A busca da verdade no processo penal é limitada por balizas epistemológicas e também éticas. Elas devem assegurar o mínimo de idoneidade às provas e impedir a exposição indiscriminada de pessoas ao risco de serem injustamente presas e condenadas.
Esse foi um dos pontos levantados pelo ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal De Justiça, em mesa redonda sobre investigações criminais no Brasil promovida pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas.
Intitulado “Investigações criminais: exigências de racionalidade e confiabilidade”, o seminário será uma continuação de um dos painéis do XI Fórum Jurídico de Lisboa, em junho, resultado de uma parceria entre a FGV, o Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e a Universidade de Lisboa.
Schietti tratou sobre as exigências de racionalidade e confiabilidade necessárias ao processo penal. O magistrado explicou que ao mesmo tempo que busca recuperar a verdade dos fatos, o processo penal também deve ser pautado pela proteção a direitos fundamentais e pelo combate a práticas autoritárias.
Em sua exposição ele citou alguns julgamentos que mudaram o panorama do processo penal no Brasil como os dos HCs 598.886/SC e 712.781-RJ, que versavam sobre reconhecimento fotográfico.
Ele reiterou a jurisprudência pacífica do STJ construída — muito a partir de seus entendimentos — de que o reconhecimento fotográfico para ser válido precisa obedecer estritamente o disposto no artigo 226 do Código de Processo Penal.
Diante dos riscos de uma condenação injusta, ele prega que o reconhecimento falho deve ser considerado inválido e, mesmo feito dentro dos parâmetros legais, ele não deve ter força de prova absoluta.
Isso porque esse tipo de procedimento pode ser facilmente contaminado por falsas memórias da vítima, que evidentemente se encontra fragilizada no momento do crime. Outros aspectos problemáticos desse tipo de prova é a possibilidade de fenômenos como o crossrace effect — ocorre diante da dificuldade de pessoas de um mesmo grupo racial reconhecer características de outras pessoas que pertencem a outro grupo racial — e o efeito psicológico provocado por armas de fogo em crimes como assalto, nesses casos o instinto da vítima é focar na arma e não no rosto do criminoso.
Busca ilegal
O ministro também abordou outro entendimento consolidado do STJ ao discorrer sobre buscas pessoais e domiciliares ilegais. Ele reiterou sua posição de que a entrada forçada em domicílio sem justificativa prévia é ilegal e precisa ser combatida.
Ele explicou que a situação de flagrante delito — em especial nos casos de crimes permanentes — não necessariamente caracterizam uma situação de urgência, diferente de casos como o de sequestro cujo perigo concreto é imediato.
Ao tratar das buscas pessoais, Schietti citou dados que demonstraram de forma cabal a ineficácia desse tipo de procedimento no âmbito da segurança pública. Também pontuou que muitas vezes essas abordagens são fruto do racismo estrutural.
Ele citou trabalho divulgado em 2022 pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, que revelou que pretos e pardos representam 48% da população carioca, mas que esse grupo é alvo de 63% das abordagens de policiais militares.
Confissões questionáveis
Schietti também tratou da prova decorrente de confissão e de depoimentos testemunhais. Ele citou o trabalho do pesquisador Michel Misse, que avaliou inquéritos policiais de cinco capitais do Brasil e observou que a confissão dos suspeitos representa 80% das investigações.
Ele explicou que o perfil desses réus confessos é formado por pessoas que pertencem a classes populares, especialmente jovens de baixa escolaridade, pretos e pardos.
Ele ressaltou o fato de que ocorrem poucas diligências externas e perícias técnico-científicas e que isso indica, sobretudo, o direcionamento das investigações em um aspecto que privilegia sempre a prova testemunhal.
Por fim, o ministro fez uma série de provocações sobre a qualidade das investigações no país e o papel do Ministério Público nesse contexto.
Passado, presente e futuro
O advogado Ary Bergher, presidente da comissão de estudos de Direito Penal da OAB-RJ, chamou atenção para a questão dos vieses cognitivos na tomada de decisão. Ele ressaltou a necessidade de aperfeiçoamento para que haja decisões justas e paritárias.
