relaxamento automático da prisão caso as investigações não fossem encerradas no prazo legal. Segundo a decisão, o juiz poderá avaliar os motivos que motivaram sua declaração. Trata-se, sem dúvidas, de outro equívoco, pois o §2º do artigo 3º-B é claro ao estabelecer que “se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada”.
É óbvio ser necessária uma sanção (o relaxamento da prisão ilegal) para o descumprimento do prazo de término da investigação; sem ela, de nada adianta estabelecer um prazo para o final do procedimento investigatório.
A Corte também deixou assentado que as normas relativas ao juiz das garantias não se aplicam aos processos de competência originária do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, regidos pela Lei nº 8.038/1990; tampouco é aplicável aos processos de competência do Tribunal do Júri, aos casos de violência doméstica e familiar e às infrações penais de menor potencial ofensivo, podendo atuar, contudo, nos processos criminais da Justiça Eleitoral.
Aqui, mais um erro: não há autorização legal para excluir a competência do juiz das garantias no procedimento do júri, nos casos penais relativos à violência doméstica e familiar e nas hipóteses de prerrogativa de foro; pelo contrário, a lei só excluiu a sua atuação nas infrações penais de menor potencial ofensivo, nos exatos e claros termos do artigo 3º-C, acima transcrito.
Com efeito, não há qualquer razão, seja do ponto de vista das novas disposições, seja em decorrência da Constituição Federal, para limitar a competência do juiz das garantias aos processos na primeira instância; muito pelo contrário, também deveriam ser observadas as novas disposições processuais penais nas ações penais originárias, de tal maneira que quando um desembargador ou ministro tivesse atuado na fase de investigação, outro deveria ser o relator para a instrução e para proferir o voto.
A Corte também afastou a regra que previa a designação do juiz das garantias; assim, segundo a decisão, o juiz deverá ser investido conforme as normas de organização judiciária de cada esfera da justiça, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelos tribunais.
Acertadamente, foi fixado o prazo de até 90 dias, contados da publicação da ata do julgamento, para os representantes do Ministério Público encaminharem, sob pena de nulidade, todos os procedimentos de investigação e outros procedimentos semelhantes, mesmo que tenham outra denominação, ao respectivo juiz natural, independentemente de o juiz das garantias já ter sido implementado na respectiva jurisdição.
O exercício do contraditório será realizado, preferencialmente, em audiência pública e oral. Contudo, o juiz pode deixar de realizar a audiência quando houver risco para o processo ou adiá-la em caso de necessidade. Também ficou decidido que, em caso de urgência, a audiência de custódia poderá ser realizada por videoconferência. Aqui é preciso atenção para que a excepcionalidade não se torne regra.
Outro equívoco evidente foi estabelecer que o Ministério Público, ao se manifestar pelo arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, submeterá sua manifestação ao juiz competente e comunicará o fato à vítima, ao investigado e à autoridade policial, podendo encaminhar os autos para o procurador-geral ou para a instância de revisão ministerial, quando houver, para fins de homologação. Além da vítima ou de seu representante legal, a autoridade judicial competente também poderá submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, caso verifique patente ilegalidade ou anormalidade no arquivamento.
Como se vê, equivocadamente, manteve-se o controle judicial no procedimento de arquivamento da peça investigatória, o que é um retrocesso. A nova redação do artigo 28 também é clara (e constitucional), afastando o controle do juiz sobre a promoção de arquivamento de peças de informação; ou seja, o velho artigo 28 (um ranço inquisitorial do Código de Processo Penal) foi repristinado, voltando ao antigo procedimento de submeter ao juiz a promoção de arquivamento. Sem dúvidas, um grande retrocesso!
Ademais — e aqui mais um erro cometido pela Suprema Corte —, foi declarada a inconstitucionalidade do artigo 157, §5º, que proibia o juiz que tivesse admitido prova declarada inadmissível de proferir a sentença ou o acórdão. Ora, se o juiz tomou conhecimento da prova ilícita, ainda que ela seja desentranhada (como determina o caput do artigo 157), ele já estará contaminado por ela e, por conseguinte, a sua decisão.
