A proteção constitucional dos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988. Essa tese foi fixada nesta quarta-feira (27/9) pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.
O tribunal já havia invalidado o marco temporal na quarta-feira passada (21/9), mas ainda não havia sido fixada a tese. Nove ministros votaram contra o marco, em respeito à tradição das terras indígenas: Edson Fachin, relator do caso; Alexandre de Moraes; Cristiano Zanin; Luís Roberto Barroso; Dias Toffoli; Luiz Fux; Cármen Lúcia; Gilmar Mendes; e Rosa Weber, presidente do STF. Os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça divergiram por considerar que a definição do marco temporal aumentaria a segurança jurídica.
Na sessão desta quarta, os ministros estabeleceram 13 pontos da tese. Além da invalidade do marco temporal, decidiu-se que a União deve indenizar quem, de boa-fé, adquiriu título de terra indígena. Afinal, nessa situação, a culpa é do poder público, que não arcou com o dever de proteger áreas pertencentes aos povos originários. A indenização pode envolver o valor da terra, além das benfeitorias feitas no local.
A tese foi formulada a partir de proposta feita pelo ministro Dias Toffoli, com contribuição dos demais magistrados até que todos chegassem a um consenso.
Foi definida a seguinte tese:
I — A demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II — A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos indígenas, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do § 1º do art. 231 do texto constitucional;
III — A proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição;
IV — Existindo ocupação tradicional indígena ou renitente esbulho contemporâneo à promulgação da Constituição Federal, aplica-se o regime indenizatório relativo às benfeitorias úteis e necessárias, previsto no art. 231, § 6º, da CF/88;
V — Ausente ocupação tradicional indígena ao tempo da promulgação da Constituição Federal ou renitente esbulho na data da promulgação da Constituição, são válidos e eficazes, produzindo todos os seus efeitos, os atos e negócios jurídicos perfeitos e a coisa julgada relativos a justo título ou posse de boa-fé das terras de ocupação tradicional indígena, assistindo ao particular direito à justa e prévia indenização prévia das benfeitorias necessárias e úteis, pela União; e quando inviável o reassentamento dos particulares, caberá a eles indenização pela União, com direito de regresso em face do ente federativo que titulou a área, correspondente ao valor da terra nua, paga em dinheiro ou em títulos da dívida agrária, se for do interesse do beneficiário, e processada em autos apartados do procedimento de demarcação, com o pagamento imediato da parte incontroversa e sem direito à retenção, aplicável o regime do art. 37, § 6º da CF;
VI — Descabe indenização em casos já pacificados, decorrentes de terras indígenas já reconhecidas e declaradas em procedimento demarcatório, ressalvados os casos judicializados e em andamento;
VII — É dever da União efetivar o procedimento demarcatório das terras indígenas, sendo admitida a formação de áreas reservadas somente diante da absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação, devendo ser ouvida, em todo caso, a comunidade indígena, buscando-se, se necessário, a autocomposição entre os respectivos entes federativos para a identificação das terras necessárias à formação das áreas reservadas, tendo sempre em vista a busca do interesse público e a paz social, bem como a proporcional compensação às comunidades indígenas (art. 16.4 da Convenção 169 OIT 169);
VIII — O redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de instauração do procedimento demarcatório até o prazo de cinco anos da demarcação anterior, sendo necessário comprovar grave e insanável erro na condução do procedimento administrativo ou na definição dos limites da terra indígena, ressalvadas as ações judiciais em curso e os pedidos de revisão já instaurados até a data de conclusão deste julgamento;
IX — O laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é um dos elementos fundamentais para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições e observado o devido processo administrativo;
X — As terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos indígenas o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
XI — As terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
XII — A ocupação tradicional das terras indígenas é compatível com a tutela constitucional do meio ambiente, sendo assegurados o exercício das atividades tradicionais dos indígenas;
XIII — Os povos indígenas possuem capacidade civil e postulatória, sendo partes legítimas nos processos em que discutidos seus interesses, sem prejuízo, nos termos da lei, da legitimidade concorrente da Funai e da intervenção do Ministério Público como fiscal da lei”.
Idas e vindas
Relator do recurso extraordinário com repercussão geral, o ministro Edson Fachin votou em 2021 contra o marco temporal. De acordo com o magistrado, os direitos originários dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam não dependem da existência de uma delimitação.
O ministro Nunes Marques abriu a divergência argumentando que a proteção constitucional das terras indígenas depende do marco temporal. Conforme o magistrado, os povos originários devem comprovar que ocupavam a área em 5 de outubro de 1988 ou que tenham sido expulsos dela. Sem essa limitação, há insegurança jurídica, disse o ministro.
Em voto-vista apresentado em junho, o ministro Alexandre de Moraes opinou que a fixação de um marco temporal viola direitos fundamentais dos indígenas.
Também em voto-vista, apresentado em 30 de agosto, o ministro André Mendonça seguiu Nunes Marques pela validade da tese do marco temporal. O magistrado apontou que os constituintes de 1988 estabeleceram um marco para a demarcação de terras indígenas com o objetivo de pacificar conflitos.
“Não se trata de negar as atrocidades cometidas, mas antes de compreender que o olhar do passado deve ter como perspectiva a possibilidade de uma construção do presente e do futuro. Entendo eu que essa solução é encontrada a partir da leitura do texto, e a intenção do constituinte originário foi trazer uma força estabilizadora a partir da sua promulgação”, disse Mendonça.
O ministro opinou que o Supremo não poderia, 14 anos depois, alterar o entendimento fixado no julgamento do “caso Raposa Serra do Sol” (Pet 3.388). Na ocasião, a corte entendeu que as populações indígenas tinham direito às terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, ou seja, o marco temporal que estava em discussão.
Caso o STF mudasse de entendimento, avaliou o ministro, permitiria discussões que remeteriam a “tempos imemoriais”, gerando insegurança jurídica.
No dia seguinte, os ministros Cristiano Zanin e Luís Roberto Barroso votaram contra a tese do marco temporal. Para Zanin, as populações indígenas têm direito às terras que tradicionalmente ocupam desde o Império e, em sede constitucional, desde a Constituição de 1934.
“O constituinte de 1988, ao reconhecer o direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas, determinou à União a demarcação como ato meramente declaratório. Ao admitir tais direitos como originários, a Constituição os admitiu como direitos mais antigos do que qualquer outro, de modo a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, ainda que materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação da posse”, disse o ministro.
Já Barroso apontou que a tradicionalidade e a persistência da reivindicação de terras por indígenas, mesmo que eles não vivessem nelas na data da promulgação da Constituição, “constituem fundamento de direito para as comunidades indígenas”.
“A Constituição de 1988 protege a identidade cultural dos povos indígenas e assegura o direito à terra à luz de sua cultura, não tendo em vista os comportamentos e conceitos da sociedade dominante”, afirmou o ministro.
Para Toffoli, “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal, em 5 de outubro de 1988, ou da configuração do renitente esbulho, como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.
O magistrado também entendeu que o procedimento de apuração da indenização a ser paga pela perda da terra que foi declarada indígena deve correr em paralelo ao processo de demarcação. O objetivo é evitar a demora na regularização da área tradicional.