Em 2014, a promulgação do Marco Civil da Internet foi comemorada no Brasil e, também, no exterior, sendo considerada internacionalmente uma legislação avançada e equilibrada. No entanto, uma de suas principais novidades é, atualmente, objeto de intenso debate público. A divergência recai sobre o sistema de responsabilidade dos provedores de aplicações de internet (artigo 19, MCI), que fortalece a liberdade de expressão e evita a censura.
Segundo o MCI, as plataformas digitais somente podem ser responsabilizadas civilmente por conteúdo gerados por terceiros, após ordem judicial, caso não tomem as providências devidas. Correto. Porém, dizem, agora, que esse modelo está ultrapassado. Esse é um argumento absolutamente frágil: a força de uma lei não se mede por sua idade e, sim, por sua capacidade de alcançar o fim desejado: a preservação da liberdade de expressão sem bulir com a democracia. Já disse um psicanalista, que é preciso conter o gozo da sociedade sem ser tirânico. É o retrato do Marco Civil da Internet.
Pois bem. Esse assunto voltou à pauta nos três poderes: no Executivo, uma proposta como reação ao fatídico 8 de janeiro; no Congresso, o PL 2630/2020, apelidado de “PL das Fake News”; no Supremo, a atenção se volta para o Tema 987. No próximo dia 28, ocorrerá audiência pública relacionada a dois casos que discutem a (in)constitucionalidade do artigo 19 do MCI.
O debate assumiu novos contornos com os ataques golpistas de 8 de janeiro. Eis o famoso clamor social (agora por mais regulação!). Aliás, recentemente houve um seminário, na FGV, do qual participaram autoridades da República.
Ali, os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, do STF, sustentaram a necessidade da revisão do modelo atual por um regime de autorregulação, em que as plataformas são responsabilizadas caso não cumpram com deveres procedimentais na análise de conteúdo. Todavia, corretamente, não falam em inconstitucionalidade ou “correção” da lei via judicial.
O artigo 19 do MCI é constitucional, porque é uma norma que materializa ao máximo a liberdade de expressão, inibindo a censura, sem impedir a satisfação de outros direitos.
Podemos discutir se o modelo atual se revela o mais adequado. Podemos, inclusive, compará-lo com os sistemas vigentes em outros países. Também podemos criticá-lo porque, ao fim, simplesmente preferiríamos um regime diverso. Esses juízos, todavia, não ultrapassam o campo da conveniência e do que cada um acha moralmente. E é exatamente por isso que não compete ao Supremo Tribunal dizer qual é o melhor modelo.
O Poder Judiciário já tem suas tarefas: solucionar os conflitos — sobretudo quando contemplam a possível restrição de direitos fundamentais —, estabelecendo a responsabilidade civil das plataformas digitais quando descumprem ordem judicial.
O regime de responsabilidade eleito pelo legislador, no artigo 19 do MIC, reforça o papel fiador dos direitos e garantias fundamentais, conferido aos tribunais pelo constituinte de 1987-1988. À autoridade judiciária — e não ao particular — compete examinar a ilicitude em face de eventuais excessos praticados na internet, sob o álibi da liberdade de expressão.
Para quem não sabe, dados divulgados pelas plataformas demonstram que o modelo atual de responsabilização não limita a autorregulação do conteúdo. Atualmente, 99,7% das contas falsas que são removidas pela Meta são excluídas antes mesmo de serem denunciadas. No YouTube, durante o terceiro trimestre de 2022, mais de 5 milhões de vídeos foram removidos por seus próprios mecanismos de controle.
No Brasil, a escolha legislativa foi por uma sistemática oposta à desjuridicização que poderia representar a escolha de um modelo diverso, tal qual o procedimento de notice-and-takedown, por meio do qual se desloca a deliberação a respeito desse tipo de conflito — que pressupõe um exame técnico e individualizado envolvendo preceitos fundamentais — à esfera particular.
O MCI nada tem de inconstitucional, insisto. Só se fosse uma “inconstitucionalidade por inconveniência”. Nem tudo é inconstitucional em um ordenamento. Criou-se no Brasil uma cultura que chamo de pan-inconstitucionalismo, pelo qual a Constituição é vista como um instrumento retórico para retirar do ordenamento leis que não agradam ao intérprete. Ora — e se trata de um exemplo metafórico — construir um ofurô na sacada do apartamento pode apenas ferir (ou não) o regulamento do condomínio ou o código de posturas da sua cidade. Não corra ao STF por isso. Inconstitucionalidade exige parametricidade. Tem de bater na trave. Não é o caso. Nem de longe.
Numa palavra: recentemente sobrevivemos a um ataque à democracia. E aqui estamos. Por vezes esquecemos o copo quase cheio e preferimos o copo meio vazio. Talvez tenhamos de pensar se, ao invés de culpar — e eis o “clamor social” — as plataformas digitais, possamos nelas reconhecer os avanços das próprias práticas democráticas. Usando a linguagem do futebol, o time da democracia vem vencendo os seus adversários. Não culpemos o mensageiro, pois.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor, doutor em Direito, autor de Hermenêutica Jurídica E(m) Crise e Verdade e Consenso.