Thális Andrade: Tributação das remessas internacionais de mercadorias

Não é de hoje que as remessas internacionais de mercadorias têm sido uma opção simples e barata para os brasileiros terem acesso à imensa prateleira de produtos que é o mercado internacional. No entanto, é marcante o fato de o Brasil ser um dos primeiros países a editar normativa para facilitação do comércio exterior das remessas que viriam a se ser representadas pela figura do e-commerce.

Nos anos 1980, sabedor das burocracias e gargalos das compras pelos Correios, o então ministro da fazenda Ernane Galvêas explicitou as razões para se construir um Regime de Tributação Simplificada (RTS) para as encomendas internacionais, editando o Decreto-Lei nº 1.804.

Dentre suas razões, mencionava a necessidade de modernização dos serviços aduaneiros em consonância com o Programa Nacional de Desburocratização, visando à celeridade e racionalização dos procedimentos e redução de custos administrativos.

O então ministro ainda destacava que “o fluxo de remessas postais internacionais é constituído na sua maior parte por grande quantidade de pequenas encomendas de diminuto valor, cuja tributação pela sistemática comum, é penosa para os destinatários, na generalidade pessoas não afeitas à complexidade do despacho aduaneiro de mercadorias, e onerosa para a Administração Fiscal em razão da insignificante arrecadação obtida” [1].

Apesar da atualidade das razões apresentadas à época quanto à complexidade do despacho e a necessidade de desburocratizar procedimentos, não se pode dizer o mesmo sobre o valor que se deixa de arrecadar, principalmente em razão do enorme volume de remessas que passaram a ser comercializadas com o impulso dado pelo e-commerce.

Para se ter uma ideia do volume, em 2011, a Receita Federal despachou pouco mais de 13 milhões de pacotes, enquanto em 2022 o volume de remessas postais internacionais chegaram ao expressivo montante de 178 milhões de pacotes, ou seja, uma média de quase 500 mil remessas por dia [2].

Por outro lado, as remessas expressas, operadas por meio de “operadores não designados” (e.g. courier[3], totalizaram em 2022 pouco mais de 2 de milhões de pacotes registrados. A explicação possível se deve ao fato de a atual Portaria do Ministério da Fazenda nº 156  que regulamenta o RTS desde 1999  ter determinado que o único operador designado [4] no Brasil (e.g. Correios) tenha exclusividade em operar remessas de minimis, isto é, aquelas amparadas pela isenção do imposto de importação de 60%, quando não ultrapassarem o valor de US$ 50, e que ainda essas encomendas sejam enviadas “por” e destinadas “para” pessoa física, na condição de presente.

Divulgação

Essas restrições por mera Portaria Ministerial geraram uma série de controvérsias, pois o legislador ordinário teria sido limitado por norma infralegal, o que levou a Turma Nacional de Uniformização (TNU) a condenar a norma jurídica no âmbito dos Juizados Especiais Federais [5]. Isso não obstante, a isenção de US$ 50 continuou sendo aplicada, deixando-se a cargo da alíquota de 60% de imposto de importação quando a mercadoria não pudesse ter seu valor ignorado.

Aliás, os estados da Federação que também renunciavam ao ICMS nessas remessas desde 1995 resolveram revogá-la em 2020 [6], restabelecendo o direito de se tributar as remessas [7]. O montante do Imposto de Importação e do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) fez então que a alíquota efetiva da operação chegasse a mais 95% [8] da mercadoria importada!

Da calibragem da alíquota do RTS

Diante da onerosa carga tributária, a primeira pergunta que aqui se coloca é se o patamar da alíquota de 60% [9] à título de Imposto de Importação é autorizado pela Organização Mundial de Comércio (OMC), uma vez que o artigo II [10] do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (do inglês, GATT) determina que os países membros da OMC não podem extrapolar os limites que tenham consolidado (bound rates) em suas listas de produtos, cujo patamar médio concebido pelo Brasil para bens industriais está em 30,7% [11].

Por outro lado, caso se afirme que a alíquota do Imposto de Importação aplicada no RTS representa a carga tributária acumulada do Imposto de Importação e demais tributos incidentes sobre o consumo  isto é  IPI-Importação, PIS/Pasep-Importação e Cofins-Importação, resta verificar se o percentual continua representando a carga tributária das quatro exações.

