Uma das principais inovações inseridas no Código de Processo Penal (CPP) pela Lei 13.964/2019 (pacote anticrime) é o acordo de não persecução penal (ANPP), que pode ser definido como um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado, assistido por seu advogado. Nele, as partes negociam cláusulas a serem cumpridas pelo acusado cujo benefício será a extinção da punibilidade daquele agente.
O acordo está previsto no artigo 28-A do CPP com a seguinte redação:
“Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.
A locução “poderá” tem ganhado novos contornos na jurisprudência dos tribunais superiores, conforme demonstraremos adiante.
Em recente julgado — AgRg no Habeas Corpus nº 762.049 — PR — o Superior Tribunal de Justiça assentou que se presentes as condições para a oferta do ANPP, ele deve ser ofertado e, se assim não for, o Ministério Público deve fundamentar adequadamente a negativa.
Isso porque muito embora o ANPP não seja um direito subjetivo do investigado, uma manifestação fundamentada do Ministério Público, negativa ou positiva, quanto à aplicação do instituto, certamente o é.
Se o instrumento foi instituído não só para resguardar o agente do delito, mas também o aparelho estatal das desvantagens próprias da instauração do processo-crime em casos desnecessários à devida reprovação e prevenção do delito, trata-se, verdadeiramente, de um poder-dever do Ministério Público em oferecer o acordo, segundo sua discricionariedade regrada, caso atendidos os requisitos legais.
Se o benefício a ser eventualmente ofertado ao agente em hipótese na qual há, em tese, justa causa para o oferecimento de denúncia, aplica-se ainda na fase pré-processual e, evidentemente, consubstancia hipótese legal de mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, por certo que o oferecimento constitui um poder-dever do Parquet, de modo que a não formalização oportuna e desacompanhada de motivação idônea constitui nulidade absoluta.
Neste ponto, o citado julgado assentou importantíssima premissa no sentido de que o oferecimento deve ser feito no momento oportuno, sob pena de nulidade.
Explico. O propósito do acordo de não persecução penal é o de poupar o agente do delito e o aparelho estatal do desgaste inerente à instauração do processo-crime. Ou seja, o benefício a ser eventualmente ofertado ao agente sobre o qual há, em tese, justa causa para o oferecimento de denúncia, se aplica ainda na fase pré-processual, com o claro objetivo de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Logo, silente o Ministério Público antes do oferecimento da denúncia quanto às razões pelas quais não ofertou o ANPP e tendo, em seguida, denunciado o investigado — mesmo presentes as condições para a celebração do acordo — está maculado de nulidade todo o processo a partir daquele momento.
Ainda que após provocação da defesa haja proposta tardia de acordo, tal fato não supera a nulidade acima ventilada, até porque já fora iniciada a fase que se pretendia evitar, a processual.
A proposta oferecida tardiamente, aliás, serve apenas para revelar que outrora não havia justa causa para o oferecimento da denúncia.
Aqui, faço necessário parênteses no sentido de que um acordo tardiamente oferecido não ter chegado a bom termo — e portanto não aceito pela parte — é incapaz de superar a nulidade acima apontada, até porque não se pode prever, em verdadeiro exercício de adivinhação, que o acordo oferecimento oportunamente e com termos outros não seria aceito pelo investigado.
De mais a mais, certo é que se presentes os requisitos para a propositura do ANPP, bem como ausentes as razões pelas quais essa não ocorreu, a denúncia não poderia ter sido ofertada e muito menos recebida.
Para ilustrar nossas razões, veja-se elucidativo escólio da jurisprudência:
“Vê-se, in casu, que a instauração do incidente de acordo se de posteriormente ao oferecimento da denúncia e seu recebimento. Ou seja depois de já iniciada a fase processual. E é justamente no ponto que repousa insurgência da defesa. Pois bem. Conforme bem ponderou o parecerista, o ANPP não é um direito subjetivo do investigado. Há todavia, direito subjetivo do investigado a uma manifestação fundamentada do Ministério Público, negativa ou positiva, quanto à aplicação do instituto ora previsto no art. 28-A do CPP (fl. 332). A Segunda Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal considerou como inidôneas as justificativas do membro de primeiro grau para negativa do referido acordo, uma vez que os crimes tributários não estão no rol das hipóteses impeditivas da celebração desse instituto (fl. 284). Assim, diante do recurso dos acusados à Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e da superveniente determinação de retorno dos autos ao procurador da República para (re)análise dos requisitos exigidos para a celebração do acordo no caso concreto, houve a retomada da fase pré-processual, de modo que a aparente existência de justa causa para o início da ação penal foi afastada.
Ora, o benefício a ser eventualmente ofertado ao agente aplica-se ainda na fase pré-processual, com o claro objetivo de mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal. Acerca do tema, vale mencionar trecho do parecer ofertado pela procuradora regional da República Cristianna Dutra Brunelli Nácul no prévio writ (fl. 211 — grifo nosso):
[…] Logo, diante da proposta ofertada posteriormente, infere-se que não havia justa causa para o oferecimento da denúncia. E, não havendo obstáculos à celebração do acordo, a ação penal somente poderá ter início após sua recusa, não homologação ou rescisão, nos termos do art. 28-A, § 8º e § 10º, do Código de Processo Penal.
Como ensina Pacelli, a ausência de oferecimento de acordo de não persecução penal, quando cabível, enseja a rejeição da denúncia, por ausência de justa causa sob o prisma da necessidade da persecução penal. Trata-se de solução similar à proposta pelo autor em relação à transação penal que, embora cabível, deixa de ser oferecida pelo Ministério Público, o que impediria o recebimento da denúncia seja pela ausência de justa causa, seja por falta de interesse de agir, em razão da ‘existência de solução legal mais adequada ao fato e ao suposto autor, à disposição do autor da ação penal. Haveria, assim, uma alternativa legal ao processo condenatório escolhido pelo Ministério Público’. (PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25ª ed. [livro eletrônico]. São Paulo: Atlas, 2021. p. 122 e 612). […]
Conforme expressou a ministra Laurita Vaz no voto vencedor proferido no julgamento do AgRg no HC nº 628.647/SC, infere-se da norma despenalizadora que o propósito do acordo de não persecução penal é justamente o de poupar o agente do delito e o aparelho estatal do desgaste inerente à instauração do processo-crime, abrindo a possibilidade de o membro do Ministério Público, caso atendidos os requisitos legais, oferecer condições para o então investigado (e não acusado) não ser processado, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (AgRg no HC n. 628.647/SC, ministro Nefi Cordeiro, rel. p/ Acórdão ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, DJe 7/6/2021 — grifo nosso). Ou seja: O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia. (STF/AgRg no HC nº 191.464 AgRg, ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, DJe 26/11/2020). No caso, à luz dos princípios da razoabilidade e da segurança jurídica, não se faz possível seja mantido o início da persecução penal em face dos recorrentes.
A aparente justa causa inicialmente identificada pelo Juízo processante para o recebimento da denúncia não mais subsiste, já que, como visto, os fundamentos lançados pelo membro do Parquet federal de primeiro grau para negativa do referido acordo foi afastado pela Segunda Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal.”
Em casos tais, como se vê, são evidentes os prejuízos, não só ao réu — que com o recebimento da denúncia tem contra si registro de prematura e indevida ação penal —, mas também ao sistema de Justiça como um todo. De nada adianta a incorporação de mecanismos consensuais na área criminal se o Ministério Público não abandona seu perfil demandista.