É fato notório e recorrente em noticiários, reuniões corporativas e corredores de instituições de ensino superior que os temas afetos ao desenvolvimento sustentável estão (novamente) no foco das atenções, em nível nacional e internacional — desta vez sob uma nova roupagem, mais contemporânea e ampla em comparação com a noção de sustentabilidade estrito senso popularizada nas últimas décadas; trata-se de uma verdadeira agenda que, por convenção, recebeu a denominação de ESG — Environmental, Social and Governance (sigla em inglês para Ambiental, Social e Governança).
A linha do tempo da sigla remonta à publicação do relatório Who Cares Wins[1], em 2004, vinculado ao Pacto Global da ONU, e tomou lugar central no debate global mais propriamente a partir de 2020, quando Larry Fink, CEO da BlackRock (maior gestora de ativos do planeta), anunciou que os riscos ESG seriam preponderantes em suas tomadas de decisões relacionadas a investimentos[2]. Nesse sentido, a importância exponencial que vem sendo conferida ao tema ESG relaciona-se ao novo paradigma de um suposto capitalismo sustentável (ou capitalismo de stakeholders), o qual reconheceria, em tese, a necessidade de adequação e conformidade a valores, regras e boas práticas de governança ambiental, social e corporativa[3].
A partir de 2023 essa atenção tornou-se mais evidente, não somente pela influência exercida pelo constante avanço do debate no exterior, onde o tema é notadamente mais evoluído[4], mas também por mudanças conjunturais em âmbito doméstico — destaca-se, aqui, a eleição de um governo progressista e mais comprometido com a pauta socioambiental, em detrimento do anterior, que, ao longo de quatro anos, esvaziou o protagonismo do Brasil na histórica liderança exercida em temas afetos à sustentabilidade, especialmente por uma condução pouco responsiva de políticas de proteção à Amazônia, aos povos originários e às classes economicamente desfavorecidas.
Importa pontuar que, no período anterior sobredito, embora a pauta ESG estivesse longe de ser a tônica da regulação estatal, das políticas públicas e dos atos do Poder Público em geral (ao menos em nível federal), houve avanços pontuais; é possível exemplificar, nesse sentido, com os debates em torno do Projeto de Lei 5442/2019, que pretende regulamentar os programas de conformidade ambiental no país, e com a edição da Lei 14.457/2022 — responsável por instituir o Programa Emprega + Mulheres destinado à inserção e à manutenção de mulheres no mercado de trabalho por meio da implementação de medidas diversas, o que constitui uma louvável iniciativa de impacto social capitaneada pelo Estado.
De toda maneira, o debate encabeçado pelo governo federal em torno da sustentabilidade, até então, ficava relegado a uma condição efêmera, fugaz. A chave virou: agora, sociedade civil e agentes internacionais esperam que o Brasil retome a antiga posição de responsabilidade e prestígio junto à ordem globalizada e avance o debate no interior das principais instituições.
Este é, aliás, o fio condutor para que nos debrucemos no tema específico do presente artigo: como conciliar a atuação da Administração Pública com as diretrizes da agenda ESG? Essa é nossa preocupação central, na medida em que, como já se sabe, a autorregulação setorial exercida pelo mercado em torno do ESG — destacam-se as normas ISO e diretivas da B3 — está muito mais consolidada, em tempos atuais, do que a regulação estatal[5].
Alguns indícios recentes, entretanto, demonstram que a mudança de rumo felizmente já começou, ao menos em nível federal, mas que certamente poderá espelhar a atuação dos entes subnacionais. De fato, o movimento é promissor; e, aqui, destacar-se-á o Decreto federal º 11.454, de 24 de março de 2023, o qual dispõe sobre o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS) da Presidência da República.
Importa ressaltar que o Decreto objeto desta análise é parte integrante de um novo ecossistema normativo, com bases claramente influenciadas pela agenda ESG, que está sendo desenhado na Administração federal por meio da edição de normas aplicáveis à Administração Pública Direta e Indireta[6]. Nesse sentido, parece-nos que se trata de iniciativa coordenada e integrada, não meramente casuística ou oportunista, e que reflete o propósito de adequar e readequar o Brasil à Agenda 2030 e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Frise-se, assim, a essencialidade da incorporação desses valores de forma cíclica e permanente na atuação da nova governança pública, cujos efeitos deverão ser demonstrados a partir de métricas e indicadores pertinentes. Mantida tal coerência, e uma vez comprovado o êxito da Administração, a atração de investimentos é consequência.
