Thiago de Oliveira: NLLC e a reabilitação do agente infrator

A partir do ano que vem[1], a Administração Pública direta, autárquica e fundacional dos entes federativos deve necessariamente aplicar a Lei nº 14.133/21, em razão da revogação total da Lei nº 8.666/93 e da Lei 10.520/2002 (pregão), acarretando a devida atenção ao regime de responsabilidade administrativa definido na nova lei de licitações e contratos administrativos.

No âmbito da aferição da dosimetria das sanções administrativas, um aspecto relevante da nova Lei de licitações e contratos administrativos (Lei nº 14.133/21) refere-se ao estímulo direcionado às empresas, interessadas em contratar com o Poder Público, para a criação, a implementação e o aperfeiçoamento de programas de integridade corporativa, ética empresarial destinados ao combate da corrupção no ambiente das relações público-privadas.

As políticas internas e programas de compliance realmente efetivos também atenuariam ou até mesmo afastariam a aplicação de sanções administrativas, na forma do inciso V do parágrafo 1º do artigo 156 da nova Lei. 

Certamente, a normatividade deste tratamento, no âmbito da Lei nº 14.133/21, sofreu influência da legislação nacional anticorrupção, notadamente da Lei nº 12.846/2013 e do Decreto 11.129/2022 referentes à responsabilização, administrativa e civil, de pessoas jurídicas pela prática de atos contrários à administração pública. Note-se inclusive que os critérios para reconhecimento da efetividade de tais programas decorrem dos parágrafos incisos do artigo 57 do decreto:

Art. 57. Para fins do disposto no inciso VIII do caput do art. 7º da Lei nº 12.846, de 2013, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua existência e aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros:

I – comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa, bem como pela destinação de recursos adequados;

II – padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os empregados e administradores, independentemente do cargo ou da função exercida;

III – padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a terceiros, tais como fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados;

IV – treinamentos e ações de comunicação periódicos sobre o programa de integridade;

V – gestão adequada de riscos, incluindo sua análise e reavaliação periódica, para a realização de adaptações necessárias ao programa de integridade e a alocação eficiente de recursos;

VI – registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da pessoa jurídica;

VII – controles internos que assegurem a pronta elaboração e a confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiras da pessoa jurídica;

VIII – procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões;

IX – independência, estrutura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa de integridade e pela fiscalização de seu cumprimento;

X – canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a funcionários e terceiros, e mecanismos destinados ao tratamento das denúncias e à proteção de denunciantes de boa-fé;

XI – medidas disciplinares em caso de violação do programa de integridade;

XII – procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a tempestiva remediação dos danos gerados;

XIII – diligências apropriadas, baseadas em risco, para:

a) contratação e, conforme o caso, supervisão de terceiros, tais como fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários, despachantes, consultores, representantes comerciais e associados;

b) contratação e, conforme o caso, supervisão de pessoas expostas politicamente, bem como de seus familiares, estreitos colaboradores e pessoas jurídicas de que participem; e

c) realização e supervisão de patrocínios e doações;

XIV – verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas; e

XV – monitoramento contínuo do programa de integridade visando ao seu aperfeiçoamento na prevenção, na detecção e no combate à ocorrência dos atos lesivos previstos no artigo 5º da Lei nº 12.846, de 2013.

§ 1º Na avaliação dos parâmetros de que trata o caput, serão considerados o porte e as especificidades da pessoa jurídica, por meio de aspectos como:

I – a quantidade de funcionários, empregados e colaboradores;

II – o faturamento, levando ainda em consideração o fato de ser qualificada como microempresa ou empresa de pequeno porte;

III – a estrutura de governança corporativa e a complexidade de unidades internas, tais como departamentos, diretorias ou setores, ou da estruturação de grupo econômico;

IV – a utilização de agentes intermediários, como consultores ou representantes comerciais;

V – o setor do mercado em que atua;

VI – os países em que atua, direta ou indiretamente;

VII – o grau de interação com o setor público e a importância de contratações, investimentos e subsídios públicos, autorizações, licenças e permissões governamentais em suas operações; e

VIII – a quantidade e a localização das pessoas jurídicas que integram o grupo econômico.

§ 2º A efetividade do programa de integridade em relação ao ato lesivo objeto de apuração será considerada para fins da avaliação de que trata o caput.

O incentivo e o estímulo à criação de programas de integridade pelas empresas particulares, interessadas em contratar com o Poder Público, são inegáveis no âmbito da nova legislação.

Contudo, há entendimento no sentido de que a União Federal, no uso de sua competência legislativa em matéria de normas gerais na área de licitação e contratação pública[2],  deveria ter ido além, disciplinando a obrigatoriedade de que tais empresas apresentassem tais políticas de conformidade como requisito obrigatório de habilitação, tal como legislações estaduais e municipais pretendiam mas tiveram sua inconstitucionalidade formal reconhecida. 

Inobstante isto, vale esclarecer que municípios e estados têm competência assegurada para estabelecer a obrigatoriedade de apresentação de programas de integridade pelo particular contratado[3], ou seja, na fase pós-licitação e a fim de assegurar os interesses do Poder Público, afastar riscos de danos ao erário e à sociedade. 

A importância do incentivo à criação de programas de integridade ético-corporativa é evidente. O custo econômico e social decorrentes da prática de atos de corrupção contrários aos interesses da Administração Pública e da coletividade comprometem ações, políticas e programas de políticas públicas. Medidas legislativas, administrativas e da sociedade civil voltadas a proteger os recursos públicos e garantir sua aplicabilidade efetiva em prol do interesse público são imprescindíveis.

