Alguns poucos juristas conseguem o êxito de se destacar por sua intelectualidade. Aqueles que os chamam de “mentes brilhantes” não mentem, mas, muitas vezes deixam de enxergar aquilo que já nos falava Thomas Edison sobre a genialidade ser 1% inspiração e 99% transpiração. É que não existem atalhos.
Na esfera profissional e no direito, em especial, o sucesso, em regra, acompanha uma vida inteira de trabalho. São décadas de leitura de livros, jurisprudência, leis, além, lógico, do trabalho de campo, que envolve não apenas as salas dos fóruns, tribunais, delegacias, promotorias, cartórios, secretarias e tantas outras mais, mas, ainda, as reuniões com os clientes, que, em tempos de quarta revolução industrial, para usar o termo cunhado por Klaus Schwab, acontecem dentro e fora do horário comercial, no espaço físico do escritório ou virtual do Whatsapp, pois como todo bom advogado sabe, tudo pode esperar, menos os prazos e os clientes.
O ativo mais precioso do advogado é, portanto, o tempo. Há de se ter tempo para ouvir o cliente, tempo para estudar, tempo para redigir, tempo para cumprir as diligências, tempo para as audiências… tempo, tempo, tempo. No que toca especificamente às audiências, cumpre um adendo para esclarecer que a demanda de tempo aqui é maior, pois é necessário um período de preparação, outro de deslocamento e, finalmente, o de realização do ato em si. As audiências, ao contrário do meme que viralizou sobre “essa reunião poderia ter sido um e-mail”, são indispensáveis, mas tomam tempo. E se é esse o fato posto, há de se ter uma norma corrigindo a conduta. O que foi feito [em parte]. E depois retirado [totalmente]. Explica-se.
O novo coronavírus impôs medidas de isolamento social e períodos de quarentena nos anos de 2020 e 2021, como formas de combate. O ano de 2022, por sua vez, seguiu com o uso de máscara e o distanciamento social, medidas estas que sobrevivem em menor escala no ano corrente. Diante da nova realidade imposta de maneira assustadora, o ser humano e a sua capacidade inventiva trouxeram adaptações a serviços essenciais, cujo funcionamento não poderia ser interrompido por prazo indeterminado, a exemplo do acesso à justiça.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diante da realidade de isolamento e distanciamento impostas pela Covid-19, editou regras sobre o cumprimento digital de atos processuais, regulamentando “a realização de audiências e sessões por videoconferência e telepresenciais e também a comunicação de atos processuais por meio eletrônico”, conforme informa reportagem desta ConJur, publicada em 13 de janeiro de 2021 [1], objetivando uma prestação jurisdicional célere e efetiva.
A distinção entre a audiência realizada por videoconferência ou telepresencialmente é trazida nos incisos I e II do artigo 2º da Resolução nº 354 do CNJ, que classifica a primeira como aquela realizada em ambientes de unidades judiciárias e a segunda aquela praticada fora do ambiente físico das “unidades jurisdicionais de primeira e segunda instância da Justiça dos estados, federal, trabalhista, militar e eleitoral, bem como nos tribunais superiores, à exceção do Supremo Tribunal Federal”, a teor do que dispõe o caput do artigo 1º da resolução em referência.
A nova realidade vivida em um clima de tensão, medo e insegurança, próprio de qualquer pandemia, trouxe algo bom: a economia e celeridade das audiências, atos processuais indispensáveis à solução de alguns conflitos. A necessária redução do quadro de funcionários de muitos escritórios de advocacia só não inviabilizou a defesa de alguns de seus clientes diante da possibilidade de realização de audiências de maneira telepresencial, o que possibilitava aos advogados, em especial o de escritórios pequenos, cumprir com o cronograma de audiências, prazos, diligências e reuniões com clientes.
A participação de audiências por videoconferência ou na forma telepresencial passou, portanto, a elencar o rol de direitos dos advogados trazido no artigo 7º da Lei nº 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Uma simples leitura do dispositivo legal em referência revela a preocupação do legislador em indicar os atos capazes de garantir à advocacia dignidade, liberdade e uniformidade.
