Scilio Faver: ​​​​​​​Multa do agravo interno e precedentes vinculantes

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) afetou para julgamento, em sede de recursos repetitivos, controvérsia sobre a aplicação da multa prevista no §4º do artigo 1.021 do Código de Processo Civil (CPC) no caso de utilização da via recursal sob o fundamento indevido ou incorreto de tese firmada em precedente qualificado [1].

A questão não é inédita no âmbito da corte superior que, em julgados isolados, aplicou a sanção justamente pela falta do dever de candura (candor toward the Court), ou seja, falta de boa-fé objetiva e dever de cooperação.

No Recurso em Mandado de Segurança 34.477, julgada na 2ª Turma, por exemplo, aplicou a penalidade em face da União [2], que suscitou a tese já definida no tema 1.009 do STJ, que havia, no caso, considerado indevido o desconto de valores recebidos de boa-fé pelo servidor, quando decorrente de erro operacional da própria administração [3].

Requerendo a reforma da decisão vigente para que fosse feito o desconto, a União deixou de considerar um ponto do precedente que faz total diferença na sua argumentação. Deixou de dizer, nas suas razões recursais, que a tese foi objeto de modulação temporal, de modo que tal conclusão só seria válida para os processos distribuídos, na primeira instância, a partir da data da publicação do acórdão do referido precedente.

Assim, aplicando-se a modulação (que é parte do julgamento da tese e, portanto, não pode ser ignorada quando da sua aplicação nos casos concretos) a União não teria o direito pretendido. No julgamento o relator afirmou no voto que, “Ao manejar pretensão patentemente contrária ao julgado repetitivo, especificamente contra a modulação expressamente afirmada, a parte incorre em abuso do direito de recorrer e viola a boa-fé processual, atraindo a incidência da multa do artigo 1.021, parágrafo 4º, do CPC/2015”.

De fato, a utilização do microssistema de precedentes vinculantes impõe uma pauta de conduta não apenas ao próprio judiciário e seus julgadores, que devem respeitar e aplicar os precedentes de forma a uniformizar a aplicação do direito (grande preocupação estampada no texto legal  artigo 926 do CPC), como também traz para as partes o ônus de se portarem em boa-fé objetiva quando sinalizam a existência de um precedente incidente sobre o caso.

Portanto, a lealdade processual, ao utilizar os argumentos de precedentes, impõe para quem o traz em sua defesa o esclarecimento de que modo aquela tese se aplicaria ao caso, evidenciando a sua ratio para o convencimento do julgador sem omitir informações do próprio precedente.

Essa forma de agir deve ser garantida justamente porque, no sistema brasileiro, temos precedentes que se vinculam pela forma que são concebidos (por exemplo, os julgados em decorrência do procedimento de julgamento de recursos repetitivos), em que a aplicação da interpretação ali gerada se aplica (impositivamente) aos casos idênticos pendentes de análise.

Porém, é também possível que o precedente vinculante possa trazer, na sua ratio decidendi, fundamentos para serem aplicáveis a casos similares, onde a sua imposição não advém de um comando legal, mas de uma coerência interpretativa. Nesses casos, a lealdade da parte é satisfeita justamente com a menção de que se pretende a aplicação daquela ratio para esse caso similar, funcionando assim como argumento persuasivo de alta autoridade a ser levado em consideração do julgador para justificar a sua aderência ao caso ou então o seu afastamento. Sendo adotado tal comportamento, não se concebe a aplicabilidade de qualquer sanção para a parte, pois se estaria limitando o acesso a ampla defesa.

Um outro cuidado para que não se considere uma conduta como desleal é quando a parte suscitar uma distinção entre o caso concreto e o precedente que poderia servir, em abstrato, para o seu caso específico. Nestes casos, em que a parte argui expressamente a distinção, não pode o órgão julgador considerar o recurso como protelatório ou manifestamente inadmissível a ponto de penalizar o recorrente.

