Tarso Genro: Baltasar Garzón e Rudolf Von Ihering

Os juízos sobre legitimidade das ordens jurídicas vigentes e o “sentido” dado a elas são constituídos pelos movimentos da jurisprudência, bem como são compostos “pelo preenchimento  dos seus silêncios normativos”, a partir da autoridade do Estado pela “exceção” ou pelos “acordos interpretativos entre as visões de mundo, concorrentes no espaço de decisão” [1] (…), “mas os acordos interpretativos que geram consensos nunca são livres, ao contrário, sempre são pelo menos em parte manipulados” [2].

Assim como “o cérebro dos mortos oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, os vivos devolvem aos mortos a gratidão pelo brilho dos pensamentos que eles legaram à nossa época, a partir da vivência na sua época. Esse é o fio invisível de referência moral e política a vincular a situação concreta que ora vive o juiz Baltasar Garzón com o pensamento jurídico de Rudolf Von Ihering.

O ex-ministro Tarso Genro

Divulgação

A doutrina dos direitos fundamentais no Estado Constitucional, de caráter democrático e social, é o principal alicerce doutrinário, que vincula os direitos humanos com as conquistas das revoluções sociais dos últimos três séculos no ocidente. Para a democracia ser viabilizada como construção, se não de uma sociedade “inteiramente outra” mas no mínimo de uma sociedade menos dividida pelas desigualdades humilhantes e pelas discriminações cruéis, a doutrina dos direitos fundamentais é uma “argamassa da história” para moldar o futuro. O direito ao duplo grau de jurisdição é um dos tijolos que essa argamassa junta.

Para que isso seja verdadeiro o Direito, na democracia constitucional, deve não só se apropriar das lições da História para apontar, na sua evolução por inteiro, as crises do sistema jurídico que estimulam alargamento dos espaços de arbítrio que permanecem nos organismos da democracia liberal, como também avistar, entre as normas autorizativas do uso da força ilegítima, os seus vácuos normativos que podem ser usados para reforçar o poder econômico e os privilégios plutocráticos. Tudo isso liga Von Ihering a Garzón, na sua saga em busca do justo. Vejamos como.

Baltazar Garzón, hoje com 67 anos, foi expulso da carreira de magistrado do Estado Espanhol em 12 de fevereiro de 2012, inabilitado por 11 anos para o exercício da magistratura, por ter supostamente cometido crime de prevaricação. Segundo seus julgadores, por interceptar as conversas entre presos e seus advogados, durante processos criminais do “Caso Gürtel“, nos quais foi investigada uma teia de corrupção formada por políticos, burocratas e empresários da direita espanhola. Passados os 11 anos da “pena”, todavia, o Estado hoje é seu devedor, a partir do momento que reconheceu “como extinta a sua responsabilidade penal” que, se justa, já foi cumprida e que se injusta clama pelo reparo devido pelo Estado Espanhol que lhe é, sem dúvida, inadimplente.

Rudolf Von Ihering (1818-1892) no clássico El Fin en el Derecho, publicado pela primeira vez em 1877 — ao contrário de alguns de seus contemporâneos conservadores — reconheceu, por fora das leis, “presença do poder no direito’, que em Lasalle seria vista, na teoria constitucional socialdemocrata, como os “fatores reais de poder”.

A formulação de Ihering integrou, na teoria jurídica moderna do Estado de Direito, uma das grandes questões já processadas na política democrática, que emergiam na Europa moderna, ora como força normativa do “fático” (Deveali), ora como exceções ilegítimas. É dele, Von Ihering, a formulação de que “a arbitrariedade deve definir-se (como) a ação da vontade contrária à lei; com uma restrição: que é a da vontade daquele que manda, e ao qual o poder que possui, lhe deixa uma liberdade de ação fora da lei” [3]

As elites políticas carentes de republicanismo, que surgiram ou se firmaram durantes os governos autoritários ou ditatoriais, no século passado, foram férteis em lidar com as instituições do Estado para premiar as suas clientelas ou os seus grupos familiares, com o uso dos espaços de poder real, que detinham “fora das leis”. Essa situação não era nem é característica somente dos grupos políticos da direita, mas era e é comum em uma certa proporção — em quaisquer organizações políticas fora e dentro da democracia política liberal.

Na Espanha, todavia, formou-se uma situação bastante típica no pós-franquismo, pois os compadrios e seus sucessores, dentro das estruturas de poder que controlavam, cultivaram  no Partido Popular grupos de seguidores com enormes dificuldades de se adaptarem ao liberal democratismo orgânico e às limitações legais para o uso dos instrumentos públicos de mando estatal.

