Silvio Euzébio: Justiça restaurativa, que bobagem?

Objeto de regulamentação de Política Judiciária pela Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nº 225, de 31/5/2016, o programa chamado de Justiça Restaurativa passou a ser implementado pelos Tribunais de Justiça, copiada por Ministérios Públicos, além de ser tema recorrente de cursos e estudos diversos.

O referido ato normativo traz uma macrodefinição do tema:

“Artigo 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado na seguinte forma: (….)“.

Vez por outra buscam aplicá-la ignorando princípios intrínsecos ou estruturantes que caracterizam sua própria instituição como a oitiva e consensualidade das partes, mas são tropeços corrigidos pelo próprio Judiciário [1].

Deixando de lado os discursos empolgados e empolgantes sobre sua importância e os bons propósitos, como está, de fato, autuando a Justiça ou a prática restaurativa? Quais são os dados reais acerca da sua eficácia e eficiência? O instituto está atingindo os resultados propostos e o que vem produzindo na prática? Em quais e quantos processos oficiou? Qual o percentual de êxito? Quais as eventuais causas para não obtenção de resultados?

É importante uma verificação cuidadosa e imparcial do funcionamento Justiça e da prática restaurativa por uma auditoria externa com levantamento não apenas do custo financeiro dos ativos empregados, pessoal  servidores e cargos ou funções de confiança, etc; e material  dependências, equipamentos, cursos, etc; mas da própria resolutividade dos processos, apresentado indicadores da sua atuação.

Cumpre salientar que dentre suas linhas programáticas da Instituição podemos, por exemplo, destacar seu caráter universal e de suporte de uma base de dados, conforme o artigo 3º, I e VII, da citada Resolução nº 225/16, do CNJ [2]:

“Artigo 3º. Compete ao CNJ organizar programa com o objetivo de promover ações de incentivo à Justiça Restaurativa, pautado pelas seguintes linhas programáticas:

I – caráter universal, proporcionando acesso a procedimentos restaurativos a todos os usuários do Poder Judiciário que tenham interesse em resolver seus conflitos por abordagens restaurativas;

(…)

VII – caráter de suporte, prevendo mecanismos de monitoramento, pesquisa e avaliação, incluindo a construção de uma base de dados.”

Por sua vez, no âmbito do Ministério Público o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) também disciplinou a “prática restaurativa” no contexto da Política Nacional de Incentivo à Autocomposição, enquanto modalidade de prática autocompositiva, conforme a Resolução nº 118/2014 [3]:

“Artigo 13. As práticas restaurativas são recomendadas nas situações para as quais seja viável a busca da reparação dos efeitos da infração por intermédio da harmonização entre o (s) seu (s) autor (es) e a (s) vítima (s), com o objetivo de restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos.

Artigo 14. Nas práticas restaurativas desenvolvidas pelo Ministério Público, o infrator, a vítima e quaisquer outras pessoas ou setores, públicos ou privados, da comunidade afetada, com a ajuda de um facilitador, participam conjuntamente de encontros, visando à formulação de um plano restaurativo para a reparação ou minoração do dano, a reintegração do infrator e a harmonização social.”

Nesse sentido, em caráter complementar, o CNMP noticia a edição de protocolo para regulamentação e implantação da autocomposição determinando a denominação das suas unidades como “Núcleo Permanente de Incentivo à Autocomposição” (Nupia)” [4].

A Justiça Restaurativa ou a Prática Restaurativa está mesmo sendo estendida e aplicada a todos os usuários do Poder Judiciário? Chegará aos feitos da Fazenda Pública, Auditoria Militar? Qual o seu campo de atuação enquanto Justiça ou Prática? Os dados estão sendo examinados e são conferidos mediante um critério realmente científico? Não é suficiente louvar o tema e as questões da Justiça e da Prática Restaurativa em trabalhos e teses acadêmicas em razão da sua importância preconcebida, é preciso comprovação de resultados!

Seria importante, em se tratando de Justiça ou Prática Restaurativa, o estabelecimento de parâmetros como:

a) padrões dos casos a serem encaminhados, para evitar subjetividades;

b) prazos de sua atuação, para evitar delongas e perda de credibilidade do Judiciário;

c) métodos de atuação, para evitar confusões entre a prestação jurisdicional com atividade terapêutica, que não é pertinente ao Judiciário;

d) uma rígida contabilização dos dados acerca dos casos encaminhados e sua resolutividade para monitoramento desta “ferramenta” de Política Judiciária e Ministerial; e

e) providências para garantia dos direitos da vítima, bem como sobre as consequências da sua participação no procedimento da Justiça ou Prática Restaurativa.

