Chegamos a Minas Gerais. A terra da Liberdade. A penúltima agenda da semana que retoma os mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Revisar processos é, também, uma maneira de garantir um olhar especializado para as nossas prisões. Devemos cuidar para que o tecido social nesses espaços permaneça íntegro — para que além de processos, existam rostos, vozes e sentimento de pertencimento social. Sem isso, a pena perde o seu conceito. E a própria punição afasta-se do sentido de restauração social.
A revisão de mais de 100 mil processos em todo o país até agosto permitirá um melhor alinhamento entre normas e entendimentos firmados por cortes superiores e a realidade invisibilizada desde as celas. Realidade que alcança pessoas muitas vezes esquecidas porque a elas não chega o essencial para existir com dignidade, ou mesmo informações básicas e elementares sobre os processos judiciais que as mantém ali. Essa realidade contribui para que os presídios se tornem “espaços de não-direito”, lugares de transgressão, que cedo ou tarde, apresentarão contas que não teremos forma de pagar.
Hoje temos a tecnologia como aliada para buscarmos respostas articuladas a esse cenário, sendo uma delas o Sistema Eletrônico de Execução Unificado. Desde 2018, o CNJ vem trabalhando para expandir e qualificar essa ferramenta que reúne mais de 1,5 milhão execuções penais em todo o país — apenas em Minas Gerais, são mais de 200 mil processos. É por meio do Seeu que a filtragem e a análise de processos no mutirão tornam-se realizáveis em curto espaço de tempo, permitindo que o CNJ atue de forma colaborativa com os tribunais na logística de execução dessas atividades.
Os avanços recentes no Seeu, assim como o novo modelo de mutirão penal, integram as atividades do programa Fazendo Justiça, amplo leque de iniciativas coordenadas pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento para acelerar transformações na privação de liberdade. No campo da tecnologia, o CNJ também se ocupa do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), ferramenta eletrônica criada durante a gestão da ministra Carmen Lúcia, no Conselho Nacional de Justiça, e que encontra no Tribunal de Justiça de Minas Gerais fundamental apoio para atualizações em andamento.
A tecnologia é aliada, mas jamais substituirá o olhar humano. Nossa visita a Minas reforçou a mensagem de um Judiciário presente e atento para as condições de cumprimento da pena, notadamente para populações com vulnerabilidade acrescida. Na Penitenciária Jason Albergaria, em São Joaquim de Bicas, estivemos na unidade que acomoda o público LGBTQIA+ e que viveu episódios recentes contra a vida dessas pessoas que estão sob a responsabilidade do Estado. Um Estado que, segundo a nossa Constituição, tem a obrigação de garantir a integridade física e psicológica daqueles que decidiu privar do convívio social.
A situação de aprisionamento não é experienciada de forma padronizada. Singularidades também se reproduzem no ambiente prisional e demandam a individualização do tratamento das pessoas, sobretudo de grupos específicos — cito ainda mulheres, pessoas com deficiência, pessoas indígenas, pessoas migrantes, mães, pais e responsáveis por menores de idade ou pessoas com deficiência. Por meio do programa Fazendo Justiça, o CNJ vem criando ferramentas e fluxos capazes de apoiar magistradas e magistrados na concretização de direitos e garantias inerentes a esses públicos, dando sentido a normativas que expedimos nos últimos anos.
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Por falar em concretização de iniciativas, a passagem por Minas Gerais nos brindou ainda com a celebração da organização dos Serviços de Atendimento à Pessoa Custodiada, política fomentada pelo CNJ para a qualificação da porta de entrada do sistema prisional e potencializada em 23 unidades da federação por meio do programa Fazendo Justiça.
Presenciamos, ainda, a assinatura de ato normativo que estabelece e regulamenta o fluxo de recebimento, processamento e monitoramento de notícias de torturas e maus-tratos no âmbito do sistema prisional, construído a partir de diálogo com diferentes atores. O CNJ vem se debruçando sobre o tema tanto na porta de entrada, nas audiências de custódia, quanto na execução da pena, com a revisão de fluxos e de procedimentos nas inspeções. Fizemos recentemente, em parceria com o Poder Judiciário do Ceará, a primeira edição de formação para prevenção e combate a tortura, que almejamos levar a todo o país.
Ainda no campo do diálogo interinstitucional, programas de vanguarda desenvolvidos em Minas Gerais, como o PAI-PJ, confirmam que a Política Antimanicomial do Poder Judiciário é plenamente aplicável quando agentes públicos buscam nada menos que o cumprimento de normas e de compromissos assumidos pelo Brasil. Por meio do programa Fazendo Justiça, publicaremos em breve manual para implementação da política, e lançaremos as bases de um programa nacional. Não há lugar para retrocessos.
Tenho acompanhado, com preocupação, notícias que dão conta da precarização de estruturas prisionais. Digo isto na semana em que tivemos tristes notícias do Acre, que dão conta de mortes, violência e barbárie em uma unidade prisional do estado. A precarização desses espaços, a insegurança dos ambientes penais, a violência que ainda grassa nesses locais, são formas que resultam em mais violência e em um modelo de segurança pública que se volta contra seus próprios cidadãos.
Venho mantendo contato com autoridades locais e federais, atenta a episódios que se desdobram, e infelizmente, seguem se repetindo e repercutindo em nossa história, em desalinho com um projeto de país desenvolvido, cidadão e inclusivo. Quando um estabelecimento penal se desestabiliza, há mensagens claras que precisamos compreender. Cabe a nós, agentes públicos comprometidos com a humanização e a otimização das penas, darmos urgência ao que o sistema prisional reivindica de todos nós.
Rosa Weber é presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).