Ao negar provimento ao Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 227.629 de São Paulo, o ministro Roberto Barroso fez constar em sua fundamentação que “o entendimento desta Corte (STF) é no sentido de que ‘o art. 226 do Código de Processo Penal não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível’ (RHC 125.026-AgR, Relª. Minª. Rosa Weber)”.
Veja-se que o voto cita precedente de 2015, da 1ª Turma, vencido o ministro Marco Aurélio.
Para comentar a decisão do ministro, faz-se necessário transcrever o caput do artigo 226, do Código de Processo Penal:
“Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: (…)”
Verifica-se que o artigo 226 do CPP é imperativo. A língua portuguesa também é um bom auxílio para a hermenêutica. O artigo determina a forma como se deve proceder quando houver a necessidade de fazer-se o reconhecimento pessoal. Diferentemente do que decidiu o ministro Barroso, não se trata de uma recomendação. Trata-se claramente de uma determinação. Logo, se o legislador não previu qualquer exceção, por evidente que não cabe ao interprete fazê-lo.
O artigo 226 do CPP é uma garantia do CPP recepcionada pelo artigo 5. da Constituição. Proteção do cidadão contra o poder do Estado. Lei e Constituição não recomendam. Não aconselham. Determinam.
Se admitirmos que se trata de uma recomendação, poder-se-á dizer que se trata de um conselho, como se a pretensão do legislador fosse a seguinte: veja-bem, nobre autoridade, eu recomendo que em casos de reconhecimento de pessoas, o procedimento deve ser este; mas se não for, não tem problema.
A decisão do ministro Barroso, para além de conferir uma interpretação que constrói um novo texto, representa um retrocesso em face daquilo que restou decidido pela 6ª Turma do STJ no julgamento do RHC 139.037/SP, de relatoria do ministro Rogério Schietti, no qual restou assentado que “A Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC, realizado em 27/10/2020, propôs nova interpretação ao art. 226 do CPP, a fim de superar o entendimento, até então vigente, de que o disposto no referido artigo constituiria “mera recomendação” e, como tal, não ensejaria nulidade da prova eventual descumprimento dos requisitos formais ali previstos. Na ocasião, foram apresentadas as seguintes conclusões: (…).” (d/n)
O artigo 226 do CPP é um “dever-ser”, porquanto determina o modo como o reconhecimento de pessoas “deve ser” realizado. E quando se diz que a interpretação do ministro Barroso esgota o sentido da norma, é porque em se tratando de uma mera recomendação (como ele diz!), o seu descumprimento não gera qualquer consequência. Aqui uma pitada de Hans Kelsen seria fundamental: norma jurídica é o sentido de um ato de vontade dirigido à conduta de outrem. Sem sanção, não há norma. Se não determina, não é norma jurídica no sentido coativo do direito penal-processual penal.
Logo, qual o sentido de uma norma que determina uma forma que “deve ser” observada (portanto, um “dever-ser”), mas que não gera qualquer consequência em caso de inobservância desta forma? Se é assim como diz o Ministro Barroso, a pergunta que fica é: qual o sentido da existência do artigo 226, do CPP? Com as devidas vênias o ministro Barroso está equivocado. No Processo Penal, forma é garantia e garantias devem ser respeitadas. Aliás, garantias devem ser garantidas, sobretudo pelo Judiciário. Em um Estado Democrático de Direito, o Judiciário exerce função de garante. Simples assim.
Mas talvez a questão mais grave nisso tudo esteja no fato de que o ministro Barroso legisla ao dizer que o artigo 226, do CPP, é mera recomendação. Produz lei nova. O que não é novidade nos dias de hoje, em que qualquer decisão se transforma em tese — com nítida intenção de legislar para o futuro. E todos nós sabemos o quanto é prejudicial para um Estado Democrático de Direito quando o Judiciário, ao interpretar o direito, cria direito. Vale rememorar, neste particular, o entendimento que se firmou no julgamento do HC 126.292 e o quanto foram importantes as decisões das ADCs 43, 44 e 54.
Se o nosso sistema está ancorado (ainda) no civil law, não se pode admitir que o judiciário aplique o direito desaplicando-o, porque a observância da legalidade pelo Poder Judiciário traduz-se em segurança jurídica, já que está no ordenamento jurídico (na legalidade) a previsão de todos os direitos e deveres inerentes ao Estado e aos cidadãos. Não é por outro motivo que o Poder Judiciário diz o direito (jurisdictio) e não cria o direito (tarefa que incumbe ao legislativo).
Nesse sentido, há vasta literatura preocupada com esse fenômeno da indevida criação do direito (Jacinto Coutinho e Marcio Berti [1]; Lenio Streck [2]; além de textos e obras de autores como Marcelo Cattoni, Georges Abboud, Clarissa Tassinari e todos os que escrevem preocupados com o fenômeno do ativismo judicial e diálogos institucionais).
Obviamente que não se desconhece que toda interpretação produz sentidos. Sentidos não são simplesmente reproduzidos. Há sempre a relação texto e norma, em que a norma é o produto da interpretação do texto (Müller). Porém, a norma não é um texto apartado, novo, descolado do texto. O sentido atribuído ao texto não pode ser um sentido que contrarie ou esvazie o texto.
Tem-se, portanto, que o artigo 226, do CPP, não é mera recomendação; não é um mero conselho que, não observado, gera consequência alguma; ao contrário, trata-se de uma norma imperativa que determina um “deve-ser” naquilo que diz com a forma como o procedimento de reconhecimento de pessoas “deve ser” feito, sendo que a sua inobservância gera a nulidade do reconhecimento, porquanto trata-se de uma garantia processual.
Vem aqui uma questão final: o artigo 226 é produto original do CPP. Veja-se que já na época havia essa preocupação. Há mais de 20 anos a 5ª Câmara Criminal do TJ-RS já dava plena eficácia ao artigo 226 (Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif, Luis Gonzaga Moura e Lenio Streck). Alguém já se deu conta da importância desse dispositivo? No meio de um Código originalmente inquisitivo, com prisão obrigatória, prisão administrativa e poucas garantias, ali já aparecia essa garantia do reconhecimento. Surpreende, pois, que em pleno Estado Democrático de Direito, em que estamos discutindo o juiz das garantias e com tantas discussões sobre garantismo, o STF tenha manifestação desidratando um dispositivo garantístico escondido lá no meio do CPP dos anos 40 do século XX.
Aliás, é nessa linha que vai o correto voto do ministro Gilmar Mendes no HC 206.846 SP, falando da redação original do CPP de 1941, sem modificações por leis posteriores: “Sem dúvidas, há o que aprimorar na legislação atual, como a adoção de um método de alinhamento justo, o qual pressupõe outras medidas além daquelas determinadas na octogenária redação do art. 226”. Nesse julgamento, a 2ª Turma, por maioria, sob a presidência do ministro Nunes Marques, deu provimento ao recurso ordinário em habeas corpus para absolver o recorrente, ante o reconhecimento da nulidade do reconhecimento pessoal realizado e a ausência de provas independentes de autoria, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e André Mendonça.
Marcio Berti é advogado, professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Unipar Cascavel, mestre e doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.