As audiências virtuais se enquadram no conjunto de atos capazes de concretizar esses valores, daí o porquê de não poderem ser simplesmente aplicadas a casos excepcionais, conforme decisão do CNJ de 8 de novembro de 2022, sob a justificativa de “necessidade de atuação presencial dos magistrados nas unidades jurisdicionais”, nos termos do voto do relator, conselheiro Vieira de Mello Filho, destacado na matéria publicada no site migalhas [2], sob pena de violação ao princípio da proibição de retrocesso que rege, necessariamente, muitas das situações pendentes de atualização à realidade dos novos tempos, a exemplo do Estatuto da OAB.
O princípio da proibição de retrocesso é amplamente utilizado na esfera dos direitos sociais e ambientais, indicando que a concretização em prol do indivíduo ou coletividade não pode ser reduzida por ato judicial ou administrativo posterior, ou mesmo pela derrogação ou ab-rogação da norma. Cuida-se da proteção de direitos que consagram valores garantidos constitucionalmente, daí a sua importância. A ampla aplicação do princípio da proibição de retrocesso aos direitos sociais e ambientais não o restringe a essa esfera, sendo possível a sua aplicação a qualquer situação que busque limitar um direito constitucionalmente garantido posteriormente à sua concretização.
É o caso da decisão do CNJ na sessão do dia 8 de novembro de 2022, determinando o retorno às audiências presenciais e a adoção excepcional e justificada da audiência virtual, sem observar que a nova realidade passou a constituir um direito dos advogados ao concretizar o artigo 133 da Constituição, que trata da indispensabilidade do advogado à administração da justiça, múnus que só consegue ser exercido adequadamente com o ativo que lhe é tão precioso: tempo.
A audiência virtual democratiza a relação entre os sujeitos não-participantes do conflito: juiz, advogados e ministério público, ao garantir-lhes o mesmo tempo de preparação para o processo no momento em que elimina o tempo de deslocamento ao único dos três que precisa, muitas vezes, numa mesma manhã, comparecer à Justiça estadual, federal e trabalhista para realizar audiências marcadas em horários ou municípios diferentes, mas próximos.
É importante destacar, como já foi feito à época do debate das “férias dos advogados”, movimento iniciado em 2007 e finalizado com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, que a realidade da maioria dos advogados é bem distante dos grandes escritórios que dispõem de todo um suporte financeiro e técnico garantidores de tempo aos sócios para se dedicar àquilo que os distinguirá dos demais: o estudo.
As grandes mentes, conforme afirmamos lá no início, não são grandes à toa, elas se fazem desse tamanho com tempo e estudo. Não há segredo. Não há atalho. Há, todavia, formas de se garantir isso, e a audiência virtual é, sem sombra de dúvidas, uma delas.
Piero Calamandrei na sua obra Eles, os juízes, vistos por um advogado, afirma que o seu gosto pessoal pela beca decorre “não pela passamanaria dourada que a adorna, nem pelas largas mangas que dão solenidade ao gesto, mas pela sua uniformidade estilizada, que simbolicamente corrige todas as intemperanças pessoais e esbate as desigualdades individuais do homem sob a escura farda da função. Igual para todos, a beca reduz quem a veste a ser, em defesa do direito, ‘um advogado’, assim como quem senta à cadeira do centro é um ‘juiz’, sem acréscimo de nomes ou títulos” (1998, p. 39), raciocínio este que pode ser aplicado às audiências virtuais, já que somente com este recurso há uma uniformidade estilizada do tempo de preparo para o ato concedido aos agentes necessários ao bom funcionamento da justiça: o advogado que poderá se dirigir ao seu escritório e de lá realizar as diversas audiências que lhe são designadas, o juiz e o membro do Ministério Público que se encaminharão à sala de audiências, o primeiro para presidir as inúmeras sessões marcadas e o segundo para fiscalizar os atos que lhe incumbem, todos atuando sem vexame de tempo, apenas se preocupando em ser bons naquilo que fazem.
As audiências virtuais falam menos sobre os juízes e o seu dever funcional de se fazer presente fisicamente nas comarcas, conforme destacado pelo CNJ, e mais sobre os advogados e o seu direito de exercer a advocacia com dignidade, liberdade e uniformidade. A audiência virtual é uma expressão da democracia entre as partes não-conflitantes do processo, de maneira que assim como a resolução do CNJ que autoriza a sua realização “não pode ser interpretada de forma apartada do que dispõe a CF e a Loman” [3], nos termos do voto do relator, há de se considerar, nessa equação, os direitos dos advogados, o Estatuto da OAB e o princípio da proibição de retrocesso.
Flávio Jacinto da Silva é sócio fundador do escritório Flávio Jacinto Advocacia e doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor).