Superação da interpretação restritiva do STF e a Defensoria

Desenvolvido com base em diferentes concepções filosóficas e experiências históricas diversas, o controle judicial de constitucionalidade pode ser exercido no Brasil de forma concentrada/abstrata ou difusa/concreta.

O sistema judicial review passou por consideráveis avanços na Constituição de 1988 (CF/88), a qual se ocupou de ampliar, de forma significativa, o elenco de legitimados ativos para provocação do mecanismo de controle abstrato.

Destaca Mendes (2005) que a ênfase ao modelo abstrato por parte da CF/88 representa uma evolução no sistema de controle pátrio. Além da ampla legitimação, o ministro destaca, ainda, a presteza, a uniformidade e a celeridade desse modelo processual, acrescentando que a outorga do direito de propositura da ação direta aos partidos políticos com representação no Congresso concretiza a ideia de defesa de minorias.

Apesar da defesa de tal entendimento, contudo, a análise da jurisprudência do citado tribunal indica a insuficiência de tal narrativa. Nesse sentido, indicam-se como demonstração de tal assertiva as interpretações restritivas quanto à matéria adotadas pelos ministros da Corte, que se ocuparam, nada obstante a ausência de previsão constitucional nessa direção, do desenvolvimento do conceito e da abrangência da pertinência temática, impondo, como exigência para a deflagração das ações de controle abstrato, o preenchimento de tal requisito implícito para alguns dos legitimados do artigo 103.

Este é o caso das Mesas das Assembleias Legislativas e da Câmara Legislativa do Distrito Federal; dos governadores dos estados e do DF, das confederações sindicais e das entidades de classe de âmbito nacional. O argumento da medida, em síntese, seria o temor de que a ampliação dos legitimados para propor as ações diretas pudesse gerar um grande aumento do volume de casos do controle concentrado.

Assim, ao tratar da distinção entre legitimados universais (que podem propor ADI sobre qualquer tema) e legitimados especiais (que apenas poderiam propor a ação sobre temas ligados à sua esfera de atuação), os ministros do STF acabaram por restringir o grau de representatividade e o alcance de atuação na esfera política do sistema abstrato de controle no Brasil.

Cumpre ter presente, ainda nesse ponto, o fato de que, além da exigência de pertinência temática em relação aos propósitos e às linhas de atuação da associação (adequação entre seu objetivo social e os interesses defendidos em juízo), o STF também se esforçou para constituir outros requisitos para que uma associação se apresentasse como legitimada: comprovação de associados em nove estados da federação e composição da classe por membros ligados entre si por integrarem a mesma categoria econômica ou profissional.

Em virtude de tal compreensão, registra-se, a título de mera ilustração, que o STF entendeu que a União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade de notória importância na resistência à ditadura militar, não possuía legitimidade para provocar o controle abstrato, por não se tratar de categoria profissional, “entidade de classe de âmbito nacional” (ADI nº 84-MC/DF). 

Além disso, cumpre ter mente o fato de que tal modalidade de controle, mais do que defender a Constituição e os direitos e garantias fundamentais, tem figurado como grande instrumento para a defesa de interesses institucionais e corporativos, explicitando-se, assim, clara dissonância entre discurso doutrinário e prática judicial; atestando-se serem poucas as decisões em que o STF anula normas com base na aplicação de direitos fundamentais (COSTA; BENVINDO, 2013, p. 77-78), o que acaba por desvirtuar a própria finalidade da Corte.

Assim, a despeito do discurso do aprimoramento democrático do sistema de controle abstrato nos últimos anos, fácil é constatar que setores estigmatizados da sociedade brasileira ainda encontram dificuldades no acesso à jurisdição constitucional.

Válido pontuar, ademais, que a absoluta maioria dos processos recebidos pelo STF possui natureza recursal, o que refuta a tese de que a ampliação da legitimidade para o manejo do controle abstrato (de competência originária) poderia gerar um sobrecarga de trabalho no Tribunal.

Apesar do referido quadro, recentes julgados da Corte indicam uma postura de gradual superação da jurisprudência restritiva por ela adotada já há mais de três décadas, ao se reconhecer a legitimidade de entidades representativas de grupos vulnerabilizados da sociedade para deflagrar das ações de controle abstrato.

Nesse sentido, por exemplo, a admissão, por parte da Corte, em julgado de 2020, da legitimidade da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT) para promover a ADPF nº 527/DF, que tratava sobre a possibilidade de detentas transexuais e travestis com identidade de gênero feminino escolherem o presídio em que cumpririam pena. Deveras, embora a referida associação não constitua entidade de classe de âmbito profissional ou econômico, os ministros do STF optaram por bem em reconhecer a sua legitimidade para impetrar a ação, haja vista tratar-se de instituição voltada para a luta de grupos vulneráveis.