Uma simulação tomando por base o volume de produtos importados dentre 2019 a 2021 demonstram que a alíquota efetiva média de IPI-Importação teria sido de apenas 2,7% [12]. Soma-se a este tributo o montante de PIS/Pasep-Importação e Cofins-Importação, cujas alíquotas são respectivamente 2,1% e 9,65% [13]. Essa carga tributária de tributos federais sobre consumo alcançaria apenas 14,45%. Por seu turno, o Imposto de Importação efetivamente recolhido no mesmo período reporta uma alíquota efetiva de apenas 5,7%. Por outro lado, a tarifa média ponderada sobre as importações brasileiras reportada à OMC em 2019 foi de 10% ou, na pior hipótese, para bens industriais, uma tarifa nominal de 13,8% [14].  

Isso indica que no cenário de alíquota de Imposto de Importação mais gravosa, a carga tributária federal foi de 28,62%. Esse montante, aliás, se aproxima bastante dos 25% que é cobrado de forma unificada noutro regime tributário diferenciado operacionalizado para os “sacoleiros” que trazem encomendas pela ponte da amizade diretamente do Paraguai. Trata-se do Regime de Tributação Unificada (RTU) instituído pela Lei nº 11.898/2009, que permitiu que empresas optantes do Simples Nacional pudessem ter suas importações tributadas sob uma só alíquota quando as mercadorias estrangeiras adquiridas sejam procedentes pela via terrestre do Paraguai e destinadas à revenda. A alíquota prevista em lei é de 42,25%, tendo sido reduzida ainda em 2009 para 25% [15].

Importante ainda destacar que uma das queixas do setor têxtil nacional é que há marketplaces chineses como a Shein que se dedicam à venda de vestuário, produto cujo Imposto de Importação é de 35%, mas não são onerados pelo IPI-importação. Neste caso específico, a carga tributária federal alcançaria 46,75%, patamar ainda inferior aos 60% vigente atualmente.

Da calibragem da isenção

Por sua vez, as remessas para o Brasil também gozam de uma isenção de US$ 50 que em muito difere dos padrões internacionais. Estudo realizado em 2018 pela Global Express [16] revela que média mundial naquele ano era cerca de US$ 194.86 (cento e noventa e quatro dólares e oitenta e seis centavos) e a dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) era de US$ 70.

No extremo, países com maiores faixas de isenção são justamente os que contam com a economia com forte viés liberal, como os Estados Unidos seguidos pela Austrália (US$ 800 e US$ 661, respectivamente) enquanto na ponta oposta, dentre os países com baixa ou nenhuma isenção estão China, Suíça e Paraguai (respectivamente, US$ 7,10, US$ 5,50 e US$ 0,00) [17].

Essa faixa de isenção parece se distanciar em muito daquela aproveitada pelos viajantes internacionais, que gozam de isenção de compras a título de bagagem até US$ 1 acompanhadas de outra isenção de mais US$ 1 para aquisições em free shop, ou também isenções de US$ 500 para aqueles viajantes que cruzam as fronteiras pela via terrestre [18].

Vale destacar que é senso comum que as isenções para bens de viajantes são aproveitadas por contribuintes que possuem maior aquisitivo, dispondo de recursos para irem ao exterior de avião ou navio. Portanto, comparando-se a isenção do RTS com a de outros regimes diferenciados de tributação, se percebe uma potencial regressividade na atual política tributária/aduaneira, merecedora de correção de rumos tão logo a Receita adeque seus procedimentos de fiscalização e cobrança pela via da adesão e antecipação de recursos tributários pelas plataformas de marketplace [19].

Portanto, ao tempo que a Receita se moderniza para conseguir dar cabo do desafio de fiscalizar o e-commerce, a questão que irá bater à porta é a adequação do atual patamar de tributação das remessas internacionais de mercadorias, pois os diferenciados regimes de tributação têm caminhado para direções opostas, podendo evidenciar uma certa desarmonia entre as políticas de tributária/aduaneira vigentes.

Thális Andrade é advogado, doutorando em Direito pela USP, mestre em Direito pela UFSC e pelo World Trade Institute (Suíça), professor de Legislação Aduaneira e Comércio Internacional em cursos de pós-graduação, subsecretário de Facilitação de Comércio substituto no Ministério da Economia, autor de diversas publicações na área aduaneira, como a obra Curso de Direito Aduaneiro: Jurisdição e Tributos em Espécie (Dialética, 2021).

Consultor Júridico

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