A propósito, a respeito do “custo da corrupção” e da necessidade de “medidas de combate inovadoras” cabe observar os indicadores e levantamentos realizados pela organização “Transparência Internacional-Brasil”[4]

De outro lado, cabe destacar que eventuais abusos e excessos durante a aferição e a aplicação de sanções administrativas contrariariam a tendência do denominado autossaneamento (self-cleaning) do agente econômico infrator, contemplada na própria Lei nº 14.133/21. Mas no que consiste o autossaneamento?

No contexto da lei, não significa impunidade. A reabilitação do agente econômico infrator não prescinde do cumprimento de determinadas condições capazes de desestimular a recorrência de práticas fraudulentas e corruptas no ambiente licitatório e na relação contratual com o Poder Público. E mais, os requisitos estabelecidos para efetivação do autossaneamento conferem a vantajosidade e a eficiência almejadas pela Administração.

A reabilitação mereceu destaque no artigo artigo 163 da nova Lei, condicionada aos seguintes requisitos cumulativos a serem cumpridos pelo agente sancionado e exigidos pelo Poder Público, são eles: reparação integral do dano, pagamento de multa, cumprimento das condições  definidas no ato punitivo, existência de efetivo programa de compliance, ético e de integridade (além do incentivo da existência de tal programa em razão da dosimetria sancionatória, tal política também é estimulada na seara da reabilitação do agente), transcurso temporal (de 1 a 3 anos a depender da natureza da sanção aplicada), bem como de prévia análise jurídica favorável pelo órgão ou entidade pública sancionadora.

Note-se, portanto, que a reabilitação é a reintegração dos agentes econômicos infratores/sancionados pela administração pública no mercado de licitações e contratações públicas, desde que tenham cumprido alguns requisitos capazes de minimizar, em certa medida, os danos (material e imaterial) causados e assumam o compromisso de evitar que novas irregularidades e infrações administrativas sejam praticadas. É uma forma alternativa de lidar com situações que conduziriam à impossibilidade de atuação no mercado de contratos administrativos: em vez de impedir o agente de exercer sua atividade, o que teria o potencial de prejudicar a concorrência (redução de competidores tecnicamente capacitados) e de causar problemas sociais (redução de emprego e de atividade econômica), o Poder Público avalia se os interessados adotaram determinadas medidas para restabelecer a confiabilidade no âmbito da relação público-privada.

Em relação aos compromissos assumidos pelo agente a ser reabilitado, note-se que a Lindb em seu artigo 26 inclusive estabelece que o afastamento de irregularidades pode ser instrumentalizado mediante celebração de compromisso com o interessado:

  1. 26. Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial: § 1º O compromisso referido no caput deste artigo: I – buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais; (…) III – não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral; IV – deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.

De todo o modo, há críticas no sentido de que a reabilitação deveria ser mais procedimentalizada à semelhança dos processos instaurados para a aplicação da sanção administrativa (na linha do PAR – processo de apuração de responsabilidade imprescindível à aplicação de sanções administrativas severas no âmbito da Lei nº 14.133/21 e do combate aos atos contrários à Administração Pública na seara da Lei nº 12.846/2013), conferindo maior segurança jurídica. Outra crítica recorrente é no sentido de que o requisito temporal é irrazoável e que seria mais eficiente se, a qualquer tempo, a reabilitação pudesse ocorrer desde que atendidos os demais requisitos prévios e legais, bem como satisfizesse ao interesse público.

É importante para a administração pública que esses agentes econômicos possam ser reintegrados ao mercado de contratos administrativos, que passará a contar com mais competidores, contribuindo para a existência de propostas mais vantajosas nas licitações e capazes de satisfazer necessidades prementes do Poder Público.

A título de exemplo, note-se que a Lei nº 13.979/2020, destinada ao enfrentamento da pandemia da Covid-19, admitiu o regime de autossaneamento a fim de atender ao interesse público e buscar propostas de mercado eficientes capazes de fazer frente à grave calamidade pública enfrentada:

Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei.  (Lei nº 14.035/20) § 3º Na situação excepcional de, comprovadamente, haver uma única fornecedora do bem ou prestadora do serviço, será possível a sua contratação, independentemente da existência de sanção de impedimento ou de suspensão de contratar com o poder público. (Lei nº 14.035/20)

Definitivamente, a reabilitação do agente econômico infrator não gerará impunidade[5]. Trata-se de conferir racionalidade, efetividade e efeito prático à aplicação de sanções administrativas, mantidas exigências preventivas e reparadoras a serem cumpridas pelo agente, mas atreladas à satisfação do interesse público e sempre sujeitas ao controle dos órgãos internos e externos do Poder Público. 

Por todo o exposto, nota-se alterações significativas no âmbito da aferição e aplicação, pelos gestores públicos, de eventual responsabilidade administrativa imputada aos licitantes e contratados pela administração pública federal, estadual e municipal.


[2] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). Art. 22, inciso XXVII.

[3]Nesse sentido, vale conferir a relação de alguns Estados/Municípios no site da Associação das Empresas de Engenharia do Rio de Janeiro:  http://www.aeerj.net.br

[4] Dados da Transparência Internacional disponíveis em www.transparency.org

[5] Recentemente este embate permeou a “nova” Lei de Improbidade Administrativa (lei nº 14.230/21 que alterou a Lei nº 8.429/92), prevalecendo o entendimento no sentido de que a modernização e o aperfeiçoamento normativo eram imprescindíveis e não colocariam em risco o aumento da impunidade e da corrupção no Brasil.

Thiago de Oliveira Sócio da área de Direito Regulatório da SiqueiraCastro, professor universitário, doutor pela Universidade de Lisboa e mestre em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Consultor Júridico

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