Silva e Stuart: Entrada do Marco Legal dos Criptoativos

O Marco Legal dos Criptoativos, como é conhecida a Lei 14.478, de 2022, entra em vigor agora em 20 de junho, após a vacatio legis de 180 dias  período que o legislador estipula para adaptação antes da norma ter sua aplicação exigida. Como o próprio artigo 1º da Lei dispõe, trata-se de regulamentação no âmbito dos criptoativos, sobretudo as exchanges, ou casas de negociação de criptomoedas, locais em que é efetivada a troca de moeda fiduciária para criptoativos.

Criptomoedas é o nome genérico dessa tecnologia, baseada em blockchain, considerando a sua gama de tipos não só Bitcoin, Ethereum, mas lembrando que atualmente há o Tether, Ripple, USD Coin, Cardano, Solana, Litecoin, Bitcoin Cash, dentre inúmeras outras. Por se tratar de tecnologia desenvolvida com sua codificação aberta, seu conhecimento foi difundido, permitindo a multiplicação das moedas virtuais com distintas aplicações.

Conceitualmente, a criptomoeda “consiste em ativo virtual destinado a cumprir as funções de moeda  unidade de conta, meio de troca e reserva de valor — armazenados no sistema criado, que tem como características principais a descentralização e a criptografia” [1], com a transparência das transações, mas sem a identificação dos seus detentores, por isso o pseudoanonimato.

Qual a importância dessa nova tecnologia que inclusive está listada na Bolsa de Valores? Na prática não se trata somente de investimento, mas cada criptomoeda tem seu uso e aplicação. No caso do Bitcoin, além de ser a primeira criptomoeda criada com o sistema blockchain, consiste em reserva de valor e meio de pagamento; outra moeda, como o Ethereum, é também utilizada para criação de contratos inteligentes  conhecidos como smartcontracts  e para desenvolvimento de aplicativos, tais como browsers, carteiras digitais, conhecidas como wallets, jogos, bem como possibilitou a criação dos Non-fungible Tokens (NFTs) ou tokens não fungíveis, que podem ser utilizados como avatares para jogos/games ou apenas certificar a propriedade de obra de arte digital. Por sua vez, o Ripple tem seu foco na transferência internacional de dinheiro, isso para dar somente alguns exemplos.

E qual a necessidade de regulamentar uma tecnologia que foi desenhada em sua origem, justamente, para cortar os intermediários de qualquer relação?

Para tal resposta é interessante lembrar que o Bitcoin foi criado em 2008 pelo pseudônimo Satohi Nakamoto, desenvolvido na deep web, com o uso de criptografia para dar segurança às trocas de ponta a ponta, sem identificar nominalmente os usuários, mas deu segurança e transparência à transação em si, com o ideal de não existir intermediários, principalmente qualquer ingerência estatal [2], em continuidade ao movimento que prezava pela privacidade e ausência de ingerência estatal.

No entanto, um mercado que em poucos anos atingiu um volume de transações — ó no primeiro trimestre de 2023 — de R$45,8 bilhões, dificilmente passará ileso pelo olhar estatal, que se preocupa com ambientes sem qualquer regulamentação, consistindo em possível caminho para mal uso de tal tecnologia, podendo tornar-se ambiente de ilicitudes, desde mercados negros de vendas espúrias da mais variada ordem, bem como golpes, desde estelionatos até apropriações e furtos que impactam a sociedade, como pode se observar no famoso caso do Silk Road, ambiente virtual que transacionava qualquer coisa, e a moeda de troca era o Bitcoin.  

Diante da complexidade dessa novidade tecnológica do mundo das criptomoedas, a regulamentação estatal se tornou importante para não condenar a tecnologia. Tal regulamentação abrange desde boas práticas, como a política de conhecer seu cliente, até a tipificação de crimes.

No âmbito penal, foram cinco alterações pontuais. A primeira delas, no Código Penal, deu-se com a criação do tipo penal específico previsto no artigo 171-A, com o nome de “Fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros” ou a Fraude Cripto. O referido tipo vem após os diversos escândalos de pirâmides de criptomoedas, que dentre outros fatores fez o valor da criptomoeda sofrer substancial baixa, desvalorizando a tecnologia, período que passou a ser chamado de inverno cripto.

O tipo penal prevê como fato criminoso organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que são relacionadas a ativo virtual, valores mobiliários ou ativo financeiro que ao final traga qualquer vantagem ilícita, prejuízo para alguém, com a necessidade de o fato criminoso ser, necessariamente, realizado por meio de algum meio fraudulento.

O novo ilícito criminal não deixa de ser o estelionato, agora robustecido com a utilização de ativo virtual, sendo a fraude a essência do crime previsto no novo artigo 171-A. Qualquer ardil, artifício que resulte em vantagem ilícita com prejuízo alheio envolvendo criptomoedas, valores mobiliários ou ativos financeiros, em tese, pode estar como incurso na Fraude Cripto.

