Silva e Veras: Crime qualificado e responsabilidade penal objetiva

Após vultosos debates acadêmicos, está relativamente pacificado que o estudo do delito — entre nós percebido como ente sociojurídico  e dos fundamentos de responsabilidade, exige o exame da sociedade e de seus subsistemas. Nesses domínios, a responsabilização pela prática de um crime não se origina dedutivamente de concepções ontológicas a respeito do delito ou do delinquente, tampouco está rigorosamente afetada aos princípios ético-jurídicos que fundamentam, em tese, a aludida responsabilidade.

A questão é fulcral pois se insere como um dos elementos de pavimentação do caminho percorrido pelas ciências criminais no sentido de reconhecer que a responsabilidade delitiva, se podemos dizer assim, é obtida não a partir de um juízo de causalidade, decorre de um juízo de imputação [1]. No campo das ciências penais falamos em criminalização. 

Se o fundamento da responsabilidade criminal não repousa em elementos pré-jurídicos, é necessário que os processos de atribuição de culpa sejam pautados por critérios estritamente racionais. Essa necessidade foi destacada com bastante veemência antes ainda da superação da ideia de que o livre arbítrio é o fundamento da responsabilidade penal.

Atualmente, a racionalidade do sistema punitivo está vinculada, dentre outros aspectos, à observância de princípios ético-jurídicos de calibração constitucional inspirados na matriz de pensamento garantista. Para os fins propostos, merece destaque o sexto axioma do garantismo penal (nulla actio sine culpa) que consagra a responsabilidade subjetiva, abordada timidamente pela Constituição em seu artigo 5º, inciso LVII, e com maior destaque nos artigos 18 e 19 do Código Penal.

Convém registrar que houve momentos históricos em que os castigos decorriam da singela implementação de um resultado censurado. Nas palavras de Toledo, o direito penal em suas primícias foi utilizado contra humanos, animais, e objetos, desconsiderando-se alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato causado e o agente causador [2], até que fossem estabelecidas as distinções entre o fato evitável e o inevitável, o previsível e o imprevisível, o voluntário e o involuntário.

Para a doutrina finalista, o dolo e a culpa integram o conceito de ação ou conduta. O dolo abrange um aspecto intelectual (previsão do resultado) e outro volitivo, que não se limita à vontade de realizar o movimento corporal causador do resultado (vontade de enervação muscular [3]), deve orientar-se efetivamente para a implementação de um fim não admitido pelo Direito.

Importa ressaltar os elementos do crime culposo, quais sejam: tipicidade, conduta humana voluntária, inobservância de um dever de cuidado objetivo, resultado indesejado e previsibilidade objetiva desse resultado. A culpa, tal qual o dolo, exige o exame da conduta humana voluntária numa perspectiva finalista, ressalvando-se que no tipo culposo a ação proibida não se individualiza pelo fim em si mesmo e sim pela forma de selecionar mentalmente os meios e de dirigir a causalidade para a obtenção deste fim [4]

É notório que a responsabilidade subjetiva está escorada na direção voluntária da causalidade e não especificamente na implementação de um resultado. A propósito, tanto nos crimes dolosos como nos culposos o resultado é um mero delimitador da tipicidade objetiva. Não por outra razão o Código Penal preceitua o seguinte: “pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente” (artigo 19).

Apesar disso, são muitos os casos em que o resultado atua como o efetivo fundamento de responsabilidade, em face da ausência de reflexão mais amiúde pelo legislador ou pelo intérprete a respeito dos conceitos de “voluntariedade” e de “previsibilidade”. Esses casos consagram sub-repticiamente hipóteses de responsabilização objetiva.

Dentre as diversas hipóteses de consagração da responsabilidade objetiva em nosso ordenamento jurídico-penal, merece destaque a qualificação pelo resultado que, nas palavras de Jeschek e Weigand [5], não se compatibiliza com o princípio da culpabilidade, pois as penas atribuídas aos delitos assim estruturados ultrapassam consideravelmente, ao menos em regra, os patamares impostos ao crime culposo. 

Ademais, a imputação por qualificação do resultado nem sempre se restringe a valorar desproporcionalmente os fins alcançados a título de culpa, pois pode também atribuir verdadeira responsabilização por fatos alheios à previsibilidade objetiva e ao dever de cuidado, situação que facilmente se confunde com os reflexos do odioso princípio do direito canônico versari in re ilícita [6]

Como exemplo, temos o crime de abandono, que aponta para uma espécie de causalidade decorrente, não raras as vezes, atribuindo-se responsabilidade ao sujeito que, orientado pelo dolo de perigo, exaure sua conduta no abandono, dele não se podendo requerer sequência lógico-normativa como na maioria dos crimes preterdolosos [7].

Certamente, pode-se verificar a existência de vínculo causal entre o ato de abandonar e o fim a que se conduz a criança que, em virtude do abandono, vem a ser atingida por um raio ou abalroada por rebanho de bovinos. A análise em questão, no entanto, não requer o exame da previsibilidade desses resultados. Dito de outro modo, nesses casos particulares parece não ser considerada a existência de alguma ligação, além da simples causalidade física, entre o fato causado e o agente causador.

Existem tipos penais classificados pela doutrina como crimes de concurso necessário, merecedor de destaque dentre eles o delito de rixa, que requer como condição de tipicidade a pluralidade de agentes. O tipo penal em questão é bastante representativo da problemática sobre a qual nos debruçamos, por permitir a atribuição do resultado morte ou lesão corporal de natureza grave, ainda quando não desejado, a todos os contendedores, incluída a própria vítima.