Para proteger seus correligionários e “amigos” e os seus interesses plutocráticos, boa parte dessa elite política das ditaduras do século 20 migrou, na democracia, para os crimes de corrupção, aproveitando as frestas normativas para exercer de forma supostamente livre o seu poder de mando, para amealhar fortunas através das ilegalidades (ou “flexões” normativas) aproveitadas para burlar o interesse público. Sobre estas burlas é que Garzon marcou a sua história nos processos do caso Gürtel.

Os processos submetidos à jurisdição do Garzón atingiram vários grupos políticos, referentes internos e externos ao “Partido Popular”, herdeiro de boa parte da ideologia e da cultura do franquismo que reuniu, no processo de transição à democracia na Espanha longo e complexo os grupos de poder mais significativas da elite espanhola, com a  sua vocação arbitrária herdada da prepotência do franquismo.

O jornal La Vanguardia, de Madri, publicou em 21 de agosto deste ano uma reportagem de suma importância sobre uma decisão cristalina do Comitê de Direitos Humanos da ONU, em decisão histórica que reiterou “que a Espanha deve proceder a uma reparação integral ao Excelentíssimo Juiz da Audiência Nacional Baltasar Garzón”.

O Comitê de Direitos Humanos da ONU (CDHNU) apreciou naquela data uma petição de Garzón, apresentada através da sua representante-advogada Heln Duffy, da Human Rights in Practice, pela qual Heln sustentou que a resposta do governo espanhol aos requerimentos de “reparação integral do Juiz, pela sua lesiva e ilegal inabilitação como Magistrado, foi produzida com a sonegação dos seus direitos, ao julgar a sua conduta no famoso Caso Gürtel”. A decisão foi dita “parcial” e “arbitrária”, inclusive porque o imputado não teve acesso ao duplo grau de jurisdição , cláusula pétrea — jurídica e moral  do devido processo legal no Estado de Direito.

As penas originárias de uma “rede” de processos judiciais, que foram aplicadas no Caso Gürtel, foram elevadas: ao chefe da rede de corrupção do “Caso Gürtel”, Francisco Correa (51 anos e 11 meses); Pablo Crespo, ex-secretário do PP da Galiza (37 anos e seis meses); Guillermo Ortega, ex-presidente da câmara de Majadahonda (38 anos e três meses); e Luis Bárcenas, ex-tesoureiro do PP e principal acusado num outro processo  (33 anos e quatro meses de prisão mais uma multa de 44 milhões de euros).

Sobre os espaços normativos para o exercício do arbítrio, mostrado na doutrina luminosa de Von Ihering, centenas de jusfilósofos, doutrinadores, juristas e sociólogos do direito, já se manifestaram de diversas formas. Toda a estrutura jurídica da democracia política no Estado de Direito parte de uma fundamentação racional que dá coerência a sua totalidade normativa,  para sua funcionalidade no mundo real. É fundamentação racional que não pode ser aplicada pela “metade”, ou seja, não pode ser dissolvida pelos fatos reais, arbitrados pelo poder fora do Direito, simplesmente mediante o uso da ação ou da omissão não prescritas no sistema de normas, pois “uma norma vale moralmente quando ela, perante cada um que aceita uma fundamentação racional, pode ser justificada”. “Direitos do homem existem, com isso, rigorosamente então, quando eles, no sentido apresentado perante cada um, podem ser justificados.”

Os direitos humanos como direitos fundamentais na ordem jurídica racional e democrática são “fundamentalmente, direitos de todos contra todos, (que) acresce, com isso, uma universalidade de validez, (…) definida por sua fundamentalidade perante cada um que aceita uma fundamentação racional” [4]. A Espanha deve ao mundo democrático o retorno de Garzón à magistratura que lhe foi sonegada, num processo no mínimo tortuoso, ausente o direito fundamental de recurso a uma instância superior, como é universal nos sistemas de justiça civilizados.

 


[1] ARAÚJO, Adriana Reis de. [et al.]MATTOS, Vivian Brito, D’AMBROSIO, Marcelo José Ferlin.(org). Democracia, Direito do Trabalho e Novas Tecnologias (artigo Tarso Genro),.Belo Horizonte: RTM,2022.

[3] IHERING, Rudolf von .EL FIN EN EL DERECHO. Buenos Aires-Republica  Argentina: Editorial Heliasta S.R.L. S/D, p.177.

[4] ALEXY, ROBERTO.Constitucionalismo discursivo; HECK, Luís Afonso, organizador/tradutor. Porto Alegre: Editora: Livraria do Advogado, 2007,p.47

Tarso Genro é advogado, ex-ministro da Justiça e autor de livros e artigos sobre Direito e Teoria Política publicados no Brasil e no exterior.

Consultor Júridico

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