Passemos, então, ao Decreto 11.454.
Enquanto órgão de assessoramento direto ao Presidente, compete ao CDESS a assessoria na formulação de políticas e diretrizes destinadas ao desenvolvimento econômico social sustentável e a elaboração de indicações normativas, propostas políticas e acordos de procedimento (artigo 2º, inciso I), bem como a apreciação de políticas públicas, reformas estruturais e de desenvolvimento sustentável a partir de articulação entre governo e sociedade civil (artigo 2º, II) e a articulação e mobilização de agentes econômicos e da sociedade civil no engajamento com o desenvolvimento econômico social sustentável (artigo 2º, III).
Percebe-se, nesse ponto, a característica holística da governança socioambiental, a qual deve ser considerada e aplicada sob uma perspectiva circular, tanto do ponto de vista da ação integralizada entre as distintas frentes de governança quanto a partir do envolvimento articulado entre setores do Estado, da sociedade civil e do mercado.
Tal raciocínio parece ser ratificado no que diz respeito à composição do conselho (artigo 3º) – que, além de membros efetivos do núcleo duro do governo federal (presidente, vice e ministro de Relações Institucionais), também irá contar com representantes da sociedade civil. E, mediante convite e sem direito a voto, poderão participar das atividades do CDESS pessoas de notório saber e representantes de órgãos e entidades nacionais, públicos ou privados, ou de organismos internacionais.
Daqui emerge uma controvérsia que merece destaque: a centralização na indicação e admissão de representantes de setores alheios ao governo. Isso porque, a um, os conselheiros oriundos da sociedade civil serão designados por livre escolha do presidente para um período de dois anos, admitida a recondução (artigo 3º, IV), e a dois, os indivíduos que poderão participar das atividades sem direito a voto somente serão admitidos a convite do presidente em exercício do conselho, que sempre será um dos membros do governo (artigo 3º, § 1º c/c artigo 3º, § 4º).
Em nosso sentir, soaria mais adequado — à luz da própria essência do ESG — a inclusão de mecanismos mais democráticos e transparentes na indicação e admissão de representantes extragoverno. Caso não fosse possível operacionalizar de forma diversa, mantendo-se a centralização por livre escolha e a convite, poderia exigir-se fundamentação criteriosa na escolha, de acordo com parâmetros claros, sujeita a divulgação suficientemente prévia à efetivação do ato.
Justiça seja feita, para não dizer que a escolha é absolutamente discricionária, recorremos à previsão do § 3º do mesmo artigo 3º, que vincula a opção pelos conselheiros oriundos da sociedade civil à observância de marcadores sociais, a fim de alcançar uma representatividade territorial, étnico-racial e de gênero. Ainda assim, o texto do Decreto poderia ter ido além, buscando maximizar a interseccionalidade com outros marcadores como orientação sexual, diversidade geracional e pessoas com deficiência, dentre outros.
Por fim, consideramos essencial que as políticas de desenvolvimento econômico social sustentável materializadas a partir da atuação do CDESS sejam constantemente avaliadas e reavaliadas por meio de indicadores pertinentes. Isso porque o desenvolvimento e a utilização de indicadores e métricas alinhados a uma ideia de gestão pública sustentável e aderente à agenda ESG constituem medidas eficazes para analisar e, se for o caso, maximizar a eficácia e efetividade das políticas em si[7].
Portanto, o Decreto 11.454/2023 deve ser recebido com otimismo, especialmente por vir acompanhado do que já aparenta ser uma onda regulatória de governança pública socioambiental. Impulsionado pelo exponencial crescimento da agenda ESG — maximizado no cenário pós-pandemia de Covid-19 —, esse conjunto de novas tendências pode vir a oferecer bases fundamentais para a reconstrução do Estado Social no Brasil[8].
É o que se espera.
Matheus Teixeira Moreira é advogado pós-graduado em Direito Público. Pós-graduando em Direito e ESG pela Fundação Getulio Vargas-SP (FGV Law). Atua com Direito Administrativo e é coordenador do Núcleo de Consultoria e Assessoria em Direito Público no escritório Justino de Oliveira Advogados.