Szabó e Lanfredi: Precisamos falar dos egressos do sistema prisional

Desde que, em 2015, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu haver um estado de coisas inconstitucionais nas prisões brasileiras, o Poder Judiciário, capitaneado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), vem patrocinando uma série de iniciativas.

A partir de 2019, essas ações foram potencializadas pelo Programa Fazendo Justiça, executado em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), visando superar as violações generalizadas de direitos fundamentais que decorrem do sistema penal. Isso mobilizou não apenas os Poderes instituídos, mas também a sociedade civil organizada, em prol da promoção de mudanças estruturais suficientes para reverter esse contexto absolutamente desfavorável e de absoluta ineficiência da atuação oficial.

Antonio Cruz/Agência Brasil

Mesmo com os avanços no campo da justiça criminal nos últimos anos, incluindo a implementação nacional das audiências de custódia — iniciativa coordenada pelo CNJ para qualificar o filtro de entrada do sistema prisional —, o encarceramento segue demandando respostas e justificativas que reverberem resultados para a segurança da sociedade.

Dados do Conselho, ainda em fase de tratamento, apontam que o Brasil possui, atualmente, cerca de 650 mil pessoas em cumprimento de privação de liberdade, em razão de prisão cautelar ou por força de prisão definitiva nos regimes fechado e semiaberto.

Há um compromisso que se apresenta, porém, necessário de ser repactuado no cumprimento da pena: é preciso resgatar o compromisso com a garantia dos direitos previstos na Lei de Execução Penal, para realizar a cidadania. Promover dignidade para todos aqueles e aquelas em privação de liberdade ou que tiveram a vivência do sistema de justiça é uma obrigação do Estado brasileiro e a única premissa capaz de devolver legitimidade e funcionalidade à sanção penal.

Ao longo do último mês de julho, a ministra Rosa Weber, presidente do STF e do CNJ, realizou uma série de visitas a diferentes estados brasileiros, anunciando a retomada dos Mutirões Carcerários. Promover a adequação de processos que estejam em desalinho com a jurisprudência estabelecida pelo STF e pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) é um dever da magistratura engajada e ciosa da legalidade em seu sentido mais amplo e integral.

Na mesma ocasião, o anúncio da retomada do julgamento do mérito da ADPF 347, que pede o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional e a adoção de providências para a superação deste quadro, cria a expectativa de que o movimento por mudanças seguirá.

Mas preocupações com a superação do estado de coisas inconstitucionais também se estendem e alcançam a porta de saída do sistema penitenciário, momento em que se mostra imprescindível a facilitação de ferramentas e estratégias sociais para lidar com esse contingente de pessoas. Elas enfrentam desafios para se restabelecerem e se restaurarem socialmente, através de novos projetos de vida que confiram a elas o pertencimento e devolvam vínculos sociais que se liquidaram durante o confinamento.

O rompimento dos laços familiares, a insegurança alimentar que deteriora a saúde, a documentação irregular que tolhe a cidadania em amplitude são alguns entraves que repercutem na baixa condição de empregabilidade e readaptação dessas pessoas, aumentando suas dificuldades, inclusive, para a superação das pendências burocráticas de difícil solução, como a pena de multa.

Uma revisão de literatura publicada pelo Instituto Igarapé sobre fatores que potencializam a reincidência criminal mostra que todas essas vulnerabilidades, quando não adequadamente endereçadas, contribuem e aumentam as chances de se cometer um novo crime.

Precisamos superar esse quadro, com uma concertação que envolva todos os Poderes e setores da sociedade.

A importância da sociedade civil organizada, cumprindo papel crucial na sensibilização, articulação e engajamento público nesta pauta está mais que evidente diante da formação das ainda embrionárias Redes de Atenção à Pessoa Egressa do Sistema Prisional. As Raesps, que pouco a pouco vão se organizando e ganhando musculatura, reúnem organizações sociais, de familiares, religiosas, investidores sociais, órgãos públicos, iniciativa privada e potenciais beneficiários para promover o acesso a direitos para pessoas pré-egressas, egressas e suas famílias. A primeira delas foi lançada no Rio de Janeiro em 2006, e hoje já contamos com Raesps em atividade em outros sete estados brasileiros.

Em julho, o CNJ, a partir do exemplo da Raesp-RJ e apoio do Instituto Igarapé, lançou a Rede Nacional de Atenção às Pessoas Egressas (Renaesp). A Renaesp se prestará a realizar o intercâmbio das experiências das redes estaduais, e se confia em seu elevado potencial de transformar o espectro da privação de liberdade a partir do apoio concreto e material a pessoas em suas trajetórias pós-cárcere.

Para conferir subsídios à atuação dessas redes e disseminar informações que qualifiquem formas aptas e adequadas de intervenção nesse contexto, também no âmbito da parceria do CNJ com o Instituto Igarapé e a Raesp- RJ, foi lançado o Portal para Liberdade, plataforma que reúne estudos e informações sobre pessoas egressas e sobre o sistema prisional.

Sabemos que a consistência e a legitimidade das ações para superar o desafio histórico da inserção social de pessoas egressas depende da qualidade das informações sobre as quais essas atuações se apoiam. Precisamos de estudos, transparência pública e participação ativa, eficiente e realizadora da sociedade civil, das pessoas egressas e de seus familiares, para entender quais necessidades, que gargalos e políticas fazem mais sentido e têm condições de gerar resultados transformadores de vidas e trajetórias individuais.

Iniciativas como a Renaesp e o Portal para Liberdade são ações concretas de articulação e que visam o fortalecimento de redes que potencializam o trabalho individual e conjunto das organizações que atendem esse público em todo o país. É um passo importante para se viabilizar direitos fundamentais aos esquecidos, resistentes e quase cancelados da vida civil, que pedem por uma oportunidade de sobreviver e seguir de pé, longe de clichês ou preconceitos que causem mais embaraços do que os acarretados pela própria seletividade penal.

Sejamos artífices de uma inclusão real, apostando que ainda há meios e formas de construirmos um país com a plenitude e abrangência de políticas para a promoção da verdadeira cidadania ao alcance de todos.

Ilona Szabó é cofundadora, presidente do Instituto Igarapé e membro do Conselho Consultivo de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU.

Luís Geraldo Lanfredi é juiz auxiliar da Presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas.

Consultor Júridico

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