Nesses casos, para além de se verificar o irresponsável alargamento do conceito de previsibilidade objetiva, é fácil perceber que a implementação do resultado proibido, ou mesmo a possibilidade de evitação desse resultado, não costuma estar compreendida no âmbito de decisão de todos os agentes. Entre nós, essa circunstância poderia eventualmente infirmar a presença do nexo causal entre a conduta de um determinado contendedor e o resultado não desejado ou, mais importante, afastar a qualificação pelo resultado em virtude de não estar evidenciada a direção voluntária da causalidade para alcançar um fim objetivamente previsível, embora não desejado. 

Existem ainda problemas de ordem preceito-secundária que erigem não propriamente a responsabilidade criminal objetiva, mas um peculiar modo de responsabilização consubstanciado pelo desajustamento entre a proteção deficiente e a proteção em excesso do bem jurídico. É o caso do cognominado crime de “latrocínio”, senão vejamos:  A e B decidem utilizar de violência ou grave ameaça para subtrair coisa alheia móvel e, em decorrência, respectivamente, de uma ação dolosa e outra culposa, produzem o resultado morte. Nessa situação, tanto um como o outro terá contra si cominada a pena abstrata de 20 a 30 anos de reclusão, ainda que o desvalor da ação de B seja em muito inferior ao desvalor da ação de A. Perceba-se que o gradiente de responsabilidade é determinado em razão do resultado e não da vontade.

Podemos mencionar também o instituto da cooperação dolosamente distinta, embora não se trate particularmente de um delito qualificado pelo resultado. Pois bem. A despeito de requerer o aludido instituto jurídico-penal para a majoração da pena, prevista na última figura do enunciado normativo, a suposta previsibilidade do resultado pelo participe, possibilita a responsabilização a título de culpa em crimes que admitem tão só a modalidade dolosa, jamais culposa. Como assinalado, não se deve olvidar que previsibilidade do resultado no tipo doloso funciona como elemento intelectual e, na ausência do aspecto volitivo, consubstanciado no desejo de produzir o fim objeto de censura, é insuficiente para a caracterização do dolo.

Trazemos à baila o clássico exemplo do indivíduo que, conjuntamente com o seu comparsa, deseja cometer o delito de furto em determinada residência, fato que, pelas circunstâncias da empreitada, progride para o roubo impróprio com resultado morte levado a efeito pelo comparsa. Nessa hipótese, por ser a progressão “previsível”, adota-se um critério subjetivo de imputação penal culposa sobre o delito de furto (aumento até a metade), que é um crime essencialmente doloso.

Poderíamos ainda destacar outras situações prefiguradas pelo ordenamento pátrio. A lesão corporal que resulta incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias condiciona a responsabilização pelo crime mais grave a áleas muitas vezes estranhas ao campo de previsibilidade do agente.

O concurso formal próprio permite a responsabilização do sujeito ativo por uma única conduta com resultados múltiplos, sem espaço para reflexões mais profundas a respeito da previsibilidade desses resultados. Não menos importante, o exame dosimétrico das sanções preconiza a análise das consequências do crime como possível elemento para a exasperação da pena na primeira fase, ainda que essas consequências rotineiramente estejam fora do campo de previsibilidade do condenado.

A doutrina apresenta algumas soluções. Preconiza-se, dentre o mais, a substituição da qualificação pelo resultado por um sistema fundado no concurso de delitos, em tese mais benéfico réu [8]. Entre nós, é certo que essas soluções consubstanciam mera abordagem paliativa do problema, além de não falarem em favor da racionalidade do sistema normativo.

Observada a proposta destacadamente expositiva do presente texto, limitamo-nos a expressar que o básico basta: exigir do intérprete que busque na norma os seus fundamentos de racionalidade e os critérios teleológico-objetivos de interpretação, pois conduzirão necessariamente à responsabilidade penal subjetiva, princípio ético-jurídico de inspiração constitucional [9]. Essa abordagem, em concreto, possibilitará ao magistrado, por exemplo, afastar a qualificadora nos casos em que evidenciada a ausência de previsibilidade objetiva ou de condução voluntária da causalidade. 

 


[1] Talqualmente uma lei natural, também uma proposição jurídica liga entre si dois elementos. Porém, a ligação que se exprime na proposição jurídica tem um significado completamente diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, a da causalidade. Sem dúvida alguma que o crime não é ligado à pena, o delito civil à execução forçada, a doença contagiosa ao internamento do doente como uma causa é ligada ao seu efeito”. Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 55.

[2] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 218.

[3] ZAFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito Penal Brasileiro: parte geral. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 421-424.

[4] ZAFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Direito Penal Brasileiro: parte geral. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 509.

[5] JESCHEK, Hans-Heinrich; Weigand, Thomas. Tratado de Derecho penal…cit p.615

[6] SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal…cit., p.197

[7] BITENCOURT, Cezar. Tratado de Direito Penal, parte geral. p 860.

[8] TAVARES, Juarez. Direito Penal da Negligência…cit, p 430.          

[9] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3 ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, cap. IV da Parte II,

Thales Sousa da Silva é assessor judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (matéria cível), servidor efetivo do TJ-DF, especialista em Direito Penal e Processual Penal, autor no Canal de Ciências Criminais e no Internacional Center for Criminal Studies (ICC), colaborador no Empório do Direito e membro do Clube Metajurídico.

Consultor Júridico

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