E, mais uma vez contrariamente ao texto expresso da lei (artigo 3º-C, §3º), decidiu-se que a remessa dos autos ao juiz da instrução é obrigatória, declarando-se inconstitucional a norma que previa a permanência dos autos com o juiz das garantias. Mais um equívoco! O sentido da referida disposição (longe de ser inconstitucional, pelo contrário) é exatamente evitar que o juiz da causa tenha contato (e se contamine) com os autos da investigação criminal, formulando de logo uma hipótese e buscando fatos que a comprovem; é o chamado “primado da hipótese sobre os fatos”, conforme lição do processualista italiano Franco Cordero.
A divulgação de informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso pelas autoridades policiais, pelo Ministério Público e pela magistratura deve assegurar a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão. Neste aspecto, foi mantida a regra que proíbe as autoridades penais de fazer acordos com órgãos de imprensa para divulgar operações. Nesse ponto, o colegiado considerou que a divulgação de informações sobre prisões e sobre a identidade do preso pelas autoridades policiais, pelo Ministério Público e pelo Judiciário deve seguir as normas constitucionais para assegurar a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa.
Certamente, esta é uma questão muito controversa e diz respeito, não especialmente ao juiz das garantias, mas a um conflito entre a liberdade de expressão e de informação e o direito individual de ter a imagem protegida e a sua honra preservada. Eis uma matéria muito sensível, assim definida por Escalante:
“Uma contraposição entre duas modalidades deônticas derivadas da liberdade de expressão ou informação, e o direito à preservação da honra, consistente em que um ato de manifestação de pensamento, opinião ou informação de um deles está permitido por aquelas liberdades e, por sua vez, está proibido pelo direito de preservação da honra alheia. O conflito consiste, em suma, na permissão de opinar e informar e a proibição de lesão do direito à honra” [5].
De toda maneira, é preciso atenção e rigor no cumprimento deste dispositivo, pois, efetivamente, o mais que se vê no Brasil é uma exposição absurda, perversa e inconstitucional da imagem de investigados e acusados, sem a necessária preservação dos direitos individuais declarados e garantidos pela Constituição. Por outro lado, numa democracia, é indispensável que os meios de comunicação tenham a liberdade (e a responsabilidade) de informar os cidadãos, com os cuidados para não contribuírem, com esta exposição, para prejulgamentos, futuras e injustas condenações.
No que se refere à sucessão da lei no tempo, firmou-se o entendimento que a eficácia da lei não acarretará nenhuma modificação do juízo competente nas ações penais já instauradas no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais.
Assim, em relação aos processos pendentes na data da entrada em vigor da nova lei, deve-se atentar para o artigo 2º, do Código de Processo Penal (“a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”). Ou seja, relativamente às ações penais em curso (estejam em primeiro grau, nos tribunais, no Superior Tribunal de Justiça ou na Suprema Corte), se um juiz, desembargador ou ministro deferiu alguma medida requerida durante a fase de investigação, o processo deve ser encaminhado ulteriormente para outro magistrado, seja o substituto legal, seja um novo relator, devidamente sorteado. A nova lei somente não atingirá os processos em que já houve recebimento da peça acusatória. Esta é uma inafastável conclusão que decorre dos princípios que regem a sucessão das leis processuais penais formais no tempo.
Como se vê, e para concluir, demorou-se tanto tempo para se decidir acerca da constitucionalidade do artigo 3º-B e seguintes do Código de Processo Penal e, ao final, transfigurou-se o juiz das garantias, impedindo o avanço do processo penal brasileiro e deixando-o com o velho ranço inquisitorial de sempre.
Uma pena!
[1] BERTOLINO, Pedro J., El Juez de Garantías en el Código Procesal Penal de la Provincia de Buenos Aires, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 2000, páginas 56 e 122 (tradução livre).
[2] FALCONE, Roberto A., El Principio Acusatorio — El Procedimiento Oral en la Provincia de Buenos Aires y en la Nación, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2005, p. 19 (tradução livre).
[3] AROCA, Juan Montero, Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186 (tradução livre).
[4] FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal, Madrid: Editorial Trotta, 1998, 3ª. edição, páginas 580, 582 e 583 (tradução livre).
[5] ESCALANTE, Mijail Mendoza, Conflictos entre Derechos Fundamentales – Expresión, Información y Honor, Lima: Palestra Editores, 2007, p. 117 (tradução livre).
Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs) e pós-graduado pela Universidade de Salamanca.