O legislador compreendeu que o fato criminoso se distingue das potenciais fraudes previstas no Código Penal, uma vez que elevou a pena, tanto a máxima quanto a mínima cominada. A sanção penal prevista no novo tipo do artigo 171-A pode ser considerada alta, uma vez que estabeleceu como patamares limites de 4 a 8 anos e multa. Com a pena mínima de quatro anos, não caberá acordo de não persecução penal, não comportando transação nem suspensão condicional do processo; e eventual condenação a pena superior a quatro anos pode ser iniciada no regime semiaberto.

Por exemplo, as denominadas “pirâmides” de criptomoedas, em que os criminosos atraem o público com a promessa de rendimentos monumentais, estarão tipificadas no novo artigo 171-A do Código Penal. Antes, as referidas pirâmides eram enquadradas no crime de estelionato, cuja pena prevista era de um ano a cinco anos e multa, e exige representação das vítimas em até seis meses do conhecimento da autoria.

Muito se discutiu se para fins penais, as fraudes em criptomoedas poderiam ser consideradas crimes contra o sistema financeiro, diante da magnitude do dano causado. Porém o artigo 1º da Lei 7.492/86 traz o conceito de instituição financeira para fins penais e existiam dúvidas se as exchanges poderiam ser equiparadas.

O legislador não perdeu a oportunidade de inserir as exchanges, que realizam negociação, custódia de ativos virtuais, como entidade equiparada a instituição financeira para fins da Lei 7.492/86. Com isso, as exchanges estão sujeitas a tipificação especial dos crimes contra o sistema financeiro, devendo ter a cautela com os fatos típicos: divulgação de informação falsa (artigo 3º [3] da Lei 7.492/86); gestão fraudulenta ou temerária (artigo 4º [4] da Lei 7.492/86); apropriar-se de bens e valores (artigo 5º [5] da Lei 7.492/86), dentre outros tipos específicos previstos na Lei.

A equiparação a instituição financeira traz a responsabilidade penal aos administradores, que não podem gerir ativos virtuais, sem uma estrutura própria e responsabilidade, uma vez que o bem jurídico tutelado, por equiparação, compreendeu ser o sistema financeiro, majorando as penas e com tipos penais específicos.

O Marco Legal das Criptomoedas, no âmbito penal, também trouxe mudança substancial na Lei de Lavagem de bens, direitos e valores  Lei 9.613/98. A primeira alteração foi a criação de uma causa de aumento de 1/3 a 2/3 se a lavagem de capitais ocorrer por meio da utilização de ativo virtual. Dada a complexidade da tecnologia e a exposição ao público, o emprego de criptomoeda é suficiente para a substancial causa de aumento diante do apenamento (artigo 1º, §4º, Lei de Lavagem).

O legislador também inovou e trouxe como “torre de vigia” ou gatekeeper as exchanges. Isso implica maior responsabilidade para as prestadoras de serviços de ativos virtuais nas informações sensíveis com seus clientes, obrigando à aplicação da política de conhecer quem é seu cliente (know your client), manter os registros dos clientes, adotar políticas de controle, conhecer a transação (know your transaction), bem como informar às autoridades qualquer operação suspeita.

Essa modificação traz luz às operações em criptomoedas, colocando a responsabilidade nos agentes que intermediam as transações, em claro sinal de que operação de criptomoeda não tem a função de esconder ilícitos, tampouco lavar bens e valores.

A necessidade de adoção de políticas de compliance para as exchanges ficou muito evidente com o caso de uma famosa exchange, detentora de relevante participação no mercado global, que possuía práticas flexíveis ou quase que ausência de boas práticas, sendo que para negociar criptoativos, bastava encaminhar virtualmente o nome, e-mail, data de nascimento, endereço, número de CPF, número de conta bancária e a ordem de negociação, volume que gostaria de transacionar, sem qualquer comprovante, com a facilidade de sacar em reais os valores que tivesse custodiado.

Com a inovação legislativa, as prestadoras de serviços de ativos virtuais que oferecerem o serviço no Brasil terão responsabilidades e obrigações de boas práticas impostas por lei, devendo manter os registros de todas as transações, bem como dos sujeitos que operam, e diante de suspeitas devem ser denunciados à autoridade competente.

A despeito da complexidade da tecnologia das criptomoedas, o Marco Legal dos Criptoativos surge como um sinal de que as criptomoedas não significam a porta de entrada para ilícitos, uma vez que expandiu e ganhou mercado em termos financeiros: as entidades fiscalizadoras estão atentas, o que beneficia a sociedade e a tecnologia no seu bom uso.

 


[3] “Artigo 3º Divulgar informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição financeira: Pena – Reclusão, de dois a seis anos, e multa”.

[4] “Artigo 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena – Reclusão, de três a 12 anos, e multa. Parágrafo único. Se a gestão é temerária: Pena – Reclusão, de dois a oito anos, e multa”.

[5] Artigo 5º Apropriar-se, quaisquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, de dinheiro, título, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio: Pena – Reclusão, de dois a seis anos, e multa”.

Marco Antonio Marques da Silva é sócio do Warde Advogados e professor titular de Processo Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Mariana Stuart é advogada criminalista no Warde Advogados e doutoranda e mestra em Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Consultor Júridico

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