Do mesmo modo, o STF reconheceu, no bojo da ADPF nº 709/DF (a qual tinha por objetivo provocar providências relacionadas às omissões estatais no enfrentamento à pandemia da Covid-19 pelos povos indígenas), a legitimidade ativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) para o manejo da ação de controle abstrato, embora esta sequer seja constituída como pessoa jurídica; ao argumento de também tratar-se de entidade representativa de direitos fundamentais de grupos vulneráveis.

Partindo dessas premissas, sustenta-se a possibilidade de reconhecimento da legitimidade da própria Defensoria Pública — que hoje figura como principal instituição canalizadora da vontade de pessoas e grupos vulnerabilizados da sociedade brasileira —, quer seja por conta de sua vocação constitucional para proteção dos direitos fundamentais e promoção dos direitos humanos (conforme destaca o artigo 134 da CF/88 — segundo a redação dada pela EC 80/2014, que concede à Defensoria status de expressão e instrumento do regime democrático), quer seja por conta da constatação de tratar-se de instituição do Sistema de Justiça mais confiável e mais bem avaliada pela sociedade, conforme atestou pesquisa recente da FGV.

Nessa linha de defesa, a despeito de o defensor público-geral federal (DPGF) não ter sido incluído, expressamente, no rol do artigo 103 da CF/88, é possível defender, desde logo, a tese de inserção da Defensoria no processo de controle abstrato por meio de um processo informal, com o intuito de possibilitar a salvaguarda de interesses e direitos de populações oprimidas, além da abertura do processo constitucional a uma pluralidade de sujeitos.

Válido pontuar, quanto a isso, que tramitam no Congresso Nacional duas propostas de emenda à Constituição que visam conferir legitimidade ao DPGF para a promoção de ações do controle abstrato de constitucionalidade (PEC 144/2007 e PEC 61/2019.

Considerando, porém, que a via formal (representada pela emenda constitucional) não constitui hipótese exclusiva de alteração do conteúdo das normas constitucionais e reconhecendo as dificuldades do legislador em acompanhar as transformações políticas e sociais que se sucedem no tempo, propõe-se a ressignificação do mencionado modelo, por meio de um processo informal de alteração constitucional — qual seja, a mutação constitucional, com vista a remover os obstáculos que desafiam a própria legitimidade dos defensores para o manejo do controle abstrato de constitucionalidade.

De forma sumária, não se deve desconhecer que a inserção da instituição no controle concentrado de constitucionalidade seria muito mais benéfica do que a participação em audiências públicas e o ingresso da instituição na qualidade de amicus curiae nos julgamentos da Corte, uma vez que em tais hipóteses estaria, por exemplo, inviabilizada a sua atuação recursal.

Cabe, assinalar, ainda, que sem embargo da possibilidade de a instituição vir a atuar na qualidade de custos vulnerabilis — guardiã dos vulneráveis —, podendo, em tal hipótese, intervir como terceiro interessado em nome próprio, e não como representante direto de uma das partes da demanda, nada impede que a instituição também possa deflagrar — diretamente — como legitimada, as ações de controle abstrato. 

Imperioso destacar, nessa quadra, o fato de que o artigo 103A da CF/88 já concede ao DPGF a prerrogativa de provocar a edição, revisão ou cancelamento dos enunciados da súmula vinculante — por força do que dispõe o artigo 3° da Lei n. 11.417/2006 — evidenciando o claro intuito do legislador em reconhecer a legitimidade da instituição para figurar como ator na construção e padronização da interpretação jurídico-constitucional, participando dos processos de criação judicial do direito proveniente de interpretação jurídica desenvolvida pelo STF, no exercício da jurisdição constitucional.

Acresça-se a isso o fato de que, sem embargo do importantíssimo papel consistente na defesa individual de direitos nas demandas judiciais, não se deve olvidar do fato de que a atual configuração institucional da Defensoria lhe permite ir além, atuando na ampliação da busca pela satisfação do direito da coletividade, inclusive por meio da solução extrajudicial dos litígios. Nesse sentido, válido pontuar, o reconhecimento por parte do STF quanto à legitimidade da instituição para o exercício da ação civil pública, na tutela das coletividades hipossuficientes (ADI nº 3.943/DF).

