O Supremo Tribunal Federal vai retomar, a partir desta sexta-feira (15/9), a análise de um pedido de Habeas Corpus que visa definir se a identificação de atitude suspeita pela polícia basta para permitir a invasão da residência de uma pessoa sem autorização judicial. O julgamento virtual tem término previsto para 22 de setembro.
O caso trata de um episódio em que policiais em patrulhamento viram um sujeito correr para dentro de casa ao avistar a viatura. Diante dessa atitude suspeita, resolveram desembarcar e invadir a residência, onde encontraram 247 g de maconha.
Há conflito de versões. Os policiais dizem que o suspeito autorizou a entrada deles, confessou que vendia drogas para sustentar a filha e que estava com o rosto machucado por ter brigado com um usuário no dia anterior. Por isso, levaram-no ao pronto-socorro antes da autuação.
O suspeito diz que estava em casa quando policiais tocaram a campainha e anunciaram que havia denúncia de crime naquela residência, que entraram e revistaram em busca de drogas, que os agentes o agrediram e que colocaram uma arma em sua boca. Alegou ser mero usuário.
A denúncia foi recebida por tráfico de drogas, o que levou a defesa a ajuizar seguidos pedidos de Habeas Corpus para contestar a validade das provas. Afirma que não houve denúncia anônima, investigação em curso, ato de mercancia ou indícios que autorizassem a invasão do domicílio.
No Supremo, é a primeira vez que o Plenário se debruça sobre o tema. O resultado, embora não vinculante, vai oferecer ao Superior Tribunal de Justiça e às instâncias ordinárias uma indicação de como o tema deve ser tratado. O julgamento começou em março e já teve dois pedidos de vista.
Relator, o ministro Luiz Edson Fachin votou por reconhecer a ilicitude das provas. Ele defendeu que a atitude suspeita, enquanto valoração subjetiva do comportamento de uma pessoa, não oferece comprovação suficiente de que há fundadas razões da ocorrência de um crime.
A posição foi referendada em voto-vista do ministro Luis Roberto Barroso, para quem o simples ato de correr para dentro de casa, sem outros elementos que indiquem a prática criminosa, não configura fundada suspeita. O caso será retomado com voto do ministro Alexandre de Moraes.
Cenário complexo
Até o momento, esses votos confirmam a posição já consolidada nas turmas criminais do STJ. A corte tem jurisprudência vasta a indicar que nervosismo e o ato de correr para dentro de casa não autorizam a invasão por policiais sem autorização judicial.
Quando o caso apreciado pelo STF passou pelo STJ, na 5ª Turma, em 2019, a jurisprudência era outra: essas violações eram frequentemente toleradas pelo Judiciário, especialmente diante do sucesso das ações policiais na apreensão de drogas, entendido como crime permanente.
A possibilidade superar a inviolabilidade do domicílio garantida pela Constituição Federal sem autorização judicial foi admitida pelo STF em 2015, quando fixou a tese de que é preciso fundadas razões devidamente justificadas que indiquem que há situação de flagrante delito.
A guinada jurisprudencial seguinte foi dada pelo STJ em 2021, quando passou a exigir a comprovação de que o morador autorizou a entrada dos policiais durante a diligência. A partir daí, essas violações policiais no combate a crime passaram a ser tratadas com mais rigor.
Para o Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores, é esse avanço no respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos — especialmente aqueles que vivem em áreas periféricas e marginalizadas — que está em jogo no STF.
O grupo, que pediu ingresso na ação como amicus curiae (amigo da corte), aponta que validar ações policiais baseadas em fundada suspeita reforça o processo de criminalização secundária, identificado por Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, sobre a população mais vulnerável.
A criminalização primária é a escolha política de quais atos serão tornados crimes pela legislação. Já a secundária diz respeito à forma de atuação de órgãos como as forças policiais. Assim, ao focar patrulhamento ostensivo em áreas consideradas de alta criminalidade, há mais prisões de pessoas pobres por atos banais como correr para dentro de casa.
No caso em julgamento, diante da suspeita de que alguém poderia cometer crime no local, caberia à polícia averiguar melhor, promover diligências e, se tanto, pedir autorização judicial para realizar busca e apreensão.
Sexto sentido policial
Ao votar pela nulidade das provas, o ministro Edson Fachin defende a ideia de que o estado de flagrância que autorizaria a ação policial deve se relacionar com a visibilidade do delito. Ou seja, alguma circunstância que possa indicar de forma palpável a ocorrência do crime.
Com isso, o chamado “sexto sentido” policial deixa de ser suficiente. E a identificação da tal atitude suspeita, por se basear em convicção íntima do agente, não pode ser entendida como motivação para caracterizar o flagrante delito.
“Não se está a dizer que desconfianças, intuições, suspeitas, muitas vezes decorrentes da experiência e recorrência de atividades vivenciadas no dia a dia policial devam ser simplesmente ignoradas. Tais circunstâncias podem justificar o início de atos de investigação”, aponta o relator.
O voto traz exemplos de situações que poderiam caracterizar flagrante delito. Entre eles está o ruído de tiros, a visualização de drogas ou instrumentos que indiquem tráfico e a percepção de odor característico de entorpecentes. Esses temas, inclusive, foram enfrentados com rigor pelo STJ.
Como mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico, a corte tem avaliado a credibilidade das invasões justificadas pelo cheiro de drogas sentido de fora da residência. E tem tratado da mesma forma os flagrantes feitos por frestas no portão, janelas abertas ou por cima do muro.
Inovação judicial
A retomada do julgamento com voto-vista do ministro Alexandre de Moraes é relevante porque ele tem sido um crítico contumaz da jurisprudência construída pelo STJ sobre o tema. Recentemente, ele validou uma invasão de domicílio feita a partir de denúncia anônima e fuga do suspeito para dentro da casa.
As provas haviam sido anuladas pelo STJ. Para o ministro Alexandre, o STJ acrescentou requisitos que não existem na Constituição Federal, ao exigir diligências investigatórias prévias para legitimar a ação dos policiais. Afirmou ainda que, ao fazê-lo, o STJ “tornou conflituosa a relação entre o juiz e o legislador”.
“Incabível, portanto, ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a imposição de providências administrativas como medida obrigatória para os casos de busca domiciliar, sob argumento de serem necessárias para evitar eventuais abusos, além de suspeitas e dúvidas sobre a legalidade da diligência”, concluiu.
A posição foi a mesma quando, em 2021, derrubou uma ordem em Habeas Corpus na qual a 6ª Turma do STJ dava prazo de um ano para as polícias aparelhassem seus agentes com câmeras, de modo a comprovar a validade buscas domiciliares e evitar abusos.
Igualmente, entendeu que o STJ não observou os preceitos básicosque consagram a independência e harmonia entre os Poderes.
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HC 169.788