A advogada Fernanda Tórtima, por sua vez, fez um análise sobre a decisão recente do Supremo sobre o juiz das garantias. Segundo ela, uma vez que ele decidirá sobre o recebimento da denúncia, ao menos é possível aproveitar a oportunidade para fazer uma análise mais profunda do arcabouço probatório produzido na fase pré-processual. “É preciso que se passe a fazer uma análise do prognóstico acerca de probabilidade de condenação já nesse momento processual”, afirmou.
Eduardo André Brandão de Brito Fernandes, juiz federal do TRF-2, entende que não é possível, a priori, estabelecer uma nulidade ou uma regra probatória para a palavra do policial, sendo ideal que o juiz possa livremente valorar a prova.
O desembargador do TJ-RJ Fábio Montenegro ressaltou que a estrutura policial não está preparada para a jurisprudência que se vem criando no STJ a respeito do reconhecimento de pessoas, buscas não autorizadas fundadas em determinadas suspeitas, entre outros pontos.
Thiago Bottino, coordenador da graduação da FGV Direito Rio e professor de Direito Penal e Direito Processo Penal, por sua vez, tratou de erro judiciário e da necessidade de desenvolver mecanismos para aperfeiçoamento do sistema de justiça, inclusive com base em pesquisas acadêmicas.
O desembargador do TJ-RJ, professor da FGV e coordenador acadêmico da FGV Conhecimento Ricardo Couto elogiou a atual jurisprudência do STJ sobre o reconhecimento facial e o ingresso domiciliar sem o competente mandado, neste último caso “forçando um estado de flagrante”. Ele ressaltou que a visão “garantista” não contraria o interesse da sociedade, muito menos a ideia de segurança, pois fortalece o acerto das decisões, evitando prisões de inocentes.
David Francisco de Faria, chefe de gabinete do Ministério Público do Rio de Janeiro e professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro abordou a investigação defensiva como uma maneira de minimizar o fato de que, no inquérito policial, costuma haver elementos indiciários apenas da versão acusatória.
Marfan Martins Vieira, subprocurador-geral de Justiça de Relações Institucionais da Defesa de Prerrogativas do Ministério Público do Rio de Janeiro apontou a necessidade de tratar da investigação pelo Ministério Público.
Trouxe a visão da Defensoria Pública a defensora Lucia Helena de Oliveira, para quem o melhor aparelhamento da polícia seria essencial para melhorar a qualidade do serviço público de apuração de crimes para fins de instrução em futura ação penal. Ela chamou atenção para o fato de que, na investigação de pequenos traficantes, não costuma haver investigação e que há sumula do TJ-RJ que permite a condenação com base apenas na palavra do policial.
Oliveira destacou, enfim, o recém criado Núcleo de Investigação Defensiva criado na DPGERJ no ano passado, que poderá contribuir para a melhoria do contraditório, da ampla defesa e da reparação de erros judiciais por meio da revisão criminal, por exemplo.
Alcides Martins, desembargador federal do TRF-2, chamou atenção para a concepção equivocada acerca da existência de poderes totalmente discricionários, que não raro levam a flagrantes forjados e acusações infundadas.
José Augusto Garcia, defensor público e professor de Direito Processual Civil na Uerj, abordou a dicotomia entre a busca da verdade substancial e as garantias, que funcionam como limite ético. Segundo ele, persiste, no Brasil, uma cultura totalmente refratária aos direitos humanos, questão elementar.
Por fim, Andréa Cunha Esmeraldo, desembargadora federal do TRF-2 narrou que, inicialmente, havia achado utópica a questão das gravações das abordagens policiais. Depois, viu a experiência de São Paulo e notou que é possível, bem como que gera um efeito positivo.
A magistrada sugeriu que se ampliasse o método a partir de gravações de atos praticados em delegacias (interrogatório do acusado e depoimento de testemunhas prestados em sede policial). Isso traria mais confiabilidade e diminuiria os problemas relativos ao lapso da memória.
Também na Justiça Federal é preciso aprimorar as investigações, que deveriam ter mais investigação de campo e de inteligência e não apenas afastamento de sigilos como fonte de prova, apontou.