Em meio a tal contexto e considerando ainda o déficit de defensores para atender toda a população em situações de vulnerabilidade no Brasil, não resta dúvidas, de que a expansão da atuação institucional em sede de controle abstrato se mostra interessante até mesmo como forma de minimizar os obstáculos decorrentes dessa falta de cobertura de serviço da instituição. Com efeito, apesar das vantagens inquestionáveis do modelo difuso de constitucionalidade, fato é que o número reduzido de defensores públicos no País impossibilitaria o seu manejo por parte dos mais alijados, sendo certo que os efeitos obtidos por meio das ações de controle abstrato estariam muito mais aptos a alcançar um contingente maior de pessoas.

A título de mera ilustração, cabe citar a atuação exitosa da Defensoria mineira em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Com efeito, desde 2014, a instituição, por meio de seu DPG, vem impetrando inúmeras ações diretas de inconstitucionalidade destinadas, em grande medida, a questionar a validade de cobrança de taxas municipais, as quais tendem a onerar mais intensamente justamente aqueles com menor capacidade contributiva/financeira, alcançando a medida resultados bastante favoráveis: estima-se que mais de quatro milhões de mineiros tenham sido beneficiados pelo manejo de tal instituto, segundo destaca o defensor mineiro Gustava Dayrell (2021).

Apesar da salutar atuação da instituição perante a jurisdição constitucional no âmbito estadual, o mesmo reconhecimento, conforme afirmado acima, não se dá no âmbito federal.

As próprias entidades de classe de âmbito nacional da Defensoria Pública — quais sejam, a Anadep, no contexto dos Estados e do Distrito Federal, e a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), no âmbito da Defensoria Pública da União—, vêm encontrando obstáculos na defesa de grupos vulneráveis. Em 2016, a Anadep protocolou no STF a ADI 5.581, questionando dispositivos da Lei n. 13.301/2016, referente à medidas de vigilância em saúde relativas aos vírus da dengue, da chikungunya e da zika, além de pleitear a descriminalização do aborto em casos de zika vírus, por meio da ADPF.

Contudo, os ministros do STF, por maioria, votaram pela ausência de legitimidade da Anadep para a propositura da ADPF, ressaltando que a jurisprudência da Corte somente reconhece a legitimidade das entidades de classe nacionais para o ajuizamento de ação de controle abstrato se houver nexo de afinidade entre seus objetivos institucionais e o conteúdo dos textos normativos, fazendo incidir, assim, a interpretação restritiva da expressão “entidades de classe” do artigo 103, IX, da Constituição, a despeito de a matéria repercutir diretamente sobre a atividade profissional desempenhada pela classe envolvida.

Nesse contexto, mesmo sem a pretensão de esgotar o tema, contudo, dadas as inúmeras complexidades que o circundam, apresenta-se, como sugestão e com o intuito de provocar novos debates, a proposta de inserção da instituição no sistema de controle abstrato, quer seja por meio do reconhecimento da legitimidade às suas entidades de classe (via mitigação da interpretação defensiva) ou ainda através da própria Defensoria (por meio do DPGF — via mutação constitucional), tomando como referência a sua missão consistente em promover os direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, de forma integral e gratuita, aos necessitados, o que lhe permite conduzir a defesa dos seus assistidos por todas as instâncias do Poder Judiciário, do juízo de primeiro grau até o STF.

Ainda nesse contexto, importa frisar a necessidade de se assegurar isonomia entre as funções essenciais à justiça, possibilitando que a Defensoria, tal como se dá com a instituição Ministério Público e com a própria OAB, também esteja apta a contribuir para o fortalecimento de um cenário mais aberto ao diálogo e à construção coletiva das decisões na seara do Poder Judiciário, propiciando uma jurisdição constitucional mais inclusiva e democrática.

De forma sintetizada, é possível afirmar que a mudança de comportamento por parte do STF quanto à matéria — notadamente ao se conceder legitimidade à instituições voltadas para a proteção de grupos vulneráveis para deflagração do controle abstrato — contribui para a superação da perspectiva limitadora da jurisdição constitucional, abrindo espaço para que a própria Defensoria tenha condições de avocar para si a legitimidade para o manejo do sistema, assegurando à enorme parcela da sociedade civil a prerrogativa de participar das tomadas de decisão judiciais cruciais à própria efetivação da cidadania.

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REFERÊNCIAS:

COSTA, Alexandre Araújo; BENVINDO, Juliano Zaiden. A quem interessa o controle concentrado de constitucionalidade? O descompasso entre teoria e prática na defesa dos direitos fundamentais. Brasília: UnB, 2013.

DAYRELL, Gustavo. A atuação da Defensoria de MG no controle concentrado de constitucionalidade. CONJUR, 20 abr. 2021. Disponível aqui.

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

Renata Martins de Souza é doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG, defensora pública do Estado de Minas e professora de graduação do curso de Direito.

Consultor Júridico

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