Thiago Gonçalves: Autocomposição e diálogos institucionais no STF

O Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.191 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 984 [1], homologou acordo entre a União, os estados e o Distrito Federal para a compensação de R$ 27 bilhões decorrentes das perdas de arrecadação do ICMS sobre combustíveis.

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes, decidiu que “as técnicas de autocomposição são compatíveis com o exercício da jurisdição constitucional, inclusive na fase pré-processual, podendo ser aplicadas em ações de competência da Suprema Corte” (Enunciado 88 Conselho da Justiça Federal).

Durante o processo, ocorreram inúmeras reuniões entre os entes federativos, sem a participação direta do Poder Judiciário, utilizando-se das técnicas de autocomposição.

Após os envolvidos lavrarem as propostas da cláusula do acordo (naquilo que havia disparidade), advieram reuniões sob condução do ministro Gilmar Mendes ou da equipe de juízes que o auxiliam.

Os termos do acordo foram redigidos, negociados e reescritos pelos próprios entes federativos, de forma direta, sem a interferência do Poder Judiciário.

Segundo consta do voto do ministro relator, “apenas na última semana, antes do termo final do prazo e diante de alguns impasses jurídicos, houve a participação mais efetiva deste relator e de meu gabinete” (ADPF 984 e ADI 7.191, voto conjunto, 2023, p. 13).

Os julgamentos em questão abrem espaço para importantes reflexões.  

Neste breve ensaio, procuramos demonstrar que do ponto de vista legislativo, a jurisdição constitucional não está imune às técnicas de resolução dos conflitos. Por consequência, foi acertada a decisão do Supremo.

Entretanto, é preciso tecer algumas ponderações, em face das peculiaridades na relação entre autocomposição e processo constitucional objeto.

Sem a pretensão de traçar uma evolução histórica da temática, é admissível assegurar que há uma longa tradição dos métodos de resolução dos conflitos no sistema jurídico brasileiro, que por sua vez, se iniciou com a Constituição Política do Império do Brasil de 1824 [2].

A partir do recorte do instituto do termo de “ajustamento de conduta” na Lei nº 7.347/1985, observa-se que gradativamente houve o aumento na produção legislativa (Lei nº 9.099/1995, Lei nº 9.307/1996, Lei nº 13.655/2018) para prestigiar outras formas de solução dos conflitos. 

No próprio processo constitucional objetivo, desde a aprovação da Lei nº 9.868 (regula processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF), já havia a figura do amicus curiae.

De maneira concomitante, o Código de Processo Civil de 2015 normatizou (artigo 165 a 170, artigo 190 etc.) um grande sistema de justiça multiportas [3], expresso principalmente no artigo 3º [4].

O caput do artigo 3º expressa o princípio constitucional da inafastabilidade (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal), mas a porta da jurisdição estatal não pode e nem deve ser “fechada”, e na medida do possível, o Estado buscará a solução consensual dos conflitos.

No âmbito da teoria constitucional, há um imenso leque de doutrinas erigidas sob a denominação comum de “diálogos institucionais” [5], que reforçam a necessidade construção do sentimento constitucional, sem descartar o papel do Poder Legislativo, Executivo e outras instâncias sociais [6].

As decisões nas ADI 7191 e na ADPF 984 abrem caminho para se reforçar uma prática institucional, demonstrando que há diversas possibilidades de diálogos, inclusive, do ponto de vista da legislação vigente.

Porém, para que esse caminho seja percorrido, são necessários alguns cuidados na aplicação dos métodos de resolução dos conflitos e das teorias dialógicas, para que não passem a ser apenas mecanismos de ocultamento dos problemas interpretativos das normas e/ou camuflagem judicial (e política) de outras contendas.

Portanto, embora seja profícua as decisões em questão, destacamos duas reflexões iniciais sobre o tema, sendo uma de 1) ordem empírica e outra de 2) ordem teórica.

Conquanto seja comum, tanto no âmbito acadêmico [7] quanto na atividade jurisdicional [8], asseverar que a figura do amicus curiae no processo constitucional objetivo é um instrumento de apelo democrático, na prática, isto é um utensílio retórico para supostamente legitimar decisões judiciais.

Fabricio Castagna Lunardi (2021, p. 159), aponta, com pesquisas empíricas, que a utilização de audiências públicas está abaixo do potencial de qualidade e legitimidade democrática que se espera, “seja pelo reduzido quantitativo de processos que são convocados, seja pelo baixo índice de comparecimento dos ministros às audiências” [9].

Conforme visto, a Lei nº 9.868 foi aprovada em 1998, mas a primeira audiência pública foi realizada somente em 2007 (ADI nº 3.510) e até 2018, haviam sido realizadas apenas 22 audiências (LUNARDI, 2021, página 160).

Thiago Luís dos Santos (2017, p. 245), constatou em sua pesquisa que grande parte dos ministros sequer mencionaram em seus votos as audiências públicas que foram concretizadas para supostamente orientá-los [10].

Em vista disso, é evidente que não se pode descartar o importante papel das audiências públicas, mas elas não podem ser utilizadas com mecanismo retórico. 

Do ponto de vista teórico, é importante as advertências de Jean Leclair (2003, p. 389), para qual a articulação dialógica dos conflitos pode fazer com que o Poder Judiciário amplie (indevidamente) ainda mais seu âmbito de atuação [11].

Leclair (2003, p. 420) esclarece que tais técnicas, se forem mal utilizadas, “affirmer l’existence d’un dialogue institutionnel entre les assemblées législatives et les tribunaux est un outil rhétorique fort puissant. Employé à mauvais escient, la métaphore du dialogue pourrait servir de justification à une réinterprétation des rapports entre les pouvoirs judiciaire et législatif qui ne servirait pas nécessairement les intérêts des citoyens”.

Apesar de não mencionado pelo professor canadense, podemos citar o exemplo de uma lei que não é inconstitucional, mas também pode não ser a melhor solução (política) para determinado problema social.  

Ao ser provocado, o STF deve prezar pela conformidade funcional.

A Suprema Corte não pode ampliar sua competência, sob a justificativa de uma suposta solução consensual dos conflitos, a fim de corrigir (do ponto de vista político) a atuação legislativa.

Em outras palavras, se as técnicas de autocomposição não forem devidamente esclarecidas e bem aplicadas, pode ocorrer o efeito inverso, ou seja, uma ampliação do ativismo judicial [12].

Em uma democracia, e isso não significa descartar o papel contramajoritário da Suprema Corte, questões polêmicas devem ser resolvidas preferencialmente na arena política.

A casuística ora analisada é um importante objeto para que comunidade acadêmica inicie uma reflexão aprofundada no âmbito do processo constitucional objetivo sobre os diálogos de cunho político-constitucional e a normatividade que está positivada na legislação infraconstitucional.

 


[2] Artigo 161. Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum.

[4] Artigo 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.

§1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.

§2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

Thiago André Silva Gonçalves é mestrando em Direitos Humanos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e analista jurídico do Ministério Público de São Paulo.

Consultor Júridico

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