Por fim, a chamada “Justiça” ou “Prática Restaurativa” não pode ser tratada como um procedimento terapêutico, dogmático-ideológico ou místico, mesmo apresentando as melhores intenções, pois, enquanto instrumento de política pública, utiliza recursos do contribuinte, e deve prestar contas para aferição da sua continuidade, aperfeiçoamento, ou remodelação, conforme os resultados reais ou concretos apresentados.

Por outro lado, a vítima não pode ser esquecida. Diante da legislação [5] e da sua interpretação [6], a título de exemplo, não é possível imaginar uma vítima de violência doméstica ou de qualquer outro delito, participando de um “círculo de paz ou restaurativo”, sem assistência jurídica no momento, sendo “aconselhada”, no procedimento de “harmonização dos relacionamentos”, a pedir e aceitar desculpas ao ex-companheiro ou terceiro que a agrediu física ou moralmente, ou assim procedeu contra seus filhos, inclusive diante do risco que representa.

A proteção da dignidade constitui o fundamento contra a revitimização e também do direito à assistência. Inclusive, nos casos de mediação ou conciliação, é fundamental o chamado dos representantes das partes para acompanhar o diálogo.

Portanto, é preciso garantir à vítima o efetivo direito de assistência e orientação sobre seus Direitos Fundamentais, inclusive o direito de atendimento por membro do Ministério Público antes da audiência, conforme artigo 1º, VI, da Recomendação CN nº 05, editada pela Corregedoria Nacional, Órgão do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), de 07/08/2023 [7], como já assinalamos aqui na Conjur em Direito da vítima à entrevista com o Ministério Público [8].

Causa espanto a realização de um “procedimento judiciário” ou “administrativo” justamente sem a prévia oitiva dos interessados acerca do seu encaminhamento, aceitação da participação e esclarecimento das suas consequências; sem a participação dos Advogados das partes interessadas, e do Ministério Público, nos casos judiciais em que oficia obrigatoriamente; e sem a compreensão que “prestação jurisdicional” não se confunde com “sessão de terapia”.

Em conclusão, a aplicação da Justiça Restaurativa ou da Prática Restaurativa, nas unidades semelhantes dos demais órgãos, deve seguir padrões definidos, em consonância com demais instrumentos da ordem jurídica, e ser avaliada por critérios racionais ou científicos [9], com demonstração transparente dos seus resultados efetivos considerando a totalidade de processos em tramitação, e dos custos. Assim, poderemos responder à pergunta constante do título.

 

 


[1] EMENTA CORREIÇÃO PARCIAL  INCONFORMISMO DO MINISTÉRIO PÚBLICO  ATO INFRACIONAL ANÁLOGO À CONTRAVENÇÃO PENAL DE PERTURBAÇÃO DE SOSSEGO PÚBLICO  REMESSA DOS AUTOS, DE OFÍCIO, PARA A JUSTIÇA RESTAURATIVA, COM BASE NA RESOLUÇÃO Nº 225/2016 — ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS  OCORRÊNCIA  NECESSIDADE DE PRÉVIA OITIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, POR SER ESTE O TITULAR DA REPRESENTAÇÃO POR ATO INFRACIONAL  REFORMA DA DECISÃO  RECURSO CONHECIDO E PROVIDO  DECISÃO UNÂNIME. (TJSE, Câmara Criminal, Correição Parcial Criminal, Processo nº 202200338201, Acórdão 20232505, relator desembargador Gilson Félix dos Santos, j. em 10/02/2023.)

[5] Por todos os dispositivos da Lei nº11.340/2006, vide:

“Artigo 10-A. É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar (…)

III – não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada. (Incluído pela Lei nº 13.505, de 2017)

Artigo 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no artigo 19 desta Lei.

Artigo 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado”.

Silvio Roberto Matos Euzébio é promotor de Justiça do Ministério Público de Sergipe, titular da 2ª Promotoria de Justiça da Infância e Adolescência de Aracaju, pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Sergipe, ex-juiz de Direito e autor de artigos jurídicos.

Consultor Júridico

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