A preocupação aqui é garantir exatamente a aplicação do precedente, afinal, o vocábulo “observar” constante no artigo 927 do CPC, impõe precisamente uma justificação do órgão jurisdicional, ou para se alinhar com o precedente vinculante exarado ou para dele se afastar legitimamente. Portanto, se tal preceito é indispensável para o julgador (inclusive para motivação da decisão) também o é para a parte que é responsável, em absoluto, de levar o caso concreto ao judiciário, de modo a ser possível a fixação de uma interpretação do direito para aquele caso específico.

Assim, para aplicação coerente com o sistema da penalidade prevista no §4º do artigo 1.021 do CPC, deve-se prevenir a parte de que possuirá um ônus argumentativo para, no bojo das suas razões recursais, trazer elementos que possam distanciar o caso concreto do precedente vinculante, de modo que, fazendo tal explanação não poderá o seu recurso ser considerado manifestação inadmissível.

Claro que a omissão dolosa em “encobrir” parte do precedente que lhe é desfavorável e que teria o condão de traduzir a sua derrota continuaria a ser interpretado como ato de má-fé, o que aliás, sempre o foi em se tratando de aplicação jurisprudencial.

Não se pode esquecer que o recurso do agravo interno ganha uma indispensabilidade, a partir do momento em que se optou pela ampliação dos poderes do relator (as chamadas decisões monocráticas). Assim, inegável que as decisões monocráticas ganharam uma possibilidade muito ampla (e de certa forma até subjetivamente ampla) na prática forense.

Porém, mesmo nos casos em que a decisão monocrática encontra amparo na norma, como, em decidir o recurso em vista de entendimento firmado em demandas repetitivas, deve-se atentar que o agravo interno é um recurso apto, nestas hipóteses, para o recorrente expor a distinção entre o seu caso e o precedente invocado, não podendo, por este fato, ser considerado o recurso como protelatório ou desleal (e que, muitas vezes,  é utilizado para se permitir o acesso ao órgão que fixou aquele entendimento vinculante e que, poderá, diante deste novo cenário fático, sinalizar,  não apenas a distinção mas a superação da tese).

Pode-se aplicar, levando em consideração as especificidades, sistema análogo a que já vendo sendo reiteradamente adotado nos embargos de declaração (em relação a sua admissibilidade). Dada a natureza de recurso vinculado (onde o recorrente tem que identificar o cabimento do recurso em uma das hipóteses taxativamente previstas) o exame de mérito deste recurso é afirmar se houve ou não uma omissão, obscuridade ou contradição, sendo que para a sua admissibilidade é suficiente  além da sua tempestividade  a alegação expressa, pela parte recorrente, de uma das hipóteses de incidência.

O mesmo raciocínio lógico-juridico deve servir de amparo para a determinação da penalidade prevista no agravo interno quando se tratar de matéria constante em precedente vinculante. Se a parte recorrente, tempestivamente, argumenta que o caso concreto possui contextos fáticos ou jurídicos distintos do precedente, ainda que o colegiado conclua que o precedente vinculante se aplica ao caso não deve ser imposta a penalidade.

Como se vê, o tema deve ser tratado com muito cuidado, principalmente para não gerar uma tese demasiadamente abstrata [4] que acabe por desestimular a busca pela ratio decidendi dos precedentes (e sua utilização), que configura elemento central, não apenas para aplicação aos casos estritamente iguais (em que há uma imposição legal de observância) mas também para casos similares (em que não há uma imposição legal mas a busca pela coerência).

Como se sabe, o direito é ciência viva, em constante mutação. Não se evolui quando se impedem discussões legitimas. O sistema de precedente, é certo, impõe mudança de conduta para todos os sujeitos processuais, mas não pode ser utilizado para criar uma prisão argumentativa. O que se aprisiona, não evolui. Se não evolui, não é direito.

Scilio Faver é advogado, especializado em Direito Processual Civil pela Universidade Candido Mendes (Ucam-RJ) e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur e Faver Advogados com atuação em Contencioso Cível e Empresarial e autor de livros e artigos.

Consultor Júridico

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